CARISMAS DO ESPÍRITO SANTO E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Artigos de José Comblin Acessos: 3684

 

Na América Latina os carismas aparecem em quatro contextos distintos:

 

1. na eclesiologia conciliar; apesar do imobilismo das estruturas tradicionais, os estudos teológicos não abandonaram as orientações do Vaticano II e procuram elaborar uma eclesiologia alternativa para o terceiro milênio e nesta alternativa a pneumatologia e os carismas dos leigos ocupam um lugar privilegiado;

 

2. na questão dos ministérios leigos; embora considerada por muitos como suplência, justificada pela carência de sacerdotes, a estrutura de ministérios leigos inclina-se para uma nova eclesiologia e, por isso mesmo, encontra em Roma uma resistência obstinada que não desarma nunca;

 

3. na busca das novas formas de vida religiosa sob a orientação da CLAR e muitas conferências nacionais de religiosos ou religiosas; os carismas da vida religiosa vinculam-se com a opção pelos pobres e, por esse lado, referem-se também a uma nova eclesiologia;

 

4. nos movimentos carismáticos, especialmente na renovação carismática católica os carismas recebem um destaque muito especial; sobretudo os dons de profecia, cura e de línguas recebem um destaque que é realidade totalmente nova na Igreja.

 

Os quatro contextos constituem quatro sentidos da palavra carisma, quatro maneiras de enxergar os carismas. Entre os quatro contextos há certas interferências, mais ou menos acentuadas. No entanto, até agora não se elaborou nenhuma síntese que fornecesse uma visão mais abrangente dos carismas.

 

Por sinal os carismas, sendo efeitos do Espírito Santo, não podem ser definidos a priori a partir de outros dogmas ou proposições reveladas. Os carismas aparecem na história de modo imprevisto, constituindo uma das formas de irrupção do Espírito Santo. Somente podem ser estudados e compreendidos racionalmente a partir de estados suficientemente adiantados de evolução. Na atualidade, estamos assistindo ao surgimento de novos carismas. É muito cedo para inventar uma teoria. Qualquer teoria poderia ter como efeito um constrangimento e uma limitação das novas iniciativas do Espírito Santo.

Por isso não vou tentar aqui fazer uma síntese mesmo provisório, mas apenas situar o “status quaestionis”.

 

 

1. OS CARISMAS NA CONSTITUIÇÃO DA IGREJA

 

 

Na eclesiologia ocidental tradicional os carismas ocupam um lugar muito restringido ou simplesmente nem sequer aparecem. Pois na eclesiologia ocidental, chamada também de “gregoriana” (de Gregório VII), ou “imperial” (porque inspirada no poder imperial romano) ou “vertical” (porque tudo vem de cima para baixo, do clero para os leigos), o Espírito Santo conduz a Igreja por meio dos dois poderes de ordem e de jurisdição. O primeiro está nas mãos do episcopado. No entanto, ultimamente, as nomeações dos bispos foram confiscadas pelo Papa que se acha desta maneira à frente do poder de ordem. O poder de jurisdição pertence ao Papa que é autor de todas as participações concedidas ao clero. Ultimamente o poder de jurisdição ficou dividido entre magistério e governo. No entanto, estes dois têm a mesma estrutura e a separação é artificial.

 

Em muitas obras de teologia o Espírito Santo nem sequer é mencionado. Os dois poderes derivam diretamente de Cristo que os conferiu ao Papa e aos bispos. Por isso, freqüentemente o Espírito Santo nem sequer aparece. Foi o caso nos documentos preparatórios do sínodo das Américas de 1997 e em todas as discussões sinodais. Os bispos ainda têm na mente o esquema da eclesiologia gregoriana e espontaneamente se esquecem do Espírito Santo porque este não desempenha nenhum papel relevante na sua Igreja. O Papa ocupa o lugar do Espírito Santo como fonte de todas as inspirações que precisam ser levadas em conta.

Eventualmente na eclesiologia gregoriana os carismas do Espírito ocupariam um terceiro setor de atividade eclesial, setor não coberto pelos sacramentos nem pela jurisdição do Papa. Ora, os espaços não cobertos nem pela Ordem, nem pela jurisdição são pouca coisa no esquema gregoriano. Os teólogos mais abertos ao Espírito Santo mencionam a influência dos “santos” com a condição que estes tenham sido canonizados pelo Papa. Ou então a influência de certos místicos, embora os místicos tenham sido muito reprimidos já desde o século XIII. Inclusive algumas Santas receberam o título de “Doutora da Igreja”, naturalmente muitos anos depois da sua morte, uma vez que já se tenha formado uma imagem convencional da sua atuação ou da sua mensagem. Em todo caso, o terceiro setor, aberto aos carismas, permanecia muito estreito. Os carismas foram alguns fatos excepcionais.

Invocar carismas era suspeito. Em nome dos carismas o clero desconfiava que se queria desprestigiar os sacramentos e o poder dos ministros ordenados. Em nome dos carismas o Papa e os bispos desconfiavam que os leigos queriam emancipar-se do governo da hierarquia. Aos carismas estavam reservadas certas devoções particulares que não colocavam em perigo os poderes de ordem e de jurisdição. De todas as maneiras, todas as devoções tinham que submeter-se à aprovação da hierarquia.

