logo teologia nordwste

JOSÉ COMBLIN E A IGREJA DOS POBRES

 

de Hermínio Canova

José Comblin and a Church that has made an option:

A Church with the Poors”.

 1. INTRODUÇÃO.

 Falar ou escrever sobre a vida de José Comblin (1923-2011) é para mim tarefa fácil e gratificante.Tive a oportunidade de encontrá-lo em várias ocasiões, compartilhando preocupações e alegrias quanto a vida do povo e a caminhada da Igreja. A pedido dele colaborei na Escola de Formação Missionária de Mogeiro (PB).

 

 

Quero lembrar José Comblin como padre diocesano, missionário, pedagogo da fé cristã, teólogo da libertação, cientista político, mas sobretudo e acima de tudo como teólogo do Povo de Deus e educador dos leigos e das leigas comprometidos/as com a caminhada e as lutas das comunidades do campo e das periferias. Lembro também José Comblin como assessor e amigo das grandes figuras da Igreja dos Pobres da América Latina, aqueles grandes profetas tais como Helder Câmara (Brasil), Manuel Larrain (Chile), Leônidas Proaño (Ecuador) e muitos outros.

 

Mas o objetivo específico deste meu trabalho é apontar José Comblin como um autêntico “doutor da Igreja dos Pobres” do nosso continente, pelo trabalho de articulação e formação missionária, pela reflexão e vasta obra escrita. Comblin soube articular a grande cultura que ele possuía com a fé e a experiência de vida do Povo Pobre da América Latina. “Doutor”, na Igreja, é aquele que dá visibilidade e sistematiza as experiências de fé do povo cristão. Mais adiante, neste trabalho, procuro definir melhor este conceito e entender como pode ser aplicado este título à pessoa de José Comblin.

 

 

 

2. JOSÉ COMBLIN MISSIONÁRIO.

 

Comblin deixou a Europa e se inseriu na caminhada da Igreja da América Latina, atuando em diversos países, sobretudo no Brasil, no Chile e no Ecuador. Já na sua primeira experiência pastoral na Europa, na Bélgica, Comblin tinha percebido que o Cristianismo e a própria Igreja Católica tinham entrado, naquele continente, num processo de envelhecimento e decadência. Procurou a América Latina, tendo a informação que aqui o Cristianismo era mais dinâmico e criativo e que a Igreja Católica entrava por novos caminhos e novas práticas libertadoras, buscando novas formas de organização comunitária e de militância cristã.

 

Em 1958 começou a “aventura” missionária e teológica de Comblin no nosso continente. Tornou-se dentro de poucos anos um grande protagonista na construção dos fundamentos e passos educativos de um novo modelo de Igreja e na elaboração de uma teologia latino-americana chamada depois “da Libertação”. Comblin na perdeu tempo: viajou, articulou, apoiou os bispos mais comprometidos porque acreditava que eles eram os pastores que deviam conduzir o Povo Cristão pelos caminhos da fé libertadora.

 

Homem de profunda espiritualidade e de vasta cultura, Comblin analisava criticamente os processos políticos e sociais e percebia as tendências para o futuro. Foi protagonista de um novo modo de fazer teologia e dedicou muito tempo à fundação e acompanhamento de várias Escolas de Formação para leigos e leigas vocacionados/as à Missão, no Nordeste do Brasil, no Chile e no Ecuador.

 

Membro da Igreja Católica, Comblin foi amigo-irmão de Teólogos e Pastores desta sua Igreja e de outras Igrejas Cristãs.

 

 

 

3. A IGREJA DOS POBRES NA AMÉRICA LATINA.

 

O berço onde nasceram as práticas e formulações deste novo modelo de Igreja foi sem dúvidas a Religiosidade Popular dos povos latino-americanos. Particularmente o Catolicismo Popular do Brasil com suas práticas religiosas e com suas formas de resistência diante do catolicismo oficial e nas lutas pela vida, foi o espaço e a fonte do modelo que mais recentemente foi chamado de Igreja dos Pobres.

 

Durante o Concílio Vaticano 2º (1962-1965, em Roma, Itália), 40 bispos conciliares (a maioria latino-americanos), em sintonia com o sonho do Papa de então João 23 de uma ‘Igreja pobre a serviço dos pobres’, desceram nas catacumbas dos primeiros cristãos e lá assumiram o compromisso de voltarem para seus países e suas igrejas para viverem pobres ‘no meio do povo’. Acertou-se na ocasião o “Pacto das Catacumbas”, alguns poucos pontos/compromissos concretos para uma Igreja despojada de riqueza e poder, servidora da humanidade e dos pobres.

