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O pensar a partir do corpo e da cultura – provocações de Ivone Gebara

De onde viemos, quem somos nós, por que somos o que somos, essas são perguntas que, segundo Ivone, a filosofia tratou ao longo de sua história. Mas essas perguntas, que tiveram respostas diferentes, e até misturaram questões de filosofia e religião, também geraram outras questões. Se do “quem somos nós”, deriva, por exemplo, “somos animais políticos”, então, o que é a política? Se alguém diz “é preciso ter ética na política”, quem explicita o que é ética é a filosofia. Mas se esta ética for “agir segundo a lei”, quem define a lei? Esse esquente foram pinceladas para o que estará no centro dos debates do curso.

Por Paula de Andrade

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Doutora em Filosofia pela Universidade Católica de São Paulo e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), Gebara nos recorda que ao longo dos séculos, considerando toda uma história do mundo ocidental que começa com os gregos, quem fez filosofia foram os homens.

O mundo não começou na Grécia antiga, muito menos a filosofia ou a religião, bem sabe Ivone. Tanto que encerrou a noite chamando ao centro dos debates as tantas Áfricas e tantas Ásias, povos negros e indígenas, o pensamento que foi ocultado. Mas é ao pensamento dominante que ela dirige seu olhar e a sua crítica neste curso introdutório à filosofia feminista, questionando séculos de afirmação de uma superioridade ontológica masculina.

Superior por quê?, pergunta. Seria por ser o corpo feminino mais dado à materialidade e não propenso ao pensamento? Seriam as mulheres “homens inferiores”? Não teríamos a completude do “ser humano”? E qual seria essa parte que nos faltaria? A plateia do curso, quase que completamente composta de mulheres, compartilha de seus pensamentos e com ar cansado (por constatar) responde-lhe: “o falo…”.

Com essas provocações iniciais do curso, Ivone faz a crítica a uma tradição filosófica que, segundo ela, não apenas afirmou que “somos seres racionais” – sendo o homem branco, heterossexual como universal. Também definiu “homem” como definição de uma humanidade composta de seres “racionais e mortais”. E trazer a morte para esta autodefinição tem e teve profundas consequências para o pensamento filosófico sobre o que seria o viver. Ivone questiona: por que não se afirmar, mesmo nos sabendo mortais, que vivemos para a vida? O ser racional definido ao longo de séculos de filosofia praticada pelos homens é o ser da Razão masculina, e essa Razão pensa a política, a economia, o genocídio, a raça pura, os preconceitos. Nós, mulheres, somos sujeitos despossuídos ou não contemplados por essas filosofias. Romper com essa Razão que estabeleceu esse “quem somos nós”, é o que fazer da filosofia feminista, que menos se atém – ou não se atém apenas – ao “quem somos nós” ou de onde viemos, para dirigir-se ao “o que” queremos, e “quem” quer no Ser – que é aqui, agora, hoje.

Pensar a partir do corpo e da cultura, segundo Ivone, seria reconhecer que meu corpo todo tem racionalidade. Para Ivone, a racionalidade vislumbrada pela filosofia feminista é uma racionalidade do corpo, pois a racionalidade não subsiste ao corpo, como nos fizeram crer “os filósofos”. “Se tenho dor de cabeça, meu pensamento se atrofia, não é?” Para Ivone, embora alguns órgãos sejam mais vitais que outros para esta racionalidade, a racionalidade é do corpo em sua integralidade.

E Ivone vai mais adiante. Pensa a cultura e insere as mulheres a partir da filosofia feminista não apenas questionando o humano, mas o seu contraponto, o “desumano”. Ela diz: ao exclamar, numa desgraça, por exemplo, “como é desumano!” implicitamente dizemos que o ser humano é bom. Mas não é. Para Ivone, o melhor seria dizer simplesmente: é “também bom”. Assim, propor uma filosofia feminista implicaria em reconhecer o ser, os seres humanos, como “misturados”. Ver-nos constituídos por essa “mistura”, segundo Ivone, é que vai fazer avançar a história. Esse reconhecimento é uma das reflexões que pontuou na noite de ontem e que deverá aprofundar nas próximas sessões do curso.

De acordo com Gebara, a percepção das injustiças como uma percepção da violência só é possível porque todos nós, mulheres e homens, compreendemos em nossas entranhas o que é a violência, porque somos capazes de ser violentos, mesmo que em nossas vidas consigamos manter o controle ou não reagir com violência diante de uma situação que nos revolte profundamente.

Dizer “basta” seria uma reação ao me sentir violentada, mas quando sou contra a violência, sou produtora de outras violências, afirma Ivone. Polêmica em sua reflexão, ela provocou diversas questões vindas das participantes e prosseguiu seus argumentos. Um deles ressaltou que não é de forma alguma agradável um pensamento feminista frente ao mundo. Não é mesmo um pensamento que agrada a todos, antes um pensamento que desarranja as lógicas das opressões. “Ser feminista não é ser agradável”, nas palavras de Ivone. Dizer que o ser humano é racional e violento seria mais confiável como reflexão ontológica, se bem compreendemos sua percepção.

A partir de sua experiência pessoal, Ivone também refletiu sobre a violência a partir de um outro prisma: “Por exemplo, a violência que sofri me disse interiormente: ‘vai adiante, porque que quem está contra você também está contra os pobres e contra as mulheres’. E, com isso, essa violência se transformou numa força positiva para mim”.

Neste percurso de sua reflexão, Ivone Gebara destaca ainda que a filosofia feminista, assim como o feminismo, não significa uma oposição aos homens, mas sim que não mais nos ajustamos à definição do que seria “ser humano” no dizer dos “filósofos”. Seria reconhecer que nossos corpos pensam – sim pois pensamos com o corpo, relembra-nos Ivone. E nossos corpos exigem outra forma de conceber ética, democracia, política, economia, relação com a natureza, entre outras questões do existir em si e de si com o mundo.

O curso Introdução à filosofia feminista prossegue até esta sexta, 24, no auditório da Fafire, onde pode ser encontrado o livro de mesmo título, de Ivone Gebara.

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