 

O Concilio Vaticano II rejeitou o esquema que tinha sido preparado sobre a Igreja exatamente porque representava uma forma acabada de eclesiologia gregoriana ilustrada pelo pe. S. Tromp, que foi o professor de quase a metade do episcopado daquele tempo. Os alunos rebelaram-se.

Com a Constituição Lumen Gentium, o Concílio quis apresentar uma alternativa, isto é, uma eclesiologia mais próxima ao Novo Testamento e as teologias do 1o. milênio. Como disse Mons. E. De Smedt num discurso famoso na primeira sessão, o Concílio quis rejeitar uma eclesiologia clerical, juridicista e triunfalista. O projeto era promover os leigos, destacar a participação ativa dos leigos na Igreja e colocar a hierarquia dentro da Igreja e não acima dela.

Para este fim o Concilio quis destacar o tema do povo de Deus e descartou o tema do corpo místico como definição da Igreja. Descartou o tema da “encarnação continuada” e o tema da “única persona mística”, todos temas que serviam para exaltar a hierarquia, conectá-la diretamente com Cristo e subordinar-lhe os leigos.

Os redatores de Lumen Gentium quiseram destacar o tema do povo de Deus colocando-o em evidência na frente do capitulo sobre a hierarquia. Desta maneira queria definir a Igreja de uma maneira que desse prioridade ao que era comum aos leigos e ao clero. A Igreja aparecia anterior à hierarquia e já não se podia definir a partir dela como era costume na teologia e na catequese depois de Trento.

Em segundo lugar, para destacar o papel dos leigos os padres conciliares quiseram salientar o tema dos carismas. Daí o n º 12 de Lumen Gentium no parágrafo 2.

Na realidade, para oferecer uma verdadeira e consistente alternativa ao esquema gregoriano, era indispensável o recurso a uma teologia do Espírito Santo. Ora, esta teologia fazia falta. Nem os bispos, nem os teólogos davam valor nem importância ao Espírito Santo. Estavam acostumados a prescindir dele, tanto na teoria como na prática. Por isso, afinal, Lumen Gentium não foi o que queria ser e o que os bispos tinham prometido. Nem sequer hoje em dia, depois de 35 anos, estamos mais adiantados. Como o mostrou o Sínodo da América, a cúria romana e os bispos têm alergia ao Espírito Santo.

No entanto, havia em alguns como no famoso discurso do cardeal Suenens o pressentimento de que uma pneumatologia seria necessária. Infelizmente essas coisas não se improvisam. Na incapacidade de apresentar uma visão da Igreja no Espírito Santo, o Concílio ofereceu meio artigo sobre os carismas. Este texto fica como testemunha do desejo de buscar uma alternativa à eclesiologia tradicional, mas o que se disse sobre os carismas não basta e fica bem longe do indispensável.

Apesar disto a vontade reformadora do Concílio deu ênfase aos carismas. Várias vezes os temas de LG 12b foram repetidos em outros esquemas e textos adotados pela Assembléia, por exemplo em AA 4, PO 9, GS 38 sem acrescentar idéias novas.

Lumen Gentium insiste no papel social ou eclesial dos carismas. Outrora eram antes considerados como privilégios pessoais destinados à santificação de pessoas privilegiadas. O n º 12 de LG destaca a relação com as necessidades da Igreja. Com efeito, o que se pretende salientar é que os carismas pertencem à constituição e ao dinamismo da Igreja e não são puro acréscimo ou suplemento dispensável. Não pertencem ao supérfluo e sim ao necessário da Igreja.

“Não é apenas através dos sacramentos e dos ministérios que o Espírito Santo santifica e conduz o Povo de Deus e o orna de virtudes, mas repartindo seus dons “a cada um como lhe apraz” (1 Cor 12, 11), distribui entre os fiéis de qualquer classe mesmo graças especiais. Por elas os torna aptos e prontos a tomarem sobre si vários trabalhos e ofícios, que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja.”

Os “ministérios” referem-se aqui à hierarquia no seu poder de jurisdição. O texto diz que há três canais de operação do Espírito Santo: os sacramentos, o poder de governo da hierarquia e os carismas.

Vários textos exortam a hierarquia a valorizar os carismas que podem ser dados mesmo a leigos. Insiste-se no poder de discernimento da hierarquia e, por conseguinte, na subordinação dos carismas à hierarquia. Pode-se achar que o espaço deixado aos leigos ainda é bem limitado e que o grande peso do Espírito Santo repousa ainda nos sacramentos e na hierarquia.

Os carismas não se referem propriamente a “ministérios” e sim a trabalhos e ofícios. Estes estão a serviço do mundo ou da Igreja.

Finalmente o texto contem uma advertência especial a propósito dos chamados “dons extraordinários”. Segundo H. Küng, que parte dos discursos pronunciados nos debates sobre o assunto, esses dons extraordinários se referiam aos dons de curas e milagres, talvez aos dons de línguas, justamente os dons que vão ser muito exaltados nos movimentos carismáticos uns poucos anos depois de publicada a constituição Lumen Gentium. Nenhum bispo tinha previsto a explosão pentecostal dentro da Igreja católica. Poucos sabiam do pentecostalismo protestante.

Depois do capítulo sobre o povo de Deus, Lumen Gentium expõe dois capítulos sobre a hierarquia e os leigos que se inspiram ainda no esquema gregoriano tradicional. Afinal, não se conseguiu a alternativa que se queria.

