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Por uma Igreja a serviço do Planeta Terra e da Humanidade: a contribuição de Pe. José Comblin

"O texto do Pastor Luciano Batista de Sousa, da Comunidade da Igreja Batista de Várzea Nova (Santa Rita-PB) é de relevante  importância. Recomendamos a leitura. O conteúdo foi apresentado por Luciano na   - 5a Semana Teológica Pe. José Comblin -, em Outubro de 2015, tornando-se na ocasião o momento central do evento e o estímulo para um frutuoso dialogo entre os participantes. Eis o texto: "

 

Vª Semana Teológica Pe. José Comblin

Por uma Igreja a serviço do Planeta Terra e da Humanidade: A contribuição do Pe. José Comblin.

Luciano Batista*

São muitas as contribuições do Comblin. Não se pode pretender esgotar as contribuições deste mestre e profeta num sábado pela manhã. Não pretendo ser acadêmico em minha fala.

 

 

Será muito mais um testemunho pessoal. Aliás, minha fala terá como base a intuição e só depois acrescento minhas leituras (de livros ou artigos) de/sobre Comblin e Papa Francisco. Como pensar a contribuição de um teólogo, profeta e pensador como o Comblin levando em consideração seus 74 livros e mais de 400 artigos sem contar prefácios e posfácios de inúmeros livros?, delinear três ou quatro pontos que considerei pertinentes para nossa reflexão. Estou consciente de que o que passo a apresentar (neste momento) são elementos insipientes e que podem ser retomados e aprofundados. Outro alerta que preciso fazer é que, embora eu saiba que Comblin foi um teólogo brilhante (por causa da sua capacidade crítica e poder de articular e estabelecer diálogos com outras ciências), ainda assim, minha fala sobre ele é sempre uma fala apaixonada!

Quais são então estes pontos (contribuições que vejo em Comblin)?

  1. Renovação da Teologia para a Igreja na America Latina

  2. Espírito Santo – O projeto da Pneumatologia do Comblin

  3. Ação Cristã no mundo

  4. A relação Deus-Casa Comum

1. Renovação da Teologia para a Igreja na America Latina

A questão da teologia para mim é a questão fundamental em todo o pensamento do Comblin. A teologia foi à linguagem, a vida, a experiência, a pedagogia, a prática e a leitura que condicionou a partir da igreja, o serviço do Comblin a humanidade e ao planeta (Casa Comum na expressão de L.Boff).Minha formação teológica foi numa instituição extremamente conservadora. A maioria dos meus professores foram americanos. A teologia apreendida fora calvinista. Meus professores tinham uma ligação com o Sul dos Estados Unidos. A consequência direta disso fora a assimilação de um conceito de teologia pensado a partir de um contexto também americano. Teologia distante da realidade latino-americana, brasileira e mais ainda, nordestina. Eu havia aprendido a repetir teologia e não a fazer teologia.

Minha salvação foi o Comblin! A descoberta do Comblin foi muito significativa. Desde então, vivencio um processo de libertação de uma teologia estéril, reprodutivista, que não interpelava a igreja e não dialogava com sociedade, limitando-se a responder perguntas do passado. Comblin me provocou a pensar questões radicais: Qual é o contexto em estamos inseridos? Quais são as grandes perguntas com as quais a teologia se confronta em nossa situação? Qual a missão da igreja neste imenso continente latino-americano repleto de contradições econômicas, sociais e culturais? Qual o sentido da ação cristã no mundo? Sociólogos, políticos, filósofos, marqueteiros; se preocupam em ler seu tempo, em decodificar seu mundo, em interpretar a sociedade. É tarefa dos teólogos também alcançar seu tempo. As respostas que a teologia produziu nas ultimas décadas, em boa parte, resultaram num vazio, pois os tempos mudaram significativamente!

