GRANDES QUESTÕES SOCIAIS e AMBIENTAIS INTERPELAÇÕES PARA A VIDA RELIGIOSA

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 GRANDES QUESTÕES SOCIAIS e AMBIENTAIS  INTERPELAÇÕES PARA A VIDA RELIGIOSA

 Publicado em Convergência, n. 410, 2008, p.456-472 

José Comblin 

Essas grandes questões foram sintetizadas no documento de Aparecida., e hoje em dia estão na consciência de cada um.. Tudo pode ser simbolizado pela palavra “globalização”. Mas não se trata de buscar o sentido da palavra em si. As questões surgem diante da realidade concreta da globalização. Na realidade é a integração da humanidade inteira dentro de um modelo econômico único dirigido pelos centros financeiros do mundo e estes estão situados sobretudo nos Estados Unidos. Quem manda, são os centros financeiros dos Estados Unidos. Estes impõem um tipo de economia, e por conseguinte, de sociedade, uniforme. Estão impondo a todos os países o regime do livre mercado. Este regime favorece os países mais ricos. Com efeito, os países mais ricos, sobretudo os Estados Unidos, não praticam as leis do mercado. Praticam o protecionismo de diversas maneiras de tal modo que os países mais fracos devem abrir-se a toda a produção dos grandes, e devem produzir o que corresponde às necessidades dos grandes. Isto instala um novo sistema colonial a nível mundial. Os grandes centros econômicos têm um argumento forte. É melhor entrar no mercado numa posição de inferioridade do que estar expulso fora do mercado e não poder progredir em nada, e ficar abandonado no deserto. O argumento convence as elites locais, por exemplo, no Brasil. 

O mercado leva a uma distribuição da economia entre os continentes. Daí o trinômio já famoso: a indústria para a China, a comunicação para a Índia, a agricultura para América latina. O Brasil atual cabe perfeitamente dentro do sistema. 

A globalização tende à supremacia da economia. A política está subordinada à economia. O Brasil oferece também uma boa imagem dessa supremacia. Quem decide são os ministros da área econômica que todos pertencem ao neoliberalismo bastante radical. 

Aparecida insiste especialmente nas conseqüências culturais o sistema. O mercado financia um sistema de propaganda do consumismo que acaba convencendo as massas, inclusive as crianças. Todo ser humano é considerado como consumidor. O resto não importa. Tudo está subordinado ao consumo. A educação consiste em desenvolver o desejo de consumo. O resto não importa. O consumo faz com que a economia funcione. Quando baixa o consumo toda a sociedade fica abalada. 

O Papa e a Conferência fizeram as denúncias, mas não ofereceram conclusões práticas. Ninguém se sente acusado pelas denúncias. E o consumo não vai diminuir. O consumo do Natal cresceu espetacularmente. Não se deu nenhum valor às advertências do Papa ou dos bispos. Precisaria fazer algo mais forte. 

Quanto aos problemas ambientais há algumas observações no documento de Aparecida, inclusive sobre a Amazônia, mas sem aplicações concretas. O governo não tem nem capacidade, nem vontade de lutar contra o desmatamento da Amazônia porque é prisioneiro dos grandes grupos econômicos O governo não tem nem sequer poder para fiscalizar a corrupção dos seus funcionários e dos políticos locais. Menos poder tem uma página no Documento de Aparecida. Precisaria de algo cem, vezes 2 

 

mais forte do que Greenpeace. O documento não denuncia nenhum responsável, pelo desmatamento da Amazônia. O que poderiam fazer os religiosos diante de uma tarefa impossível? Vamos ver algumas possibilidades abertas aos religiosos hoje em dia. A doutrina oficial da Igreja contenta-se com chorar, mas não mostra caminhos. 

Não sei se convém falar em interpelações à vida religiosa em geral. A grande maioria dos religiosos e das religiosas já têm a vida feita. São prisioneiros das suas obras. Têm muitas obras do passado e muitas obras recentes. Não desejam ser interpelados. Por isso, o documento de Aparecida não contem nenhuma interpelação aos religiosos. O ritmo da vida atual multiplica as obras e as instituições Os religiosos seguiram o ritmo. 