Claro que faltou uma perspectiva histórica da Igreja. A tradição foi muito influenciada pela escolástica e buscou a “essência” da Igreja. Ora a Igreja sendo povo, é antes de tudo uma história. A história da Igreja não é simplesmente o funcionamento de uma estrutura. A história é feita de imprevistos, de movimentos parciais, respostas a desafios e nascidos de carismas de personalidades fortes. O Espírito Santo conduz a Igreja por uma história usando os dons e as qualidades dos instrumentos de que dispõe.

Por falta de visão histórica o Concílio não podia dar o seu valor aos carismas, nem elaborar uma tentativa de integrar os poderes dentro de uma Igreja conduzida pelo Espírito Santos e não por poderes humanos.

Uma vez que se parte de uma visão histórica da Igreja, o papel dos leigos e dos carismas leigos aparece imediatamente. Como imaginar a Igreja do Ocidente sem S. Bento e os monges, sem S. Francisco e os irmãos menores e sem a família cristã da cristandade à qual se deve tudo. Pois o clero não evangelizou até o século XVII e assim mesmo não converteu. As famílias fizeram a sociedade cristã.

Hoje em dia Lumen Gentium fica como testemunho de boa vontade do episcopado daquele tempo, mas também como testemunho de enormes limitações e, de modo particular, da ausência de fé no Espírito Santo. Afinal tinham mais fé no seu próprio poder do que na força do Espírito Santo.

As ambigüidades de Lumen Gentium não foram levantadas pelo Sínodo extraordinário de 1985, vinte anos depois, muito pelo contrário. Ao substituir o tema do povo de Deus pelo tema de comunhão, o Sínodo deu um passo para trás. Apagou o pouco de perspectiva histórica, o eventual ponto de partida de uma concepção histórica da Igreja, por um tema sumamente ambíguo. Pois, na teologia gregoriana a comunhão refere-se à dependência do Papa. Está na comunhão quem obedece ao Papa. Fora desta obediência não há comunhão nem pertença à Igreja. O tema do Sínodo exclui toda perspectiva histórica e destrói o fundamento do ecumenismo ao destruir as possibilidades que as Igrejas separadas tinham de pertencer, de alguma maneira, à única Igreja de Cristo. Parece que a mudança foi intencional e encobria a vontade de voltar à eclesiologia gregoriana, fechando o parênteses do Vaticano II. Foi uma maneira elegante de suprimir o que havia de novidade no Vaticano II.

 

 

2. OS MINISTÉRIOS LEIGOS

 

 

Os carismas aparecem num contexto mais concreto na América Latina dentro do contexto das comunidades eclesiais de base na forma de “ministérios leigos”. Desta vez, os carismas referem-se a serviços permanentes e entram a constituir uma categoria nova: ao lado dos ministérios hierárquicos aparecem os ministérios leigos; ao lado dos ordenados, os não-ordenados. Esta definição de ministérios leigos foi assumida oficialmente pela Conferência de Puebla:

“Para o cumprimento de sua missão, a Igreja conta com uma diversidade de ministérios (AA 21). Ao lado dos ministérios hierárquicos, a Igreja reconhece o lugar dos ministérios sem a sagrada ordem. Portanto, também os leigos podem sentir-se chamados ou ser chamados a colaborar com seus pastores no serviço à comunidade eclesial, para seu crescimento e vida, exercendo ministérios muito diversos segundo a graça e os carismas que o Senhor lhes conceder (EN)” (Puebla 636)

“Os ministérios que se podem conferir aos leigos são aqueles serviços referentes a aspectos realmente vitais da vida eclesial - como por exemplo, no plano da Palavra, da Liturgia ou na direção da comunidade - exercidos por leigos de maneira permanente e não só ocasional e que têm sido reconhecidos publicamente por aqueles que são responsáveis pela unidade da Igreja” (Puebla 637)

O texto acrescenta recomendações pastorais sobre a prática dos ministérios leigos (Puebla 638-655).

A doutrina de Puebla copiou quase literalmente o n º 73 de Evangelii Nuntiandi, documento que inspirou tantos textos da conferência de Puebla. Entretanto, a doutrina de EN inspirava-se também, em grande parte, na experiência das Igrejas latino-americanas.

A Exortação apostólica Christifideles laici (1988) retoma a doutrina de EN e de Puebla, sublinhando a diferença qualitativa entre os ministérios leigos e os ministérios ordenados ou hierárquicos (ChL 23).

O Papa insiste nisto que “o que constitui o ministério não é a tarefa, mas a ordenação sacramental” (23 c). Afirmação surpreendente! Afirmação que esconde o problema atual dos ministérios na Igreja. O que importa, não é o que se faz, mas a ordenação.

O paradoxo: há duas categorias de ministérios. Os que agem, mas não são ordenados, não exercem um verdadeiro ministério. Outra pessoa que eventualmente não faz nada, mas foi ordenada, exerce um ministério.

Christifideles Laici insiste na subordinação radical dos ministérios leigos ao ministério ordenado. Os ministérios leigos são “suplências”. Claro está que voltamos ao esquema gregoriano. Supõe-se que a situação ideal seria aquele de Trento, segundo a qual tudo na Igreja é feito pelos clérigos e os leigos são puros receptadores da ação do clero. Somente se aceita o ministério leigo como suplência e em dependência imediata do ministro ordenado. De novo tudo vem do clero como detentor dos dois poderes. Os ministérios leigos não seriam espaço reservado ao carisma do Espírito Santo. A Exortação ChL nem sequer menciona o Espírito Santo nem usa a palavra carisma. Trata-se de voltar ao esquema gregoriano passando por cima de EN e Puebla.