 

O Pacto das Catacumbas é o certidão de batismo desta nova formulação e novo modelo de Igreja. Os bispos que assinaram o documento se comprometiam a viverem em pobreza, renunciando a todos os símbolos ou privilégios do poder e colocando os pobres no centro de seu ministério pastoral. Vale a pena lembrar alguns pontos do documento:

Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje, nas insígnias de matéria preciosa; nem ouro nem prata. No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos”.

Este documento e o compromisso assumido por aqueles bispos lá nas catacumbas dos mártires cristãos, em Roma, serão fonte de inspiração na tomada das grandes decisões, como veremos mais adiante, na Conferência de Medellín.

 

Quanto aos desafios que esta peculiar experiência de Igreja suscitou desde o começo, não cabe aqui aprofundar muito. Lembro só as questões que foram levantadas ao longo da caminhada: qual é o papel dos leigos na evangelização? em que sentido a Igreja “è” dos pobres? qual é a relação com a hierarquia? Esta experiência é um elitismo, um vanguardismo popular cristão? Qual relação entre as CEBs e as massas? Optei para colocar aqui só algumas afirmações sobre o assunto do teólogo residente na Bolívia, Victor Codina (1990, p. 223-224):

 

(na América Latina) as mudanças e evoluções sociais puseram em questão a Igreja de cristandade. A Igreja de cristandade tem relação com a dimensão do poder institucional; a Igreja dos pobres, com a vida. Mas estas duas Igrejas não se pode opor de forma maniqueísta: a Igreja dos pobres nasce da Igreja de cristandade. O importante não é destruir o modelo da Igreja de cristandade, mas favorecer o surgimento da Igreja dos pobres, que, embora minoritária, tem força espiritual e qualitativa. Digamos novamente que a Igreja libertadora ou dos pobres não é seita, ou Igreja paralela à Igreja institucional, mas um movimento de renovação no interior da Igreja universal, e em comunhão com ela. É um movimento profético que se realiza a partir de uma experiência espiritual e teológica nova, como se dá nas CEBs e nos movimentos populares cristãos. ......Para a América Latina, optar pela Igreja libertadora não é moda nem veleidade, é conseqüência da necessidade de optar pelos pobres, como resposta ao sinal dos tempos de seu clamor ingente. Mais ainda, é conseqüência da opção dos mesmos pobres pela Igreja. .....

O verdadeiro conflito na América Latina não se dá entre a hierarquia e o povo, entre a Igreja hierárquica e a Igreja popular, como às vezes se faz crer, mas entre os diferentes modelos de Igreja, concretamente entre o modelo de cristandade (mais ou menos renovado em forma de nova cristandade) e o modelo de Igreja libertadora. De cada modelo participam bispos, sacerdotes, religiosos e leigos. Em todo caso, surge sempre o problema de como passar de um modelo de Igreja para outro, de como passar de uma chave á outra”.

 

José Comblin não participou do Concílio de Roma, mas acompanhou tudo e escreveu muito para ajudar a entender as mudanças trazidas por aquele evento. Comblin percebeu as novidades e mudanças possíveis na Igreja e começou uma grande atividade de viagens, contatos, escritos, articulações a fim de refletir, formar pessoas e consolidar o modelo de Igreja Povo de Deus nos países e dioceses por ele freqüentados.

 

 

A preocupação, quase uma angustia, de Comblin era com a evangelização das massas. Ele afirmava:

....os portadores da palavra são essencialmente os leigos. A Igreja é antes de mais nada um povo de leigos..... Os teólogos vão ser os evangelizadores deste mundo? Não certamente. Podem colaborar. Mas os evangelizadores surgirão e estão surgindo do meio dos pobres....O mundo será evangelizado por leigos ou não será evangelizado. ....Se não se faz este trabalho decisivo para o futuro da Igreja que está na América Latina, as massas irão abandonar uma Igreja que de fato já as tinha abandonado” (1986, p. 336).