Mas, há questões sociais e ambientais que podem interpelar alguns religiosos e algumas religiosas. De qualquer maneira é impossível imaginar mudanças de conjunto. Nunca será possível realizar a unanimidade em nada. Pode se perder m muito tempo procurando resoluções aceitáveis por todos ou todas. É melhor reconhecer que a maioria vai continuar o “business as usual”. Mas alguns podem sentir-se mais interpelados. 

Um primeiro desafio poderia ser o que mencionava um dia pouco antes de Aparecida o cardeal Oscar Rodriguez, arcebispo de Tegucigalpa: uma Igreja adormecida. Ela é adormecida e apesar da perda de credibilidade e da diminuição dos que aderem a ela Aparecida vai despertá-la ? Se for assim os religiosos terão que seguir o mesmo movimento. 

Aparecida diz que é necessário passar de uma pastoral de conservação para uma pastoral de missão, o que é o óbvio, mas que será bom repetir muitas vezes. Passar para uma pastoral de missão é pôr fim a uma história de 15 séculos. Pois, durante 15 séculos a pastoral de missão não foi outra coisa a não ser uma pastoral de conservação estendida à terra inteira. Isto é justamente impossível hoje em dia. 

Uma das questões que surgem da leitura do documento é a imprecisão do conceito de missão. Qual é a finalidade da missão hoje em dia aqui na América latina ? Qual é o projeto? O que é que se pretende fazer para entrar nessa missão? Tudo isso fica indeterminado., e, por conseguinte, se presta a diversas interpretações . Pode ser que o projeto seja aumentar o número de católicos praticantes para parar o movimento de fugas para as Igrejas pentecostais. Nesse caso, basta continuar o marketing católico. Não será preciso mudar muitas coisas. Se se trata de voltar para Medellín y levar as forças vivas da Igreja para as massas populares, o projeto será diferente. Se se trata de apresentar às novas gerações um modelo de vida cristã compreensível, o projeto será também diferente. Tenho a suspeita de que a maioria estaria de acordo com o primeiro projeto, pelo menos interiormente. É a solução mais fácil. 

Aparecida lançou o tema do discipulado, o que é ótimo. No entanto , não aparece claramente em que consiste esse discipulado. O que é ser discípulo hoje em dia ? É fazer o quê? Quais são os gestos, os atos, as atitudes que encarnam hoje o que Jesus fez? Não está claro no documento. Pois, seria impossível e irrelevante reproduzir materialmente o que Jesus fez. O que se espera, são orientações para a prática de hoje. Medellín tinha sido muito claro, mas Aparecida não consegue ser tão claro. 

Medellín deu um documento claro porque estava baseado em experiências concretas, e, particularmente em experiências de bispos. Detrás das palavras havia essas experiências e a leitura do Documento fazia-se a partir dessas experiências. Não aparece quais foram as experiências que podem facilitar a leitura.de Aparecida. 3 

 

Quais são as experiências concretas, sobretudo dos bispos, que revelam o sentido concreto das palavras ? Não consta. 

Por isso, alguns religiosos e algumas religiosas poderiam sentir a vocação de fazer experiências novas. Pois, a caminhada não se faz a partir de teologias, mas a partir de experiências vividas num povo bem determinado. Não esperem que todos estejam de acordo. Esperariam até o fim dos tempos. Neste tempo de Igreja adormecida, a teologia revela-se um discurso vazio e repetitivo. A Igreja não progride a partir de raciocínios teológicos. Nunca houve tantas escolas de teologia e nunca houve tanta esterilidade intelectual A razão é que falta a matéria sobre a qual se pode pensar. 

João Paulo II declarou que a era das experiências estava clausurada. O resultado está ali. O direito canônico nunca foi cumprido tão rigorosamente, mas a Igreja adormeceu. 