O Documento de Santo Domingo (no. 101) refere-se a Puebla e a ChL. Usa a palavra carisma mas não se refere ao Espírito Santo e sim à ordem sacramental. O caráter carismático dos ministérios fica apagado. Os ministérios leigos nada mudam na estrutura gregoriana. Suprem a falta de sacerdotes para preencher as vagas dentro do sistema. Não representam uma condução pelo Espírito Santo mediante os talentos e capacidades das pessoas. Os leigos entram na estrutura clerical a título de suplentes. Não mudam o quadro.

 

A rigidez da doutrina romana na sustentação do esquema tradicional e na marginalização dos ministérios leigos provoca reações em sentido contrário, questionando os fundamentos dos ministérios tridentinos.

Uma das manifestações do mal-estar na América Latina é o livro de Alberto Parra sobre os ministérios.

O livro tem por base a doutrina paulina dos carismas que é também a sua doutrina dos ministérios. Aqui o que faz o ministério, não é nenhuma ordenação e sim o trabalho realizado. A pessoa mostra que tem o carisma pelo que faz efetivamente. Tem carisma de apóstolo porque efetivamente evangeliza. Tem carisma de profecia porque efetivamente profetiza.

Por outro lado, Parra parte também da experiência das comunidades cristãs populares da América Latina. Estas comunidades nasceram e se mantém pelos carismas dos leigos. São os carismas que constróem o povo de Deus (p. 116s).

Depois disso, Parra reconstitui a história da sacerdotalização dos ministérios no decorrer da história. A volta ao Antigo Testamento começou bem cedo apesar de Jesus e da primeira geração de apóstolos.

Desta história resultaria uma relativização geral dos ministérios ditos ordenados ou hierárquicos. O autor não estabelece nenhuma comparação entre os ministérios leigos e ordenados. Não diz se os primeiros excluem os segundos ao contrário da tradição ocidental em que os segundos excluem os primeiros.

Em todo caso, há um mal-estar generalizado porque está claro que a doutrina de ChL que é a doutrina do Direito canônico, can 230 # l, não convence mais. A questão dos ministérios está no centro da questão da estrutura gregoriana e da busca da alternativa. Os ministérios leigos fornecem a ocasião em que se coloca o problema eclesiológico. Muito vai depender da liberdade com que atuem os ministros leigos. Se os ministérios manifestam a novidade e a criatividade do Espírito Santo, poderão ser a força que empurrará a Igreja para uma reforma das estruturas. Se se transformarem em agentes burocráticos, não poderão mudar nada.

 

 

3. OS CARISMAS DOS RELIGIOSOS

 

 

A CLAR dirigiu uma longa história de reflexão sobre a vida religiosa no contexto da teologia da libertação e das comunidades eclesiais de base. A reflexão teve por objeto central as pequenas comunidades ou comunidades inseridas no mundo popular.

Nos primeiros tempos, até Puebla, a CLAR promoveu estudos e orientações inspiradas no tema conciliar de carisma do fundador. A vida religiosa seria uma missão especial na Igreja, uma força de renovação da Igreja e um sinal do reino de Deus para o mundo de acordo com o carisma próprio dos fundadores.

Desta maneira a reflexão permanece ligada aos Institutos religiosos reconhecidos oficialmente. Não se concebe vida religiosa fora desses Institutos.

O carisma do fundador é visto como determinação particular numa época e num lugar determinado da vocação geral para a vida religiosa. Predomina a vocação geral.

A reflexão vai descobrir que as circunstâncias mudaram e é preciso distinguir no carisma do fundador um elemento permanente e os elementos relativos à cultural do seu tempo e do seu país. Por isso, torna-se necessário reinterpretar o carisma do fundador no contexto atual na América latina.

Desde Vaticano II ficava claro que o carisma religioso refere-se à Igreja e ao mundo, tem significado social e eclesial. Não se isola do povo de Deus.

Depois de Puebla a reflexão orientou-se cada vez mais para a opção pelos pobres. Defende-se a idéia de que todos os fundadores de alguma maneira fizeram opção pelos pobres. Por isso é preciso voltar às origens do Instituto a partir da visão da opção pelos pobres.

Então os religiosos da América Latina precisam determinar de novo a aplicação do carisma do fundador dentro das necessidades da opção pelos pobres.

Devem levar em conta as deformações produzidas pela institucionalização do carisma. Levar em conta também que a origem européia marcou de modo específico cada Instituto. Finalmente é preciso levar em conta as deformações que procederam da influência das classes dominantes da sociedade latino-americana.

Na visão dos religiosos, carisma está ligado a vocação e serviço e sempre dentro da opção pelos pobres. Existe um carisma próprio dos religiosos.

 

 

4. OS CARISMAS NA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA

 

 

O movimento carismático católico teve sua origem na Universidade Duquesne em Pittsburgh no outono de l966 e na Universidade Notre-Dame em l967. Pode-se dizer que tudo já estava presente desde as primeiras experiências, relatadas nos livros de Edward O’Connor C.S.C., e Kevin e Dorothy Ranaghan, por exemplo. A literatura desde já é imensa. Por isso daremos atenção somente ao que é essencial. Eis aqui, brevemente, o que parece mais importante nas experiências carismáticas.