A teologia tem como uma das suas tarefas, justamente tentar afirmar a mensagem cristã de maneira relevante e compreensível a cada geração. Ela se situa entre a mensagem que o Criador Pai-Mãe dá e o mundo em que o teólogo e sua micro-casa-comum (igreja) se encontra. Neste sentido,é importante ressaltar que o pensamento e obra de José Comblin, não são desconectados de sua história pessoal, apenas refletem as etapas de sua vida e os momentos da história pessoal e eclesiástica. Podemos dizer que Comblin escreve a partir de duas chaves hermenêuticas: a experiência da transformação política, eclesial e teológica do contexto latino americano e a vivência junto ao homem pobre rural realizada na maior parte dos anos passados no Nordeste Brasileiro, especialmente em nosso Estado, a Paraíba1.

Comblin rompe com a forma estreita de fazer teologia. Entende que teologia não pode está reduzida a tornar-se registro. Sabia que a teologia não podia limitar-se às estruturas permanentes da Igreja. Para ele a história mostra que não se possui a verdade. Ela se constrói. Além do mais, a verdade para a fé cristã não são os credos, as confissões, a catequese, os documentos conciliares, tudo isso têm seu valor e significado para a igreja, contudo, a verdade é uma pessoa, Jesus de Nazaré2. Afirmava que os teólogos precisavam de autonomia e, ele próprio viveu isso intensamente com muito discernimento e criatividade! De fato, Comblin é um demolidor de mitos! Escreve um rico e abrangente artigo intitulado “A tarefa dos teólogos latino-americanos na atualidade: Contribuições para um diálogo”. Este artigo entra como anexo no livro “A Força da Palavra” (1986). Neste artigo o Comblin estabelece um diálogo crítico entre os documentos do Vaticano II (Gaudium et Spes), Cardeal J. Ratzinger, teólogos latino-americanos e europeus e a Teologia da Libertação.

O Concílio (Vaticano II) havia proposto uma tripla abertura: abertura às fontes, abertura aos outros cristãos, abertura às perguntas da humanidade. Essa proposta exprimia um retorno ao sentido total da teologia, isto é, ao seu dever missionário. O Concílio queria uma teologia profundamente diferente daquilo que se conhecia até então. Queria uma teologia em função da missão e não em função da simples continuidade da instituição. Queria uma teologia que procedesse de uma participação profunda na paixão pelo mundo. Palavras-chave como: Escutar, Risco, Paixão humana, Palavra viva, missão, são analisadas neste artigo.

Comblin afirma que houve um movimento teológico na America Latina que levou a sério e quis aplicar o programa traçado pelo Concílio. “Aconteceu que não somente novos conteúdos teológicos se manifestaram, mas a própria figura e tarefa e missão e definição social do teólogo mudou” 3. Faz uma discussão sobre as características da nova função da teologia na América Latina que, a meu ver, continua tendo sua atualidade. Diz,

  1. Os teólogos precisam ser pesquisadores! Mas que tipo de pesquisa se refere? Após o Vaticano II pesquisar é perscrutar os sinais dos tempos, conhecer o mundo, dialogar, caminhar junto aos homens e mulheres que lideram os movimentos (populares), sobretudo auscultar o coração dos pobres;

 

  1. Devem dedicar-se mais à evangelização do que a transmissão da catequese;

 

  1. Os teólogos não devem falar como mestres e donos da verdade. O que dizem não é afirmação taxativa. Devem ouvir mais e estabelecer diálogos constantes com o povo.

 

  1. A teologia não procura a exposição didática ou sistemática que agrada meramente às pessoas já convencidas, “A teologia de hoje está à procura da palavra viva que suscita interesse, desperta a atenção, faz nascer a inquietação. Em fim, uma palavra a serviço da evangelização”4

Nasce aqui uma teologia pastoral que na experiência do Chile, Equador e Brasil funda umaformação sacerdotal voltada para o mundo rural. Um aspecto que ressalto diz respeito à eclesialidade dessa experiência: a possibilidade de identificar entre as classes pobres vocações laicas e sacerdotais. Nas palavras de Sebastião Gameleria,

...por irradiação, nasceram diversas iniciativas: o centro de formação missionária, na Paraíba, por algum tempo conhecido como “seminário rural”; o seminário de formação de agentes pastorais, gente do interior, num conjunto de dioceses da Bahia; o grupo de missionários e missionárias do campo espalhados por todo o Nordeste do Brasil; o conhecido “curso da arvore para ajudar a analisar a sociedade; grupo informal, mas periódico, de pastores e pastoras protestantes para “conversar” teologia; e a fraternidade do discípulo amado, grupo de vida monástica no norte de Alagoas.5

A partir da convivência entre leigos e seminaristas no trabalho pastoral, naturalmente se destacam os dons que são disponibilizados na pastoral. O resultado prático dessa experiência é a experiência da Teologia da Enxada.