Para iniciar experiências novas, não tenho conselho para dar. Por sinal, tudo é imprevisível. Ninguém sabe porque uma pessoa de repente descobre uma realidade e se compromete com ela. Somente posso mostrar alguns aspetos da realidade atual, sem a pretensão de dizer coisas novas. 

A favelização da humanidade. 

A favela é o futuro da humanidade. Basta ver o que acontece na Ásia ou na África, ali onde está a humanidade futura, As aparências são diferentes. Em todos os países estão construindo cidades em altura com todas as comodidades que oferecem as tecnologias. A cada dia a vida dos privilegiados se torna mais confortável. Mas isto é a aparência porque ao lado disso crescem incessantemente as favelas. Mesmo no Brasil, um país relativamente rico, o fenômeno está claro. Como é fácil percorrer uma cidade ou viver nela durante anos sem nunca ter visto uma favela, muita gente ignora essa realidade. Aliás, os urbanistas fazem todo o possível para que a vista das favelas não venha entristecer a vida dos privilegiados. 

Quando dom Helder fundou em 1955 a Cruzada São Sebastião e, depois, o Banco da Providência, tinha a ilusão de poder eliminar as favelas de Rio de Janeiro em poucos anos. 

Hoje, na TV as favelas aparecem como antros de bandidos, refúgio dos traficantes de drogas, lugares de violência armada, onde a cada dia as forças de polícia conseguem prender bandidos, destruir toneladas de drogas, eliminar dirigentes do tráfico de drogas, e no entanto, tudo continua como sempre. A favela seria a anti-humanidade, o espaço vazio de valores humanos. 

A realidade é bem diferente. Há uma civilização das favelas.2 A duras penas os habitantes vão construindo e melhorando as suas condições de vida.. Com muita criatividade aproveitam todos os pobres recursos que conseguem descobrir. Entre eles se acha a solidariedade, a gratuidade, a colaboração ativa, a sociedade fraterna que desapareceram faz tempo nas cidades burguesas. 

2 Cf. Jon Sobrino, “El pueblo crucificado” y “la civilización de la pobreza”. Em Revista latinoamericana de teología, San Salvador, El Salvador, n. 66, 2005, p. 209-228. 

Além disso, o carnaval mostra quantas possibilidades de desenvolvimento cultural há entre os favelados. Aparecem poetas, músicos, artistas oradores, atores, com uma criatividade que com certeza se pode comparar com as melhores realizações culturais, se não as superam em vários aspetos. 

Há uma civilização popular em pleno desenvolvimento. Há nesta civilização um imenso espaço aberto para os cristãos. Não se trata de comunicar a esse povo o 4 

 

evangelho porque já o conhecem na prática da vida, mas de enriquecer a Igreja com as suas contribuições. 

Há artistas profissionais, criadores de cultura, compositores ou escritores que se enriquecem em contato com eles. Porque não a Igreja ? 

Precisamos eliminar da consciência cristã a idéia de que se trata de “dar”. O que se pode dar, é ensinar a fazer, mas a doação unilateral de objetos acabados não resolve, mas deforma a mentalidade, cria uma mentalidade de mendigos. Em lugar de doação , o que podemos dar é amizade, escuta, partilha. 

Podemos aprender muito da sabedoria desse povo que consegue viver humanamente em circunstâncias muito adversas 

O acesso à Universidade 

Está sucedendo um fato cultural decisivo. Há 100 anos atrás no Brasil somente havia algumas centenas de alunos nas poucas escolas universitárias. Hoje são milhões. Entre eles são milhões os que pertencem ao mundo popular. Esses universitários não vivem a religião popular tradicional. Precisam de uma mensagem mais elaborada. A imensa maioria nada sabe de Jesus, salvo o que permaneceu no folclore nacional, o que é pior que nada. Nada sabem dos evangelhos que nunca leram. O nível intelectual da paróquia não vai convertê-los Por sinal quantos freqüentam as paróquias ? 

É muito mais fácil abrir uma faculdade do que comunicar o evangelho a um estudante. Será por isso que tantas congregações abrem tantas faculdades ? 