1. Primeiro o carisma é objeto de experiência, é realidade sensível e muito sensível: o carisma provoca choques que transformam o comportamento das pessoas e, até, o seu estado de saúde, curando enfermidades graves. Nas concepções anteriores o carisma é fenômeno que se impõe a uma experiência direta, não se conhece por inferência a partir de outra realidade.

2. Os carismas aparecem no contexto da oração, especialmente da oração de louvor. Eles têm o seu valor em si mesmos, não são meios em virtude de um fim. Os outros carismas não têm finalidade além da sua presença.

3. Os carismas mais destacados são a profecia, a cura dos doentes e a glossolalia, exatamente aqueles que S. Paulo coloca nos últimos lugares nas suas listas de carismas de l Cor. Tais carismas tinham praticamente desaparecido desde o segundo século, pelo menos na forma relatada pelo Novo Testamento. Ninguém jamais tinha previsto um ressurgimento depois de mais de 19 séculos. No entanto, algumas aproximações já se tinham manifestado em certos movimentos heterodoxos no passado, no pietismo alemão do século XVIII, no metodismo de Wesley e nas Igrejas batistas ou metodistas nos Estados Unidos no século XIX. No entanto, nada que se pudesse comparar aos fenômenos das Igrejas pentecostais nascidas nos Estados Unidos a princípios deste século e seguidas pelos fenômenos de Pittsburgh e Notre-Dame.

4. Os carismas são espetaculares, parecem inspirados sobretudo nas narrações de Lucas, muitas vezes citado pelos autores que falam do assunto. A própria narração de Pentecostes é uma referência obrigatória.

5. O mais impressionante é a expansão fulminante do pentecostalismo no mundo inteiro e dos movimentos carismáticos na Igreja católica, que os acolheu com bastante frieza, mas sem lhes limitar a força expansiva. Em poucos anos, centenas de milhões de cristãos viraram pentecostais e dezenas de milhões de católicos aderem a um movimento carismático.

6. O centro da experiência carismática é o batismo no Espírito Santo. A expressão refere-se a At. 8,14-17. O batismo do Espírito Santo não é nenhum sacramento e não compete com o sacramento de batismo. Está ligado à experiência de conversão e iluminação. Em determinado momento, de modo muito sensível ou insensível e manifestado pelos efeitos, a pessoa experimenta uma iluminação da mente e o advento de uma força desconhecida. Tem a impressão de nascer para a fé e de se tornar capaz de agir sem cansar. A pessoa que era medíocre e sem grande atividade, que era uma católica comum, observante sem entusiasmo, mais por costume do que por convicção, de repente se torna pessoa de convicção total que empreende um agir que vence todo medo. Vai ao encontro das pessoas, perdeu toda timidez e toda preguiça. Os carismáticos católicos passam, no batismo do Espírito, por uma experiência que é análoga à dos pentecostais que aceitam Jesus. De repente a religião que era fórmula, discurso, torna-se realidade viva.

Esta transformação, os carismáticos interpretam-na como sendo a presença do Espírito Santo. Não se trata do conhecimento direto do Espírito Santo e sim do conhecimento dos efeitos. A experiência carismática é uma experiência do eu, uma experiência de si próprio invadido pelo Espírito Santo.

 

Como interpretar teologicamente o movimento carismático ? Heriberto Mühlen, que já era especialista do Espírito Santo, antes dos acontecimentos de Pittsburg e Notre-Dame, tornou-se o teólogo clássico do movimento carismático. Ele já disse há mais de 25 anos quase todo o essencial que se pode dizer sobre o assunto.

Quero apenas salientar alguns aspectos relativos aos carismas.

l. Uma vez desaparecida a cristandade que transmitia a fé como cultura pelos canais da transmissão da cultura, ou a fé desaparece ou ela nasce de novo, como no início do cristianismo, por um fenômeno de conversão. O batismo do Espírito é a experiência que funda a fé. Doravante não haverá mais fé a não ser mediante uma experiência de conversão. Os movimentos carismáticos oferecem um caminho.

2. O movimento carismático é uma reação contra um cristianismo intelectual, abstrato, moralizante, legalista, jurídico que não apelava para o corpo humano, a experiência corporal e sensível, os sentidos do corpo, o ver, o ouvir, o agir, o gesto, a expressão. É a entrada do ser corporal na religião.

3. Os carismas ocupam o lugar mais destacado no movimento carismático. Estão no centro da vida cristã consciente e ativa. Apesar de promover todos os carismas, o movimento carismático dá especial ênfase aos dons que o Concílio chama de extraordinários e que, no entanto, são ordinários na vida dos cristãos primitivos e dos cristãos renovados de hoje.

Os dons de profecia, de cura e de glossolalia voltaram a fazer parte do “ordinário da vida cristã”.

4. Segundo Mühlen (p. 260) os carismas são dons naturais, capacidades naturais liberadas pelo Espírito Santo e colocadas a serviço do crescimento do corpo de Cristo. Não são realidades sobrenaturais em si, mas apenas pela orientação que lhes dá o Espírito Santo.