Comblin não desconhece o avanço das ciências bíblicas e da hermenêutica de sua época, por isso vai apontar para figuras como H.G. Gadamer, P. Ricouer, J Ladrière. Para Comblin é preciso se libertar do conservadorismo, reler criticamente as fontes primárias e correr riscos mesmo sabendo que toda mudança é considerada perigosa e uma ameaça à identidade cristã. Para mim essa postura e leitura teológica da igreja e do mundo (em especial do continente latino-americano) encharcam todos os seus textos.

Livros importantes para aprofundar o pensamento teológico Combliniano:

  1. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? Paulus, 2005, 96p.

  2. Historia da Teologia Católica. Herder, 1969, 180p.

  3. O que é a verdade? Paulus, 2005 79p.

  4. O provisório e o definitivo. Herder, 1968,162p.

  5. Teologia da Libertação, Teologia neo-conservadora e Teologia Liberal. Vozes, 1985, 135p.

  6. Teologia de la revolución. 1973

  7. Teologia de la práctica revolucionaria. 1979

  8. A Força da Palavra. Vozes, 1986

  9. Os Sinais dos tempos e a Evangelização. Duas Cidades, 1968

 

2. Espírito Santo – O projeto da Pneumatologia do Comblin

José Comblin conseguiu romper com os moldes delimitadores da teologia oficial católica e protestante-evangélica acerca do Espírito Santo. Por volta da década de 1980 havia concebido um projeto de teologia do Espírito Santo que estudasse aspectos ignorados pelos teólogos, uma vez que o pensamento tradicional havia se dedicado “em primeiro lugar às relações intratrinitárias e, em segundo lugar, à presença do Espírito Santo no sistema institucional da Igreja”.6 Dentro dessa perspectiva, a ação do Espírito estava limitada a formulação dos dogmas, a ministração dos sacramentos e as nomeações aos cargos dentro da organização eclesiástica, dando a impressão de que o Espírito Santo atua apenas por meio da hierarquia.

Segundo Comblin, Jesus não quis nem teve a ilusão de que a Igreja seria pura expressão do Espírito Santo. Disse que o Espírito viria. Não disse onde nem como. Afirma ainda que há cinco temas bíblicos fundamentais relacionados ao Espírito, nos quais se concentra seu agir no mundo. Trata-se de temas “ignorados pelas ciências humanas”, sendo especificamente cristãos. Os temas são teológicos, a saber: O Agir ou a Ação, a Palavra, a Liberdade, o Povo de Deus e a Vida.O que nos trás de novo acerca do Espírito? Ele, com sua criatividade e profundidade bíblico-teológica nos apresenta uma pneuma-práxia, isto é, uma presença objetiva do Espírito na história, mais especificamente na ação humana que milita incessantemente contra situações de opressão, miséria, marginalização e exclusão. Essa presença objetiva vale salientar, não está condicionada a vida e ação dos cristãos. O Espírito Santo não depende da ação dos cristãos para agir no mundo, embora, a referência maior da ação humana assinalada pelo Comblin, seja a vida e as ações de Jesus.

“As ciências humanas estudam todos os fatores que influenciam o agir humano: fatores biológicos, históricos, culturais, psicológicos, sociológicos etc.7” Mas, segundo Comblin, não falam do “próprio agir, do conteúdo do agir que parece ser resultante de todos esses fatores que dirigem o ser humano. No entanto, o ser humano age, produz frutos”. O ser humano não realiza apenas o que um sistema lhe impõe. Ele decide, escolhe e realiza, age de modo pessoal e original. Por outro lado, pode produzir ações inflamadas pelo Espírito Santo, que lhe dá luz e força. É necessário se pensar um projeto de vida. O que Jesus ensina é a necessidade de se ter um projeto – semelhante ao que ele próprio havia escolhido. O Espírito Santo está aí para empurrar e realizar. A vida do discípulo de Jesus é uma vida de ação.