O mundo dos universitários pobres e dos jovens intelectuais pobres é enorme. Se um dia houver uma humanização da sociedade neste país, será o efeito do trabalho dessas elites pobres. Ora, elas podem ser recuperadas pelo sistema por desespero. Podem crer que de fato toda mudança é impossível e que a sociedade atual não tem remédio. 

Não está longe o momento em que a metade da juventude terá passado pela universidade. Onde está a Igreja ? 

De fato estão surgindo no país inteiro grupos de jovens que descobrem o evangelho e procuram formar grupos ou comunidades em ruptura com a sociedade atual. Mas ainda são um pequeno começo. Creio que essas fundações novas têm mais porvir que as pastorais vocacionais que procuram incorporar os jovens dentro de instituições antigas. 

No entanto, religiosos e religiosas que podem apresentar em forma atualizada os grandes rumos das grandes espiritualidades cristãs, podem desempenhar um papel importante. Muitas vezes os novos grupos ignoram o passado da vida evangélica ou mística e correm o perigo de buscar o que já existe há muito tempo. Também correm o perigo de permanecer num entusiasmo juvenil sem fundamentos espirituais suficientes. 

Sucede que muitos padres e religiosos não falam de Jesus. Falam muito da Igreja, mas a Igreja não interessa ninguém além deles mesmos. Os novos grupos falam de Jesus. Esta é a sua grande superioridade. 

Esses grupos vivem conscientemente uma ruptura com a sociedade estabelecida burguesa e consumista. Hoje em dia temos a impressão de que as instituições tradicionais procuram esconder o mais possível o que poderia dar a impressão de ruptura. No entanto, na história da Igreja todas as reformas e todas as criações n ovas começaram como uma ruptura com a sociedade estabelecida. 5 

 

O movimento monástico desenvolveu-se extraordinariamente nos séculos IV e V como reação contra a decadência das comunidades cristãs que foram profundamente contaminadas pelo paganismo doravante introduzido pela integração da Igreja como religião imperial. Inúmeros jovens sentiram que o espírito de Jesus já não animava as comunidades. Fugiram. Não tinham naquele tempo nenhuma outra alternativa. Fugiram para encontrar a Deus fora das suas comunidades, porque Ele já não estava ali. Foi uma ruptura radical. Eles deixaram essa imagem forte de ruptura.com a sociedade oficialmente cristã e realmente pagã. 

Os Mendicantes foram uma ruptura com uma Igreja rica e poderosa, com uma Igreja de mosteiros ricos, e de bispos poderosos. Tiveram muitos problemas com a hierarquia. Sempre procuraram o reconhecimento dos Papas, que ,sobretudo desde o século XIV,o traíram tantas vezes. Milhares de jovens em poucos anos entraram nos Mendicantes: buscavam uma ruptura. 

Acho que estamos numa época semelhante. A Igreja adormeceu nos braços do conforto da sociedade de consumo. Perdeu os sinais de ruptura que têm um significado evangélico. O silêncio da doutrina social da Igreja é parte do fenômeno. A Igreja já não quer cortar a amizade com os grandes poderes deste mundo. Aliás,não bastaria com uma doutrina. O que se busca é uma ruptura visível que chama a atenção. 

Este fenômeno deve atingir especialmente os jovens universitários, mais conscientes e com mais capacidade de decidir eles mesmos da sua vida. Além disso esses jovens se sentem mais capazes e têm mais personalidade Os filhos e as filhas de famílias muito pobres com formação intelectual limitada terão medo. 

Qual é o papel dos religiosos das instituições tradicionais ? Será preocupar-se pela reprodução do seu instituto ? Ou será transmitir à nova sociedade as forças da 

sua espiritualidade ? 