Os dons de profecia, cura, glossolalia são capacidades naturais, que estão presentes nos seres humanos, mas geralmente inutilizadas. O Espírito liberta o que já estava presente e torna-o instrumento do anúncio do evangelho. Uma certa tradição plurissecular tinha reprimido a experiência religiosa e as aptidões humanas. Os dons foram reprimidos pelo clero e por isso não se manifestaram a não ser em casos totalmente excepcionais. O movimento carismático realizaria a libertação de forças que estão presentes e reprimidas.

Como nos tempos de Jesus, os dons extraordinários, ainda que de origem natural, desempenham um papel importante no processo de conversão, que nunca ou quase nunca se reduz a uma processo intelectual.

Os mesmos dons podem suceder em outras religiões, já que se trata de capacidades naturais que foram estimuladas pelo Espírito Santo. Podem ser estimuladas também por forças religiosas naturais ou também inspiradas pelo Espírito, que pode acontecer em outras religiões. O caráter cristão vem da orientação cristã, evangélica das forças naturais assim despertadas. Pois, estas forças - dom de línguas, curas, profecia - podem ser orientadas também para o puro proveito pessoal ou para o narcisismo ou outra finalidade religiosa moral ou até imoral. Por isso, os dons não significam, por si mesmos, a presença do Espírito. Precisam ser acompanhados por um dom de discernimento, pois os erros podem ser freqüentes. Foram justamente essas possibilidades de engano ou de auto-engano que levaram a hierarquia cristã a reprimir severamente os dons chamados extraordinários.

 

 

5. PROJETO DE ECLESIOLOGIA ALTERNATIVA FUNDADA NOS DONS DO ESPÍRITO

 

 

Apresento somente uma tentativa, de Ghislain Lafont OSB, Imaginer l’Eglise, Cerf, Paris, 1995.

Para este autor o ponto de partida de toda eclesiologia é o Espírito Santo. O Espírito fornece à Igreja o seu movimento, o seu dinamismo e mantém a unidade orientando todos os membros para o mesmo fim num movimento articulado. A vida da Igreja não procede de planejamentos humanos e na medida em que os planejamentos humanos prevalecem a vida desaparece.

O Espírito conduz a Igreja mediante os carismas. Por conseguinte, tudo na Igreja é carisma. A própria hierarquia consta de dons espirituais e deve ser reformada para que se evidencie e se aplique melhor o seu caráter carismático e não puramente administrativo ou jurídico ou sacramental no sentido jurídico.

O autor divide os carismas em duas categorias: os carismas ligados a um estado de vida e os carismas ligados a serviços.

Há duas formas de vida: a vida matrimonial e a vida religiosa. Cada uma procede de um carisma. Pois, para os cristãos a vida matrimonial não é simplesmente fato sociológico ou antropológico. É uma vocação análoga à vocação religiosa e procede da vitalidade dos dons do Espírito Santo.

Entre os carisma de serviço há três categorias que seguem mais ou menos as listas paulinas:

a) os carismas de palavra: apostolado, profecia, ciência. Cada um tem a sua aplicação contemporânea;

b) os carismas de compaixão ou de caridade: atendimento aos doentes, por exemplo, assim como a todas as necessidades humanas;

c) os carismas de governo.

O Pe. Lafont coloca entre os carismas de governo as tarefas atualmente assumidas pela hierarquia. Procura reinterpretar as funções episcopais, presbiterais e diaconais em função do carisma. Claro está que as condições e os modos de eleição dos ministros de governo precisam ser mudados radicalmente, assim como a formação que recebem.

No esquema gregoriano os presbitérios assumiam todas as funções eclesiais. Uma vez que se multiplicam os carismas reconhecidos publicamente, bispos, presbíteros e diáconos ficam descarregados de muitas funções e podem dedicar-se ao que lhes é específico. Os presbíteros poderão ser menos numerosos e escolhidos em virtude das qualidades das quais terão dado provas práticas.

Lafont não alude aos carismas destacados pelo movimento carismático que não contempla.

Por outro lado, pode-se perguntar se o específico da “sucessão apostólica” é o governo. O governo não poderia ser participado amplamente por conselhos e representantes de todos os carismas ?

O próprio ministério da sucessão apostólica parece referir-se, antes de mais nada, à continuidade da tradição: trata-se de um carisma de discernimento e de julgamento, mais do que de governo. Os sucessores dos apóstolos garantem a continuidade. Uma vez que assumem funções de governo, entram em todos os desvios da história, transformam o seu ministério num papel sociológico. Hoje em dia é muito difícil discernir o que é de um ministério petrino e o que é esquema imperial gregoriano no ministério do Papa. Da mesma maneira, os bispos: representam a sucessão apostólica ou a administração de um sistema histórico montado no segundo milênio para estender o modelo imperial ao mundo inteiro ?

 

 

6. SUGESTÕES

 

 

1. A Igreja é uma história: a história do povo de Deus, continuação e perfeição do povo de Israel. Jesus definiu pouquíssimas estruturas justamente para deixar a liberdade ao Espírito Santo. Jesus conduz a Igreja não por meio de uma Constituição ou de leis, mas por meio do Espírito Santo.

O Espírito é imprevisto, introduz novidades, mas respeita os ritmos, as estruturas, as inércias da criação, ou seja da história. Como na história, as realidades nunca se repetem exatamente iguais. Tudo muda, às vezes por mutações instantâneas, às vezes por mudanças lentas e quase imperceptíveis.