A Palavra é o segundo tema. A base está no AT. A palavra dos profetas ressoava com força e produzia efeito. Segundo Comblin as ciências humanas ou históricas não deram conta de estudar a “palavra criadora e transformadora de Deus”. “Essa palavra denuncia, anuncia e converte o povo de Deus.” Jesus não é apenas a Palavra encarnada (João 1:1), comunica-se pela palavra que transforma, chama e ressoa no mundo inteiro pela mediação de seus discípulos. O que o Espírito faz é levar a palavra à humanidade toda, iluminando os seres humanos e neles infundindo novas energias.

O terceiro tema é o da liberdade. Na modernidade, atribuiu-se o nascimento do conceito de liberdade aos gregos, no entanto, a liberdade grega era limitada, isto é, era aplicada a uma minoria de privilegiados. Comblin afirma que a democracia ateniense seria considerada hoje uma aristocracia8. Para Comblin o conceito atual de liberdade “deriva da bíblia e, sobretudo, do Novo Testamento. As expressões modernas são versões secularizadas do conceito cristão. Alguns reconhecem essa filiação. Muitos a ignoram e alguns a negam terminantemente. No entanto, não existe outra fonte.” “Não há liberdade se não houver possibilidade de escolha”, por outro lado, “na liberdade há aspectos trágicos. Ao lado dos que constroem, há os que destroem. Ao lado das pessoas que procuram a vida, há as pessoas que procuram a morte. Deus fez uma aposta: acreditou na capacidade de liberdade que há no ser humano e envia o seu Espírito aos que aceitam ser livres”. “Vós, irmãos, é para a liberdade que fostes chamados” Gl.5:13. “Onde está e Espírito do Senhor aí está a liberdade” (2.Cor. 3:17). “Se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8:36).

O quarto tema é o do Povo de Deus. Este também é um conceito ignorado pelas ciências humanas. O conceito de Povo de Deus é totalmente bíblico. Segundo Comblin, é uma das estruturas básicas da teologia bíblica. “O Povo de Deus define as relações humanas como resultado da liberdade. O que faz o povo é a liberdade dos seus membros, a liberdade construtiva e responsável. No povo de Deus não há dominação, nem exploração do homem pelo homem”. “O conceito de povo de Deus abrange a humanidade toda. Pois todos os povos, nações e línguas são chamados a formar o povo de Deus. No povo de Deus desaparecem as barreiras que isolam os povos e fazem de cada povo o inimigo dos outros. O povo de Deus é toda a história da humanidade vista no seu sentido mais profundo”. Foi a promessa feita a Abraão: “Eu farei de ti um grande povo e te abençoarei” (Gn.12:2). Os profetas são a consciência do povo de Deus e por isso levantam a voz quando os descendentes de Abraão se afastam da sua vocação.

Finalmente chegamos ao tema da vida. Para Comblin, a vida na é um conceito cientifico, a vida é um conceito teológico. Muito embora, a teologia não dirá o que é a vida. O que seria um absurdo. Como enunciar em conceitos abstratos o que é a realidade concreta? Não importa definir, importa indagar: de onde vem à vida? Para onde vai a vida? Qual é o sentido da vida? A essas perguntas as ciências não oferecem resposta. N entanto, Deus já disse o que devia ser a vida. Por isso, a vida é problema teológico – e talvez o problema teológico fundamental.9 “Eu vim para que os homens tenham vida e a tenham em abundância” (João 10:10). A vida é o atributo principal de Deus. Pela analogia com a nossa vida, podemos entender algo de Deus. Ele também vive. Vive e é fonte de vida. A vida mostra-se fecunda, expansiva. A vida cria mais vida, multiplica-se. Se nos perguntarmos: o que faz o Espírito Santo? A resposta é: ele dá vida, liberdade, o dom da palavra, força para agir, cria o povo de Deus.