Os religiosos e a política 

Há alguns anos atrás, as religiosas de Notre Dame de Namur,uma das congregações intelectualmente mais desenvolvidas dos Estados Unidos(. No Brasil também estavam na vanguarda das lutas sociais e políticas. ) tinham uma casa em Washington , cuja missão era acompanhar o Congresso. Queriam fiscalizar os votos e as posições dos diferentes deputados ou senadores, descobrir e denunciar casos de corrupção, contradições entre os discursos e o comportamento real. Oficialmente tratava-se de defender os interesses da Igreja católica, mas a prática era muito mais extensa. Não sei se esta casa ainda existe. Se ainda existe, deve ter muito trabalho. 

Nas democracias mais recentes, a possibilidade de corrupção aumenta. A experiência mostra que os poderes do Estado por si sós não têm capacidade para`lutar eficazmente contra essa corrupção. Muitos casos são conhecidos e denunciados. Mas o poder judicial defende eficazmente os corruptos. O povo recebe poucas informações. Durante um tempo a mídia alimenta o escândalo. Depois, aparece outro caso e os juizes intervêm para apagar tudo. 

Os políticos profissionais podem dificilmente insistir em denúncias concretas porque enfrentam risco de morte, e, de todos modos, o risco de nunca mais encontrar emprego. Sem contar que muitos precisam também do segredo. Há um acordo implícito para não fazer denúncias para não ser denunciado. 

Os religiosos não têm família e podem assumir mais riscos. Mas é claro que para poder exercer essa função, precisam estar acima de qualquer suspeita. Se a Igreja consegue o silêncio da mídia sobre casos de corrupção e quer comprar uma 6 

 

proteção para um dos seus membros, como é costume fazer no clero, ela não poderá abrir a boca. 

Pode-se dizer que a política é responsabilidade dos leigos. No entanto, há certas funções políticas que são perigosas. A um pai de família não se pode exigir que arrisque a vida porque mexe com a corrupção, enquanto os religiosos permanecem muito sossegados nos seus conventos. Se a política real fosse o que está escrito na Constituição, nunca haveria risco. Mas essa é a política no papel. Na realidade o papel não importa muito. O jogo político real é bem diferente e o povo não sabe. Sabe de modo geral, diz que todos os políticos são corruptos, mas não conhece os casos concretos e continua votando nos candidatos corruptos. 

Não há meios de comunicação que possam dizer tudo o que sabem. Podem ser processados e ainda que digam a verdade, serão condenados pelos juizes. 

A política real é uma atividade perigosa se um político quer ser honesto e fiel à verdade.. No entanto, é bom que haja alguns cidadãos que assumam esse papel. Porque não poderiam ser religiosos ou religiosas ? 

Os problemas sociais e os religiosos 

Os problemas sociais são de uma envergadura tal que exigem soluções que supõem movimentos de milhões de pessoas. Neste momento, não se manifestam respostas globais eficazes aos grandes problemas sociais mundiais. Somente podemos entrar em problemas localizados, muito parciais. 

É verdade que os religiosos são constituídos de pessoas espalhadas pelo mundo inteiro. Poderiam formar entidades mundiais dedicadas ao nível mundial dos problemas sociais. Poderiam estabelecer uma entidade de algumas centenas de intelectuais formados nas disciplinas sociais e conhecedores das principais línguas mundiais em Nova Yorque para acompanhar os trabalhos da ONU e das organizações ligadas à ONU. Poderiam ser uma fonte de informações para todas as Igrejas do mundo. Poderiam dar sugestões aos governos que precisam de informações. Poderiam mostrar como na prática podem colaborar pessoas de todos os continentes. 

De modo geral, os religiosos têm poucas ambições e por isso não atraem. Têm uma visão muito limitada da humanidade atual.Dão muita importância aos problemas minúsculos da sua província religiosa, como se isso tivesse importância e não querem meter-se no mundo. 

Os religiosos não são representantes da Igreja. Podem meter-se neste mundo como cidadãos do mundo. Não são uma Vaticano paralelo. Podem agir como uma associação de cristãos. 

Os religiosos não vão resolver nenhum dos problemas sociais. Mas podem influir nos centros de decisão. Poderíamos pensar que essa influência seria tarefa dos partidos políticos. Mas não há nenhuma possibilidade de que os partidos o façam. Os partidos pensam em função das próximas eleições. Os problemas do mundo não os interessam. 