 

 

 

 

4. A CONTRIBUIÇÃO DE JOSÉ COMBLIN NA CAMINHADA DA IGREJA DOS POBRES.

 

Pretendo destacar algumas das várias contribuições de Comblin na dinâmica de renovação permanente da Igreja e no seu compromisso com o povo. Possivelmente ele se inspirou na afirmação que sempre fazia dom Helder Câmara de que “precisava mudar sempre para ser sempre o mesmo”; precisava mudar, renovar, inovar sempre para ser sempre fiel ao compromisso evangélico.

 

Comblin deixou a Europa e veio para América Latina. Na América Latina deixou os seminários onde se formam os padres como “quadros” para a Instituição e organizou as Escolas de Formação Missionária, onde se formam os leigos missionários no meio do Povo. Deixou a Academia e optou por uma vida simples e mais perto do povo, para ter condições de repensar a teologia e a tradição de Jesus a partir das comunidades, grupos e militantes das causas sociais. Deixou a cátedra e pegou nas mãos a enxada. No Brasil, Comblin, com o doutorado em teologia na Universidade de Louvânia (!), entrou em sintonia com a cultura do povo nordestino e soube articular o saber acadêmico que possuía amplamente com a fé do povo pobre. Ele fez teologia com os pés na realidade que é sempre cheia de conflitos e desigualdades, de humilhações e injustiças.

 

A atenção de Comblin ficou sempre “colada” aos movimentos sociais. Eu posso testemunhar a presença dele nas grandes manifestações populares, nos Fóruns Sociais e em outras ocasiões, em defesa da vida, da terra e das liberdades. Comblin não perdia a ocasião de observar e refletir sobre as lutas dos “debaixo”, dos movimentos de base, dos que viviam sem os direitos reconhecidos. Conhecia de perto as comunidades camponesas, a cultura dos povos indígenas, manifestava sempre grande preocupação com as massas das periferias das metrópoles e com os ‘novos’ pobres, os desempregados e subempregados do sistema.

 

Estimado teólogo da Libertação, Comblin me parecia mais interessado na libertação do que na teologia: libertação das opressões da história e das alienações da vida. Talvez desejasse mais libertação e menos teologia. Certamente, ele foi um grande apaixonado pela ‘ liberdade’. Educar para a liberdade, ajudar os leigos e militantes a refletir sobre a ‘vocação à liberdade’, viver a liberdade cristã como proposta evangélica fundamental, isso foi a grande missão dele. Comblin acreditava que o núcleo fundamental do Evangelho não era a Caridade, mas a Liberdade, assim como o apóstolo São Paulo a interpretou na sua carta aos Gálatas; “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres.....Irmãos, vocês foram chamados para serem livres”. (Gal. 5).

 

Mas, talvez, a maior contribuição que ele deu à nossa caminhada, seja o próprio ‘Método de análise e de trabalho teológico’ que ele usava. Este método tinha dois pressupostos essenciais. Em primeiro lugar, Comblin refletia e escrevia sobre o que ele fazia e sobre o que ele via, não sobre o que ele imaginava. Portanto para ele a teologia na América Latina era teologia das lutas de “libertação” do pecado social, de toda injustiça e da ruptura com Deus. Para ele, no Nordeste brasileiro, a teologia era teologia “da enxada”, uma reflexão organizada a partir da convivência de jovens missionários com a cultura e a vida do povo camponês. Nada de teologia genêrica e perene, fechada em dogmas, mas uma teologia que surgia da fé e da luta das comunidades e dos militantes.

Um outro aspecto deste método foi a precisão e a pesquisa sistemática que Comblin usava no seu labor científico e teológico; usava dados precisos, frutos de pesquisas e de informações diretas e de constatações pessoais.

 

 

 

5. JOSÉ COMBLIN CIENTISTA POLÍTICO.

 

Comblin, em suas análises políticas, apontavam sempre os problemas estruturais e as questões éticas inerentes ao sistema dominante.

 

Quando percebeu que a Doutrina da Segurança Nacional era uma grande ameaça para os países da América Latina, Comblin com seu espírito crítico e apaixonado pela liberdade dos povos, dedicou muito tempo a este tema e escreveu páginas fundamentais de análise e de denúncia. Alertou a Igreja que esta Doutrina era nefasta para a democracia e a liberdade dos povos. Por causa disso ele sofreu a expulsão dos países que adotara a Doutrina e instauraram regimes de exceção, como o Brasil e o Chile, onde foram fechados por longos tempos os caminhos da liberdade e da participação popular. José Comblin e o bispo brasileiro dom Cândido Padim convocaram a Igreja a se opor com todas as forças à aplicação da Doutrina, de origem norte-americana, no nosso continente; era nociva e antiética, promovia grande segurança para o capital e suas elites, e a total insegurança para o povo.