Livros importantes para aprofundar a pneumatologia Combliniana:

  1. O Tempo da Ação. (1982/Vozes)

  2. A Força da Palavra. (1986/Vozes)

  3. Vocação para a Liberdade. (1998/Paulus)

  4. O Povo de Deus. (2002/Paulus)

  5. A Vida: Em busca da liberdade. (2007/Paulus)

 

3. A Ação Cristã no mundo.

Comblin declara “a igreja está a serviço no mundo. Não pode sair dele”. 10 Não existe uma possibilidade de os cristãos se alienarem e simplesmente fecharem os olhos para a realidade que lhes está aberta. Partindo da experiência de ver a realidade social tão difícil e poucas comunidades cristãs (especialmente evangélicas) assumindo a sua missão de contribuir para melhorar tal situação, surge a pergunta: Que tipo de fé cristã pode motivar essas pessoas a saírem dessa insensibilidade ou apatia? Um dos motivos fundamentais para que me aproximasse do Comblin se deve ao fato de que diversos seguimentos da igreja cristã evangélica procurar viver o evangelho de um modo alheio aos problemas sociais fundamentais do nosso tempo, especialmente alheio aos temas que se relacionam com as necessidades básicas do ser humano. Sempre que abordava em minha pregação (como convidado em alguma igreja) temas relacionados a questões sociais, percebia claramente o desconforto de várias pessoas. Compreendi que uma vez que os cristãos fazem parte da sociedade, podem tornar-se capazes, a partir de uma compreensão clara da implicação da fé em suas vidas, de contribuir com a mesma, de forma ativa e comprometedora. Diz Comblin:

A ação cristã vai buscar a pessoa esquecida, a pessoa que não cabe dentro das estruturas e das categorias e coloca essa pessoa no centro da atenção. Trata-se de um descobrimento da pessoa negada pela sociedade estruturada e estabelecida. A ação social da Igreja é sempre a busca da ovelha perdida. Trata-se de reabilitação pública e efetiva dos rejeitados, reabilitação e acesso ao estado de pessoa do pecador numa sociedade imbuída de valores morais, do não observante numa sociedade religiosa, do escravo numa sociedade escravocrata, do desocupado numa sociedade de trabalho, do homem sem capital numa sociedade capitalista, da mulher numa sociedade machista, do louco numa sociedade de sábios, das crianças numa sociedade adulta, de todas as fontes de insegurança numa sociedade baseada na segurança, dos hereges numa sociedade de ortodoxos, dos doentes numa sociedade de atletas. A libertação não consiste numa mudança de estruturas sociais, o que teria por consequência a pura substituição de certos grupos dominantes por outros sem mudar o valor fundamental que é a segurança. Uma humanidade livre é uma humanidade que se deixa interpelar por todas as pessoas que não lhe oferecem nenhum interesse, nenhum valor, que não oferecem nenhum poder novo, nenhuma garantia, mas apenas riscos e ameaças de perturbação. A partir dessa prática iniciada por Jesus, o Espírito inventou e suscitou uma história de liberdade da qual conhecemos apenas a aurora e que será o tecido do desenvolvimento do reino de Deus neste mundo.”11

Para a reflexão sobre a ação cristã no mundo, Comblin evidencia dois eixos fundamentais: sobre quem a realiza, e porque a realiza. Neste sentido a centralidade do ser humano é essencial: “A humanidade não é um termo entre tantos outros dentro da Teologia, mas é o seu centro12. Em consonância com a teologia da libertação, assume a compreensão do humano a partir da opção preferencial pelos pobres. A partir daí abandona o projeto de oferecer um modelo pronto de humanidade, e tende sobre as suas necessidades e demandas para analisar as ações a propor e as reflexões que podem restaurar o respeito e a dignidade ao “não-homem13

 

4. A relação Deus-Planeta

François Houtart afirma:

É verdade que ele (Comblin) não tratou de forma sistemática a questão das relações com a natureza e focou mais os efeitos do sistema econômico dominante sobre as relações sociais, especialmente sobre os grupos e as pessoas mais vulneráveis. No entanto, abordando o neoliberalismo como sistema, ele estava consciente que esse sistema constitui uma agressão à natureza. As preocupações de seus colegas teólogos brasileiros Leonardo Boff e Frei Betto não lhe eram desconhecidas” 14

 

Tudo indica que Houtart não teve acesso a dois importantes artigos: Deus e Natureza (Escrito para Agenda Latino-americana 2010) e Sustentabilidade e Cidade (Conferência para a Soter 2008). Neles, Comblin nos deixa a par da situação acerca do planeta:

O drama não é apenas que os recursos são limitados e que a terra já não agüenta mais a exploração atual. O drama é que as classes dirigentes, os chefes da economia querem uma exploração mais forte ainda e um esgotamento mais rápido dos recursos naturais. Querem o aquecimento global e as perturbações climáticas porque não querem mudar a estrutura da economia. O drama é dirigido por criminosos que dominam os chamados governos, que na realidade não governam nada.15

Comblin sabe que a situação atual do planeta é dramática e aponta de forma objetiva como a exploração da terra tem ocorrido e para que têm “servido” a terra

Hoje em dia tudo aparece limitado e além disso tudo já está contaminado. Dizem que essa contaminação já é irreparável e que somente se pode limitar a sua expansão no futuro: O ar está contaminado, o mar está contaminado, os rios, a terra. Os animais e as plantas estão ameaçadas. Muitas espécies já desapareceram e milhares de outras podem desaparecer nos próximos anos. A própria alimentação poderá ser em breve um problema agudo porque as elites sociais se reservam tudo o que é disponível. Hoje a terra serve para plantar cana de açúcar para que os carros possam circular nos Estados Unidos com um custo mínimo.

Comblin é enfático e realista, coloca que desde sempre a ambição dos pais tinha sido entregar aos filhos um mundo melhor, melhores condições de vida, mais oportunidades. Agora sabemos – embora a maioria não acredite que os pais vão entregar aos filhos um mundo pior, com condições de vida piores. Quais respostas Comblin apresenta? O que fazer?

1. As religiões podem agir na mente dos seres humanos, despertar as consciências e exortar para a ação.

2. É preciso ouvir os camponeses cristãos que haviam feito à descoberta de Deus nos seus campos, nas florestas, na natureza que os rodeava.

3. É preciso também ouvir os místicos que descobriram Deus na criação. O que eles têm a dizer sobre a relação Deus-Natureza?

4. Finalmente, apresenta o que ele chama de “a única saída”, fala da educação das crianças. Não é mais possível apostar nos adultos, aliás, são eles com seu egoísmo gerado pelo capitalismo que torna dramática a sobrevivência na terra. As crianças podem ser convencidas. Os adultos já estão manipulados pelos donos do mundo. “As crianças podem entender o que está acontecendo, ser convencidas e conservar essa convicção até o momento em que poderão escolher governantes que saibam governar, ou, sejam pessoas com a cabeça livre e decididos a destruir o domínio dos czares da economia.” As crianças podem aprender atitudes de respeito, de cuidado, de carinho para com as plantas e os animais que os adultos vão adquirir dificilmente.

Comblin sabe que as força econômicas ligadas aos grandes grupos financeiros e das multinacionais podem contar também com as forças bélicas e militares, especialmente dos Estados Unidos e Europa. Trata-se de uma verdadeira guerra contra a vida e contra o planeta. O resultado é visível, grandes massas populares excluídas e condenadas a sobreviver com as sobras e redução da remuneração do trabalho16. Quanto ao planeta, Comblin é enfático, a situação deve continuar dramática. Os recursos estão cada vez mais escassos e a terra já não suporta mais a exploração. O drama tende a aguzidar-se. Seres humanos, especialmente pobres e trabalhadores, animais e plantas são ameaçados constantemente. Nas palavras de Comblin, “a terra está morrendo porque está sendo explorada de uma maneira tal que não consegue recuperar-se. Isto constitui um desafio novo na história da humanidade. Nunca se tinha pensado que os recursos da terra seriam de tal modo limitados. Mas a maioria da humanidade não consegue se convencer. Não acredita nas denúncias feitas por tantos especialistas.” 17 O sistema atual não se preocupa com a destruição material (planetária) e moral (humana) provocado.