Os religiosos são mais livres. Podem assumir responsabilidades que outros não podem. Podem dizer ou fazer o que outros não podem fazer, nem dizer. Não precisam defender uma carreira, podem contar com o apoio de irmãos ou irmãs. 

No mundo atual, numa sociedade dita democrática, todos vivem com medo. Têm medo de perder o emprego, porque nada é seguro. As empresas são ditaduras. Pode ser um alto executivo e perder o emprego de um momento para outro. A competição é universal. Um colega é um possível rival. Quem tem produtividade mais 7 

 

baixa vai ser eliminado. Daí o estado de estresse que se torna o modo habitual de viver.no mundo ocidental. 

Numa sociedade de medo, os religiosos são livres, mas muitos não parecem saber o que fazer da sua liberdade. A sua liberdade fica sem objeto. No entanto o evangelho que anunciam, é um evangelho de liberdade. Jesus anuncia a liberdade. A mensagem do evangelho é uma mensagem de liberdade. Como uma pessoa pode anunciar a liberdade, se ela própria não é livre? 

Em outros tempos, podiam exaltar a obediência. Não vamos discutir as razões que justificavam isso no passado. Mas hoje em dia pregar a obediência, é pregar a submissão a esta sociedade de escravos em que estamos. É verdade que se trata de uma escravidão bem confortável – com a condição de produzir e de ficar calado. O difícil hoje em dia é ser livre. 

Os religiosos não casam. Mas não é por desprezo do sexo. Não pode ser para oferecer a Deus uma privação dolorosa como se esse tipo de sacrifício pudesse agradar a Deus. Não casam como s. Paulo para permanecer mais livres. Mas se não sabem o que fazer com a sua liberdade, não casar não faz sentido. Deus não é um patrão sádico que gosta de ver os seus súditos sofrendo. O que Deus quer, é a liberdade. 

Quanto à pobreza, uma pessoa que quer permanecer livre, não precisará buscar a pobreza, ela virá sola. 

Projetos sociais 

Os religiosos não têm possibilidade de enfrentar diretamente os grandes problemas sócias da atualidade, que são problemas mundiais. Podem exercer uma certa influência sobre as pessoas que decidem. Mas essas pessoas representam entidades poderosas. Apesar de tudo, uma consciência coletiva poderá ter importância. No entanto, podem assumir alguns problemas sociais locais e limitados 

Um problema é a defesa dos direitos humanos em casos locais e limitados. Um exemplo é a existência de escravos no Brasil, problema que a autoridade política não pode ou não quer assumir. O governo precisa dos votos da bancada ruralista que conta com 116 deputados. Por isso não pode tomar nenhuma medida contrária aos interesses dos latifundiários. Apesar disso é possível realizar campanhas de divulgação no mundo, despertar a atenção de organizações mundiais. É possível juntar documentação, dar testemunhos internacionais, organizar denuncias mundiais. Há alguns sacerdotes comprometidos com esse problema, mas poderia haver muitos mais para provocar uma verdadeira reação pública. Essas coisas precisam de sinais que despertam e abalam, como o sinal do jejum de dom Luiz Flávio Cappio. Somente escrever não move, porque ninguém lê. Mas há gestos que acabam chamando a atenção da mídia. 

Um problema que deve contar com a colaboração das religiosas é a violência em contra das mulheres. As mulheres têm medo e não reagem porque as associações que deviam defendê-las não têm força social. Há muitas formas de violência contra as mulheres. A primeira é a agressão do marido ou do companheiro. Não basta uma advertência da delegada ou uma ameaça. É preciso acompanhar o caso, o que exige que haja muitas pessoas empenhadas no assunto. Não se pode deixar em paz um homem que agride com violência uma mulher. Há religiosas que se dedicam a essa tarefa, mas seria preciso ter dez vezes mais porque os casos são tão numerosos. Os juizes não se movem, se não há um organismo que os persegue até que se disponham a agir. 8 

 

O problema das cadeias públicas é um dos maiores escândalos. De vez em quando a mídia dá a conhecer o caos, sobretudo quando houve rebelião dos detidos. Os presos são tratados pior do que os animais. A sugestão de recorrer às leis de proteção dos animais, pode ser um caminho. De novo, nada acontece se não há insistência, perseverança como na parábola da viúva que importuna tanto o juiz que este acaba por lhe fazer justiça. Não incomodamos os juízes, nem os delegados. Eles se acham super-homens acima de qualquer crítica. 