 

 

 

 

6. COMBLIN E OS “PAIS” DA IGREJA DOS POBRES.

 

Como surgiram tantos profetas e mártires na Igreja da América Latina, nos anos de 1960, 1970 e de 1980? Depois do Concílio Vaticano 2º (1962-1965), um grupo de bispos liderados por dom Helder Câmara e dom Manuel Larrain, preparou a Conferência do Celam, em Medellín/Colômbia. (1968). Neste grupo haviam bispos que tinham descido nas catacumbas de Roma para ”beber” daquela experiência cristã originária. O evento/Medellín foi considerado um verdadeiro pentecostes do Espírito de Deus. Não foi uma aplicação mecânica do Concílio ao continente latino-americano; naquele momento os bispos sabiam que estavam fundando a Igreja latino-americana, na opção pelos pobres. O tema central da Conferência, de modo inesperado, se tornou a pobreza: a pobreza e a miséria social do continente, e a pobreza evangélica da Igreja como testemunho necessário diante da situação. Na Conferência eclesial seguinte, em Puebla (1979), houve fortes debates sobre a presença e missão da Igreja no continente. O episcopado estava dividido, mas o grupo de bispos proféticos teve a coragem e a capacidade de confirmar Medellín, consolidando a caminhada da Igreja Povo de Deus e segurando as decisões anteriores, sobretudo a opção preferencial pelos pobres. Naquele momento era já uma plêiade o número de bispos/profetas e muitos deles são considerados ainda hoje referências como mestre da fé, profetas e mártires. Vale a pena lembrar alguns nomes destes fundadores da Igreja da América latina e da nova caminhada.

 

Uma primeira geração de bispos pastores/profetas da Igreja da América Latina e que Comblin conheceu de perto são: Helder Câmara, Manuel Larrain, Leônidas Proaño, Ramón Bogarín, Gerardo Valencia Cano, José Dammert Bellido, Raul Silva Henríquez, Marcos McGrath, Sergio Mendes Arceo, Samuel Ruiz.

Apareceu uma segunda geração de bispos/profetas: lembro, sobretudo, os brasileiros Aloisio Lorscheider, Paulo Evaristo Arns, Luciano Mendes, Antônio Fragoso, José Maria Pires, Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno.

Este episcopado profético da América Latina tem seus mártires: Henrique Angelelli (Argentina), Oscar Romero (El Salvador), Juan José Gerardi (Guatemala).

De modo algum a lista pode ser exaustiva.

 

Comblin conheceu de perto muitos destes bispos, colaborou e se tornou amigo. E foi o próprio Comblin que, diante do testemunho destes bispos, construiu a expressão “os Santos Padres da Igreja do Povo de Deus da América Latina”.

 

Estes Santos Pais (ou Santos Padres) da Igreja latino-americana foram protagonistas de um longo período eclesial e foram capazes de recuperar a dimensão profética no ministério episcopal. Pela fé que eles tinham, pelo estilo de vida simples e austero e pelo amor incondicionado aos pobres, aqueles homens tiveram a intuição profética de uma Igreja evangelicamente pobre e perto dos pobres. Eles buscaram criativamente e às vezes com grande ousadia novas formas de presença e de empenho a partir da opção pelos pobres. Eles se tornaram e são até hoje fonte de inspiração de novos caminhos de esperança e de seguimento evangélico, não só na América Latina.

 

Comblin participou desta história; intuiu a beleza da aventura de acompanhar e refletir junto com estes pastores do povo e mestres da fé, e colocou toda sua experiência e toda sua inteligência a serviço desta nova caminhada da Igreja. Em João Pessoa (PB), em Talca (Chile), em Riobamba (Ecuador) e em outros lugares, Comblin se tornou irmão e assessor dos bispos e pedagogo da fé dos missionários e missionárias do meio popular nestas igrejas. É verdade que Comblin refletia sempre de modo crítico qualquer novidade e desconfiava de certas afirmações e euforias, mas sempre testemunhou e acreditou num novo amanhecer da Igreja a partir do povo e dos leigos.