Não é possível pensar Deus a partir de uma perspectiva dogmática ou metafísica puramente. Assim como pensar a natureza a partir dos recursos que dela provem. Em Comblin, a existência de Deus não é um dogma exclusivo da religião cristã. Porque, estritamente falando, os dogmas são considerados como resultado da auto-revelação de Deus. E, portanto, supõem já a existência do que aí se revela. O que é objeto da revelação é o que esse ser é e, sobretudo, como atua. E, portanto, que sentido tem para o homem. Deus é visto ou percebido no pensamento do Comblin sempre em sua relação com o mundo. Num artigo publicado em outubro de 2014 sobre os objetivos da teologia no século XXI, em que Comblin parte da distinção entre religião e evangelho, apresenta-nos a ideia popular que se tem no mundo católico,

A maioria dos católicos entende pela palavra Deus uma ideia de Deus comum a toda a humanidade com formas diferentes. Deus seria um Deus cósmico. Está dentro do cosmos como seu criador ou organizador. É todo poderoso, eterno, omnisciente, capaz de castigar ou de recompensar, sensível às orações e sequioso por sacrifícios e doações É preciso pedir-lhe perdão e pagar esse perdão com vários serviços. E parte do universo no mais alto nível, sentado no céu de onde dirige o mundo inteiro. É o autor da ordem ou do que os seres humanos chamam de ordem do mundo e que na realidade é a desordem do mundo. Não quer que se mude essa ordem.

Acreditam que conhecem a Deus, mas não o conhecem. Conhecem apenas uma ideia comum a toda a humanidade sob muitas formas diferentes. Não conhecem a Deus porque a Deus ninguém jamais avistou e ninguém sabe o que ele é. Se acreditam que o conhecem, se equivocam e enganam aos demais.18

Sobre a questão Deus, dois pontos fundamentais precisam ser colocados, o primeiro diz respeito ao fato de que Deus se deu a conhecer na vida de Jesus. Jesus nos deu a conhecer por meio de ações e palavras, compaixão e misericórdia. Nunca disse o que era o Pai de modo teórico. Nisso fez caducar qualquer discurso sobre Deus e qualquer teologia que são construções humanas. O segundo ponto diz respeito a força de Deus, que segundo Comblin, consiste no testemunho e no amor aos desprezados, pecadores, vitimas pobres em geral. Essas são suas forças. É um Deus muito diferente dos deuses imaginados pelas religiões, inclusive pela religião cristã.

 

1 SOUZA, Alzirinha. Teologia da Enxada:Evangelização inculturada e inculturante. Ciberteologia. Revista de Teologia e Cultura – Ano VIII, n.38.

2 COMBLIN, José. O que é a Verdade? Paulus, 2005. São Paulo – SP

3 COMBLIN, José. A Força da Palavra. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p.380.

4 Ibidem, p.382.

5 Gemeleira Soares, Sebastião Armando. “É preciso começar tudo de novo”. In: Novos desafios para o Cristianismo: a contribuição de José Comblin. Org. Eduardo Hoornaert. São Paulo, Paulus 2012, p.94

6 COMBLIN, José. A vida em busca da liberdade. São Paulo, Paulus, 2007. P.7.

7 Ibidem. P.9.

 

8 Opção citada, p.11.

9 Opção citada p. 16.

10 COMBLIN, José. Cristãos Rumo ao século XXI. Nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996, p.6.

11 COMBLIN, José. A liberdade cristã. São Paulo, Paulus, 2009.

12 JOSÉ COMBLIN, Antropología Cristiana, Paulinas, Madrid, 1987, p.13.

13 A expressão “não – homem”, é utilizada por Comblin, para definir a pessoa que é impedida por razoes externas ( econômicas, sociais, políticas, psicológicas e religiosas) de dentro do curso de seu processo histórico, de integrar todas as dimensões humanas.

14 Houtart, François. José Comblin e os novos desafios da teologia da libertação: a relação com a natureza. Em “Novos desafios para o cristianismo: a contribuição de José Comblin. Hoornaert (Org.) São Paulo, Paulus, 2012.

15 COMBLIN, José. Deus e Natureza. Artigo apresentado pela revista Latino-americana, 2010.

16 COMBLIN, José. A vida em busca da liberdade. Paulus, 2007. São Paulo – SP.

17 COMBLIN, José. Deus e a natureza. Artigo escrito para a agenda latino-americana 2010.

18 Os objetivos da teologia no século 21 - Publicado em Domingo, 12 Outubro 2014 11:01

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