Não pretendo fazer um elenco de problemas parciais que poderiam ser assumidos por religiosos, mas somente dar alguns exemplos. 

Não se nota muita perseguição contra religiosos neste momento. Não é bom sinal. É sinal de uma Igreja adormecida. O evangelho é muito claro. Se não há perseguição, é porque queremos evitar qualquer conflito com as autoridades A situação normal seria uma perseguição. Assim como aconteceu com dom Pedro Casaldáliga que é um religioso fiel à sua vocação Nunca procurou agradar às autoridades ou guardar o silêncio diante de situações gritantes. Mas um dia ele vai morrer. Quem vai assumir a sucessão? 

Problemas de socialização 

Um dos efeitos mais perniciosos da atual globalização é a destruição sistemática das organizações populares. As ONG como os sindicatos ou as associações de bairro burocratizam-se. São fontes de empregos. Os dirigentes temem antes de tudo perder o seu emprego, e, por isso, sabem que não podem discutir o sistema de modo prático. Podem até certo ponto fazer discursos inflama dos, mas não podem lançar o povo na ação. O resultado é uma atomização da sociedade. 

Os religiosos não se submetem a nenhuma burocracia. Podem dedicar-se a refazer um tecido social no lugar em que estão morando. Trata-se de descobrir em qualquer lugar quais poderiam ser os interesses comuns de muitas pessoas. O povo ressuscita quando se une num agir comunitário. Há uma imensa diversidade de associações possíveis. 

A paz 

América latina é parte do mundo. Deixou de ser colônia. Deve intervir nos assuntos mundiais, particularmente nos desafios da paz mundial. Ainda existe o preconceito de que quem deve definir os rumos da Igreja são os europeus, particùlarmente a Santa Sé. Os europeus já não têm política mundial própria. São apêndices da política dos Estados Unidos.. A Santa Sé tem por prioridade manter boas relações com todos os governos, e, na prática, os mais importantes são os mais fortes. 

Quem trabalha realmente pela paz mundial? 

O conflito dominante da atualidade, o conflito que alimenta já várias guerras e que pode provocar a explosão de guerras mais importantes ainda, é o conflito entre os descendentes dos “Cruzados”, Estados Unidos e Europa, e o Islã. A guerra é latente em vários países da África, Sudão, Chad, Nigéria, Etiopia, principalmente. A guerra está aberta no Iraque e no Afeganistão, e também na Palestina por intermédio de Israel. Na Europa a guerra continua na Chechenia, e pode explodir de novo entre a Albânia e os seus vizinhos. 9 

 

Entre o Ocidente e o Islã houve 14 séculos de guerra quase sem interrupção, ainda que houvesse também em alguns países situações de convivência pacifica. Durante séculos, a civilização muçulmana foi dominante. No entanto desde o século XVI o Ocidente conquistou vantagens. Teve um desenvolvimento científico e tecnológico mais avançado, o que lhe deu exércitos e marinhas mais poderosas. 

Nos séculos da modernidade a distância foi crescendo entre o império turco e as potências européias. Depois da queda do império turco, os europeus dominaram todos os países árabes, que caíram do império turco para o império britânico. Esta humilhação do Islã foi e ainda é sentida como uma ofensa e uma ferida coletiva. Esta fere profundamente o orgulho coletivo. Os árabes nunca aceitaram a dominação européia, ou seja, a dominação dos Cruzados. 