 

A Igreja do continente, na sua dimensão mais profética e evangélica, criou esta ‘nova patrística’. Ela tem portanto seus “Santos Pais” como tem o testemunho heróico dos seus mártires. E talvez, na elaboração de uma teologia latino-americana em perspectiva feminina temos a oportunidade de encontramos os critérios de discernimento de uma possível “matrística latino-americana”.

 

Neste modelo de uma Igreja latino-americana e dos Pobres é reconhecido em alguns de seus membros o carisma de “Doutor da Igreja”?

 

A Igreja Católica, em sua longa história, reconheceu em alguns dos seus membros o título ou carisma de “Santos País“, em outros o carisma de “Doutores da Igreja”. A Igreja Católica tem hoje oficialmente 33 Doutores: 30 homens e 03 mulheres (!).

Lembramos os mais conhecidos. Da época patrística (até o 5º século) destacamos Basílio de Cesaréia, Gregório Nazianzeno, Ambrósio de Milão, João Crisóstomo e Agostinho de Hipona. Na época medieval: Gregório Magno, Antônio de Pádua, - o mais famoso - Tomás de Aquino e Catarina de Sena. E na época moderna: Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux.

É pelo menos interessante que os últimos 3 ‘mestres’ que receberam este reconhecimento oficial da Igreja foram mulheres: Teresa de Ávila e Catarina de Sena, em 1970. Surpreendeu, em 1997, o reconhecimento de “doutora da Igreja” dado a uma jovem francesa, monja carmelita, Thérèse Martin (1873-1897); ela não era teóloga, mas escreveu uma original “história de uma alma”, obra de profunda espiritualidade.

 

Mas a Igreja latino-americana e dos Pobres tem também os seus ‘doutores’? Quem poderia ser ‘doutor da Igreja dos Pobres’? Qual é a função dos Doutores? Por que a Igreja precisa dos Doutores?

 

 

 

 

7. JOSÉ COMBLIN “DOCTOR ECLESIAE”.

 

Proponho que seja reconhecido em José Comblin o carisma de “Doutor da Igreja dos Pobres da América Latina”, pelo exemplar testemunho de fé e pela preciosa inteligência teológica colocada a serviço do povo. O teólogo e historiador Bernard McGinn afirma no seu trabalho sobre os doutores da Igreja (1999, p. 51):

 

Os Doutores da Igreja vivem não só na veneração e memória de que são objeto como santos, mas sobretudo em seus escritos. Os Doutores existem para serem lidos e estudados”.

 

Não tenho aqui o espaço, e não é oportuno no momento, fazer uma análise sobre como o conceito de “doutor da Igreja” nasceu e se desenvolveu na Igreja Católica. Problemático é sempre o nível ou a instância em que foi tomada a decisão de outorgar este título a um membro da Igreja. Mas vale neste momento e sobre este assunto a conclusão de McGinn (1999, p. 298):

 

Os Doutores são hoje sempre vitais para o magistério da Igreja e para o progresso da teologia. Não cabe aos teólogos estabelecer quem deve ou não deve ser reconhecido como doutor, porque os pareceres de qualquer teólogo são individuais e pessoais, e porque os doutores estão a serviço de uma comunidade bem mais ampla e que abrange séculos, mais do que a maior parte dos teólogos possa esperar. Não devemos esquecer que nem os Papas “fazem” os doutores. Como papa Paulo VI nos lembrou, os papas não criam os doutores; eles simplesmente reconhecem só o que o Espírito Santo pode dar e tem dado a muitos homens e mulheres na história da Igreja”.

 

A obra escrita de Comblin é reconhecida pelo Povo Cristão da América Latina como uma referência, um inteligente e precioso aprofundamento e compreensão da fé cristã e do seguimento de Jesus Cristo. Na realidade, os escritos de Comblin são de fácil acesso para os leigos e as leigas comprometidos/as, missionários/as, animadores de comunidades, padres e religiosas, militantes cristãos e sociais. Comblin traduziu vários temas teológicos em cartilhas, com exemplos da vida e textos bíblicos, para contribuir na formação nas Escolas Missionárias.

 

Jesus de Nazaré” nos abriu “o Caminho” e a “Ação do Espírito Santo” que está presente no mundo como força e luz, é que nos guia como “Povo de Deus” por aquele caminho e suscita em nós a “Vocação para a Liberdade”, para que nos alicercemos na verdadeira “Tradição de Jesus”: é esta a temática fundamental de Comblin e inclusive, são estes - entre aspas - os títulos de alguns escritos dele.