 

Há diversas filosofias da história. Todas tiveram influência na Igreja. Na Igreja tradicional, o fundamento era apocalíptico. Estava tudo fundado na idéia de que a cristandade era a penúltima fase da história, que não haveria mais mudança, que a Igreja era imóvel, nunca mais mudava e que, após a conversão de Constantino, a Igreja era o reino de Deus na sua forma terrestre. A incredulidade moderna era interpretada como anúncio da apostasia final e o reino do Anticristo.

A modernidade esteve baseada no esquema do progresso da humanidade pela ciência e pela técnica, isto é pelo desenvolvimento material da produção. Gaudium et Spes, de alguma maneira, se inspira na modernidade e no progresso quando, no capítulo sobre a cultura, representa a história como a transformação da cultura pela evangelização, produzindo assim uma cultura cristianizada. Deste modo, a história do cristianismo seria a história do progresso. Haveria um progresso constante na evangelização das culturas.

A teologia da libertação adotou, em grande parte, a visão dialética da história, que era também a do marxismo. A história progride por revoluções, mudanças radicais que passam de um polo ao polo contrário. Os cristãos deviam participar do advento da revolução inevitável para, assim, participarem do advento de uma sociedade nova, mais justa e fraterna: pois, a história progride, ainda que por momentos dialéticos, por destruições seguidas pela reconstrução de algo melhor.

Todas estas filosofias da história não foram confirmadas pela história do século XX. Por isso, a filosofia busca outros esquemas.

Partimos de uma visão inspirada na evolução biológica e na história das civilizações. Há nas sociedades humanas duas forças antagônicas: uma força de novidade que propõe novos modos de atuar e forças de inércia que tendem a reintroduzir a novidade dentro da estrutura estabelecida. As sociedades mudam a partir de algumas minorias e, muitas vezes, uma só pessoa faz uma descoberta importante que consegue fazer discípulos. No entanto, as vanguardas são reabsorvidas pouco a pouco, é difícil manter a inspiração primitiva. No entanto, algo entra no tecido da sociedade, embora de uma maneira que transforma fundamentalmente a inspiração original. Este esquema: novidade - retorno ao antigo, com mudanças fracas, aplica-se em primeiro lugar, à história de Israel: luta constante entre os profetas e a maioria do povo. Aplica-se à história da Igreja.

Há na história da Igreja uma sucessão sem ordem aparente de intuições, novidades, inspirações novas totalmente imprevistas. O monaquismo foi totalmente imprevisto. Os mendicantes do século XIII também. Os grandes fundadores foram imprevistos. Nunca foram o produto puro e simples da cultura do seu tempo. Iam além da cultura. Mudaram a cultura ainda que não de maneira desejada por eles.

Com a penetração na sociedade o carisma incultura-se, adapta-se, amolda-se às estruturas estabelecidas e finalmente torna-se uma nova estrutura caracterizada pela inércia: jurídica, legalista, formalista, repetitiva, em que a forma acaba encobrindo a finalidade - uma estrutura que funciona por funcionar sem saber por que nem para quê.

Todos os carismas tiveram seu tempo: a figura episcopal de Nicéia, a monarquia papal de Gregório VII, o modelo sacerdotal sacral, o modelo monástico dos sucessivos fundadores e assim por diante. Depois de séculos, tudo isto se torna vazio de sentido, puramente repetitivo, e mata o dinamismo do Espírito em lugar de abrir-lhe os caminhos.

O Espírito cria novidade, a cultura absorve e dilui as novidades, assimilando-as à herança do passado. Desta maneira a evolução das estruturas é muito lenta. Mais ainda se o sistema tende a fechar-se em si mesmo pela sua natureza, o que aconteceu com a Igreja pós-tridentina, feita para tornar impossível qualquer mudança.

 

2. A novidade do Espírito manifesta-se em pessoas não estruturadas, leigos que não ocupam nenhuma função oficial, pessoas totalmente livres e disponíveis. Difícil que o Espírito se manifeste por pessoas implicadas numa hierarquia porque estas se reprimem constantemente e se ajustam às normas estabelecidas. Consideram como tentações todas as sugestões do Espírito Santo.

A história mostra que as inspirações e as novidades vieram de pessoas sem importância na Igreja, sem compromisso com estruturas estabelecidas. O exemplo mais famoso foi S. Francisco de Assis, que se negou a aceitar alguma das famílias religiosas que existiam no seu tempo: cada uma teria sido uma prisão.

A razão é que quem está nas estruturas age por meio de leis e regras. Ora, a vida da Igreja procede de ações nas pessoas. Durante séculos a evangelização foi feita dentro da família, anteriormente a toda ação do clero. O clero vem recolher o que foi plantado por tantos pais e mães de família.

 

3. Com o tempo os carismas podem apagar-se. Institutos religiosos entram em decadência, obras caem no formalismo e já não fazem mais nada, paróquias transformam-se em service-station de distribuição de sacramentos. As estruturas tornam-se fixas, inertes e somente produzem ações repetitivas sem sentido. Perderam o seu sabor. Esperam-se novos carismas.

Vem o momento em que a estrutura se torna mais importante do que Deus e ocupa o lugar da realidade sagrada. Foi a luta dos profetas contra o povo escravizado pelas hierarquias, a luta de Jesus contra as autoridades de Israel.