Há no Ocidente muitas organizações que preparam um confronto militar global, entre o Ocidente e o Islã. Ora, o confronto é basicamente religioso e essas organizações querem exasperar o sentimento de hostilidade entre as duas religiões. Há uma propaganda sistemática que apresenta essa guerra de religiões como inevitável.. 

O que fazem os cristãos de América latina em vista de uma reconciliação entre as duas religiões , é infinitesimal. Tudo sucede como se as Igrejas latino-americanas pensassem que esse problema não lhe diz respeito. No entanto, os católicos latino-americanos são a metade dos católicos do mundo e não podem fugir dessa responsabilidade. Não podem esperar que venha uma solicitação de Roma, porque Roma não está interessada. A prioridade romana não é a reconciliação com os muçulmanos mas as boas relações com os Estados Unidos e Europa, os Cruzados de hoje. 

Ora, os latino-americanos não têm obrigações prioritárias com os Estados Unidos e Europa. Podem não aceitar o papel de “Cruzados”, ainda que as classes dirigentes gostariam de uma identificação com as políticas dos Estados Unidos e da Europa. Podem não aceitar a tese de que a oposição entre o Ocidente e os árabes ë um problema puramente político, porque é evidente que no fundo do problema político há um problema religioso. 

Os religiosos poderiam ser os operários da paz. Poderiam mostrar que os cristãos não são necessariamente os Cruzados. Isto exigiria muitas atividades de diálogo. Em primeiro lugar seria preciso conhecer o Islã, principalmente no que tem de melhor. Em seguida precisaria organizar muitas atividades de convivência entre cristãos e muçulmanos. Que haja poucos muçulmanos na América latina não justifica a passividade. Pois há aviões, há internet, há encontros internacionais que se podem aproveitar. 

Há outro mundo que se abre aos cristãos: a China. A China e a parte do mundo que fica mais perto do cristianismo Se uma conversão do Islã é impensável neste milênio, a China é diferente. A China passou por uma época de marxismo e nunca renegou o marxismo. Ora, o marxismo é uma boa introdução ao cristianismo. Pois a visão marxista do mundo é a visão bíblica. Para o marxismo, a tarefa da humanidade é transformar a própria humanidade passando de um sistema de dominação do homem sobre o homem por intermédio do dinheiro, para uma sociedade de iguais em que todos colaboram formando um mundo de fraternidade 

. Que o marxismo tenha sido invocado para dar cobertura aos sistemas burocráticos da União soviética ou de Mao na China, dificulta o problema, porque muitos definem o marxismo pelo contrario do marxismo. O desafio seria voltar ao verdadeiro marxismo que pode ser uma boa porta de entrada. 10 

 

Pois, o marxismo procurou emancipar a inteligência chinesa do domínio das antigas filosofias chinesas essencialmente conservadoras e do paganismo primitivo das massas que as mantêm num estado de subordinação legitimado pela religião. O marxismo define o mundo como lugar de trabalho, lugar de construção de uma sociedade, como responsabilidade humana e não como sujeito à dominação de forças sobrenaturais. Nisto o marxismo pode cumprir o papel das filosofias gregas. O ateísmo é puro mal-entendido, porque Marx somente conheceu o cristianismo burguês do seu tempo. Negou o deus da burguesia, o deus do dinheiro, do mercado, do capital. Esse deus era a legitimação do sistema de dominação. 

 

Todos sabem que dentro de poucas décadas haverá um conflito maior entre Estados Unidos e China para a liderança no mundo. Não haverá necessariamente uma guerra com as armas, mas, com certeza uma guerra econômica. Com quem estará a Igreja? O Vaticano dirá que é eqüidistante e não toma partido por nenhum dos competidores. Essa será a teoria. Mas na prática, com quem estará a Igreja? Quem tratará de que se mantenha de fato a equidistância? Quem poderá entender sequer as posições da China? Quem pode pensar que se possa evangelizar a China daqui a 30 anos a partir dos Estados Unidos ou da Europa? Então será a partir de quem? A resposta pertence aos leitores.