É um grande “magistério” que Comblin nos deixou, magistério para o tempo presente e para o futuro e não só para a Igreja da América Latina.

 

Na questão do magistério e da relação entre ‘pastores e teólogos/doutores’, com grande competência nos ajuda Leonardo Boff (Jornal do Brasil, 28/04/2013):

 

Está comprovado historicamente: a categoria “magistério” atribuída aos Papas é uma criação recente. Começou a ser empregada pelos Papas Gregório XVI (1766-1846) e por Pio X (1835-1914) e se faz comum com Pio XII (1876-1958). Antes “magistério” era constituído pelos doutores em teologia e não pelos bispos e pelo Papas. Estes são mestres da fé. Os teólogos são mestres da inteligência da fé. Portanto aos Bispos e Papas não cabia fazer teologia, mas testemunhar oficialmente e garantir zelosamente a fé cristã”.

 

Quero acrescentar esta minha convicção; Comblin com sua obra teológica rompeu a barreira do “acadêmico” separado do “leigo”; Comblin também não apostou na ruptura polêmica entre intelectuais e pastores na Igreja. Ele optou pela Igreja Povo de Deus e dos Pobres, onde o labor teológico e a inteligência da fé são colocados a serviço da vivência cristã, da formação missionária e das práticas libertadoras dos leigos e das leigas comprometidos com o Reino de Deus.

 

 

 

 

8. CONCLUSÃO.

 

Pode-se dizer que José Comblin não esteja tão interessado, lá no céu, do título de Doutor da Igreja dos Pobres. Pela humildade dele, pela vocação dele à liberdade, pela renúncia a honrarias e rótulos. Comblin nunca falou em definição da sua pessoa, mas é inegável que o testemunho da sua vida, o amor ao povo cristão pobre e sobretudo a valiosa obra escrita, que ele nos deixou, fazem deste sacerdote/missionário/educador um verdadeiro mestre e doutor por muitas gerações de cristãos.

 

Acrescento que, no crepúsculo de sua vida, Comblin “sentiu” que a Igreja dos Pobres tinha perdido seu brilho e que a opção pelos pobres não tinha mais espaço e consideração nos documentos e nos planos pastorais. As opções da Instituição eram já outras. Estava a caminho um processo imposto de restauração do passado contrário às decisões do Concílio e de Medellín. O episcopado já era outro e novas forças e movimentos de caráter conservativo avançavam no continente.

 

Mas a esperança vive ! A história pode surpreender. Depois do papa Pacelli apareceu papa Roncalli, ultimamente depois do papa Ratzinger apareceu um papa latino-americano (!) que sonha com “uma Igreja pobre para os pobres”. O papa Bergoglio inclusive vem convidando os cristãos a se adentrarem com coragem por novos caminhos da pobreza, os das “periferias existenciais” deste mundo, lá onde as pessoas sofrem a solidão, a doença, a marginalização e o abandono; sempre os pobres!

 

O Espírito Santo conduz o Povo de Deus pelos caminhos de Jesus. A Tradição do Nazareno pode tomar novo fôlego. Com certeza, de todos os livros de José Comblin, o último, póstumo, é o melhor!

 

 

 

 

 

9. BIBLIOGRAFIA.

 

Muggler, Mônica Maria. Padre José Comblin, uma vida guiada pelo Espírito, São Bernardo do Campo-SP, Nhanduti Editora. 2013.

 

Comblin, José. O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. (Obra póstuma). São Bernardo do Campo-SP. Nhanduti Editora. 2013.

 

Comblin, José. A força da palavra. Petrópolis, Vozes,1986.

 

Lista completa dos Livros e Artigos de José Comblin. Em Mônica Maria Muggler, Padre José Comblin: uma vida guiada pelo Espírito. Pág. 235-254.

 

McGinn, Bernard. The Doctors of the Church. Thirty-three men and women who shaped Christianity. New York, The Crossroad Publishing Company, 1999.

 

Codina, Víctor. Para comprender la eclesiologia desde America Latina. Estella (Navarra). Verbo Divino,1990.

 

La dottrina della Sicurezza Nazionale. Bologna. EMI-Quaderni Asal,22. 1981.

 

 

 

 

 

Recife, 23 de Maio de 2013. Hermínio Canova

 

 

__

__

© 2024 Your Company. Designed By JoomShaper