Questionamentos após Medellin: o sacerdócio

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Ao dinamizar a formação de Comunidades de Base (CEBs) por toda a América latina, Medellin abriu um campo de questionamentos acerca do sacerdócio. Qualquer sacerdote que tem uma experiência em Comunidades de Base, sabe por experiência que a imagem tradicional do sacerdote que aparece na comunidade para celebrar missa, administrar sacramentos, executar ritos e liturgias é substituída, aos poucos, pela imagem do sacerdote que fica no círculo, ao lado de leigos e leigas, escutando e interferindo de vez em quando. Aos poucos, muitas vezes sem tomar consciência disso, esse sacerdote resgata a imagem antiquíssima do ‘mestre’, que caracteriza o movimento de Jesus nos primeiros séculos.

Efetivamente, o movimento de Jesus nasce em oposição ao sistema sacerdotal hegemônico na religião judaica da época e opta por uma atuação por meio de um tipo de liderança em vogas no sistema sinagogal. Daí a experiência com mestres, profetas, doutores, rabinos, rabis, nomes diversos a indicar lideranças não sacerdotais. Esses mestres se destacam por suas qualidades pessoais, não são investidos de poder por meio de uma legitimação (ordenação) por parte de alguma instância, não recebem pagamento por seus serviços nem se distinguem por alguma roupa especial. Emanados do sistema sinagogal judaico, esses mestres modelam o movimento de Jesus, pelo menos até a segunda parte do século II. É um modelo sem Templo nem sacerdócio, sem ritos nem ordenamentos, um movimento centrado na ação alimentada pela leitura e observância da Palavra de Deus na cotidianidade da vida. Até Constantino (século IV) não há distinção entre pessoas sagradas e profanas no seio do movimento de Jesus. Todos são leigos, entre os quais alguns se destacam como ‘mestres’.

O clero como classe separada do laicato é uma inovação do século IV. A estrutura clerical traz consigo o postulado da religião: é pela religião que se introduz o evangelho. Esquece-se que, nos pressupostos iniciais do movimento de Jesus, a diferenciação entre religião e evangelho é fundamental, como acabamos de considerar no ponto anterior: o evangelho se vive na vida real, material, social, enquanto a religião se vive num mundo simbólico. Se, ainda hoje, a religião católica tem como modelo a cultura clerical romana, é por um tipo de resiliência particularmente resistente.

A partir da vida vivida e sem praticamente nenhuma teorização, a primitiva imagem do mestre reaparece nas CEBs. É pela experiência que se percebe que a lógica da Comunidade de Base, expressão concreta da opção pelos pobres, não combina com o sacerdócio tal qual é vivido tradicionalmente. Em outras palavras, as comunidades postulam um ‘novo tipo’ de padre. Nesse sentido, como exemplo, Dom Romero, o bispo assassinado, pode ser apresentado como exemplo de um mestre cristão na América Latina, pois ele deu sua vida proclamando a Palavra de Deus diante de situações de extrema injustiça. Ele não invocou sua autoridade na hierarquia, mas unicamente a autoridade da Palavra de Deus que ele interpretou em função da situação de seu país, e pela qual ele morreu.

Eduardo Hoornaert