A história é uma sucessão de decadências e de reviravoltas, de queda na inércia e de retorno da vida. O Espírito manda novos carismas que suscitam uma nova vida. As estruturas por si mesmas não tem condições para infundirem vida de novo. A vida pertence ao Espírito e não pertence a categorias humanas mesmo revestidas de seu caráter sagrado.

No entanto haverá progresso ou retrocesso ? Somente Deus pode julgar. Não temos documentação suficiente para saber se o século XX foi melhor do que os anteriores ou o inverso.

 

4. Estamos numa época muito especial na Igreja católica. Pois, tudo foi feito para tornar impossível uma mudança séria, evitando dar liberdade aos carismas. O sinal foi a dissolução do Vaticano II pela Cúria romana em 30 anos de esforços perseverantes para apagar os últimos rasgos do Concílio. Subsistem palavras, mas quase nada de realidade de tantos esforços para adaptar a Igreja ao século XX.

Não há nenhum mecanismo previsto nas estruturas para iniciar uma mudança. Ao invés, tudo está previsto para impedir que pessoas muito carismáticas possam desequilibrar a situação estabelecida. A situação é tal que só um Papa pode abrir portas e janelas. Um bilhão de católicos não podem absolutamente nada. Tudo depende de uma pessoa só. Assim foi também no partido comunista. E por isso, tanto depende da escolha do sucessor do Papa atual. Ele poderá bloquear tudo ou dar espaço a uma nova história. O Papa por si só pode paralisar milhões de católicos. Tal foi o resultado da montagem do esquema gregoriano durante 1000 anos. Neste pontificado o sistema alcançou o seu estado culminante. Cada sínodo revela uma situação constrangedora: episcopados que não sabem dizer nada. São tão reprimidos os bispos que até perderam a consciência de serem reprimidos: acham que têm toda liberdade de falar. Acontece que são tão reprimidos que já não sabem falar mais nada a não ser futilidades.

Lembremo-nos: quando Lenine tomava o poder em São Petersburgo, o Santo Sínodo da Igreja russa estava reunido. De que tratavam ? De problemas de rubricas litúrgicas. Hoje em dia um clamor se levanta desde milhões e milhões de católicos. É assim como às vésperas da Reforma de Lutero. E de que maneira respondeu a Igreja ? Pelo 5o. Concílio de Latrão que não disse mais do que repetir as coisas de sempre. Hoje, o que foi dito no Sínodo da América ? Nada de novo, repetir as coisas de sempre, cem vezes repetidas. A hierarquia não tem mais carismas. Os carismas estarão no meio dos leigos, em jovens ainda desconhecidos que lançarão as novidades do século XXI. É bom que tantas assembléias episcopais tenham dado tantas provas da sua inocuidade. Isto nos mostra que devemos buscar os carismas por outros lados.

 

5. Qual é a novidade e o elemento construtivo dos movimentos carismáticos ? Trata-se aqui essencialmente dos carismas sensíveis e do batismo do Espírito. Há lago que é definitivo e constitui a abertura de um período novo na história da Igreja.

A cristandade está se dissolvendo apesar de tantos esforços para mantê-la sobretudo na América Latina: os pais não conseguem transmitir sua fé aos filhos. Por conseguinte, uma conversão pessoal é necessária. Tal conversão não se realiza por meios intelectuais: são experiências totais, que envolvem a personalidade concreta. Contêm elementos sensíveis e emocionais, assim como sucede no batismo do Espírito. O que cultivam os movimentos carismáticos deverá tornar-se comum na Igreja. Os grupos, movimentos, paróquias que não procedem assim, não tem conversões, não se multiplicam, não conseguem atingir a nova geração. As próprias comunidades de base terão que entrar na mesma metodologia ou perecerão por envelhecimento. Isto não quer dizer que se possa copiar simplesmente as práticas de tal ou qual movimento de conversão. Porém, o pior seria continuar o passado, porque a cristandade está agonizando, apesar do auto-engano praticado em tantas paróquias e tantas dioceses da atualidade.

Neste final de pontificado, todos colaboram para esconder a crise da Igreja Católica. Todos esperam o novo Papa. Porém, a crise episcopal é profunda: muitos bispos não sabem o que fazer ou se aferram ao passado justamente porque não querem reconhecer que não sabem o que fazer. Precisamos elaborar as fórmulas alternativas para que estejam prontas desde o início do novo pontificado.

 

 

José Comblin

Bayeux, Paraíba.

BIBLIOGRAFIA

 

- Hans Küng, Estrutura carismática da Igreja, em Concilium, tomo l, n º 4, abril de 1965,

p. 31-45.

 

- John Kister, Signs and instruments of liberation, Kok, Kampen (Holanda), 1996.

 

- Alberto Parra, Os ministérios na Igreja dos pobres, Vozes, São Paulo, 1991

 

- Ghislain Lafont, Imaginer l’Eglise catholique, Cerf, Paris, 1995

 

- Edward D. O’Connor, The Pentecostal Movement in Catholic Church, Notre Dame, 1971.

 

- Kevin et Dorothy Ranaghan, Le retour de l’Esprit, Cerf, Paris, 1973.

 

- Heribert Mühlen, Die Erneuerung des christlichen Glaubens, Charisma, Geist, Befreiung,

Munique, 1974 (Trad Esp. Espiritu, Carisma, Liberación, Salamanca, 1975).