Introdução:
Nesta intervenção tomarei, talvez abusivamente diante de quem o conheceu melhor do que eu, o Pe. José Comblin como modelo inspirador de uma teologia testemunhal a serviço da humanidade. Vou desenvolvê-la em cinco pontos: 1. A marca pastoral de sua teologia; 2. A definição da teologia como elaboração acadêmica da fé do povo de Deus; 3. O aspecto crítico de sua teologia; 4. A sua liberdade pessoal; 5. A elaboração de uma teologia libertadora. Portanto, essencialmente uma questão de método que começa pela coerência pessoal.
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A marca pastoral da teologia de Comblin
Antes de entrar propriamente no assunto que pretendo desenvolver, a liberdade e a libertação intrínseca à teologia de nosso patriarca da teologia latino-americana, mais uma vez é necessário situar o contexto original da migração e deslocamento não só geográfico, mas também social, eclesial e intelectual de Comblin. Ele veio para a América Latina, e mais precisamente para o Brasil, numa perspectiva missionária e alternativa à burocracia pastoral que ele experimentou na Bélgica como padre jovem. Uma missão em que Comblin não se sente pronto para “dar seu recado”, mas vem “buscar”, portanto começando por ver, escutar. Essa perspectiva de “missão” onde houvesse uma alternativa eclesial permanece no arco de seu desempenho como teólogo. Por isso Comblin se enturma quase imediatamente com a assessoria à Ação Católica especializada, que ele conhecia bem em sua raiz belga.
Comblin acompanhou a revolução conciliar da Igreja estando já no Brasil. Ele repetiu diversas vezes a impressão de impacto que se teve com as boas surpresas de João XXIII. O Papa apontou para uma “mudança linguística” no modo de se expressar da Igreja, o que, de fato, aconteceu com a linguagem do Concílio, há pouco sublinhado pelo historiador da Igreja, o jesuíta John O’Malley. Mas se examinamos o que estava acontecendo nos diversos movimentos que precederam o Concílio, especialmente a Nouvelle Théologie que Comblin conhecia bem, encontramos esta mudança de linguagem na metodologia para se elaborar uma boa teologia, que João XXIII acabou consagrando com a expressão italiana la pastoralitá – a pastoralidade, a vida da fé, um horizonte para orientar e inspirar a teologia. Com isso se volta ao primeiro milênio em que teólogos e pastores eram frequentemente a mesma pessoa e produziam em seus sermões e em suas lições de teologia o que a pastoral os instigava a pensar e a escrever. A pastoralidade foi também marca registrada do pensamento de Comblin em nosso meio.
Com a dimensão pastoral da teologia e a volta à unidade entre missão e pensamento, Comblin conheceu bem cedo em sua formação de Lovaina, no espirito da Nouvelle Théologie, o que se chamou então ressourcement, a volta às fontes. O movimento patrístico e bíblico começaram a dar frutos e, mesmo entre hesitações, marcha para frente e para trás de Pio XII – pense-se, por exemplo, na diferença entre a Encíclica Divino Afflante Spirito, que estimula a pesquisa bíblica com os métodos de estudo de literatura antiga, com a aplicação da abordagem de gêneros literários, e a Encíclica Humanae Generis, contra a hipótese do poligenismo mas também contra os métodos de estudo de teologia com utilização das diversas ciências modernas, buscando silenciar a Nouvelle Théologie – o que nós temos de positivo, apesar dos retrocessos, é uma recentralização – recentrage – da Palavra de Deus encontrada em primeiro lugar na Escritura e então na Tradição, no comentário patrístico, o que permitia uma superação do paradigma postridentino que reforçou cada vez mais o magistério eclesiástico quase silenciando a Escritura. A “refontalização” permitiu beber de novo diretamente da fonte e iluminou com um novo significado o ser cristão adulto e livre em sua fé, como vemos testemunhado por Comblin. Seu pequeno e precioso livro “A Oração de Jesus” e seu outro livro mais conhecido “A força da Palavra” mostram tanto a fonte evangélica e bíblica de sua mística e de seu pensamento como também a fecundidade dos desdobramentos históricos e atuais desta fonte.
Se a marca registrada da virada hermenêutica da teologia do século XX - especialmente, para o caso de Comblin, da Nouvelle Theólogie - é confrontar-se com o cristão adulto que se pergunta sobre o sentido, o contexto de missão e a inserção popular de Comblin no meio do povo real de carne e osso lhe abriu a possibilidade de confiar no bom senso adulto do povo simples e de suas perguntas mais cruciais sobre o sentido e a prática transformadora da fé. É desde este contexto que se pode examinar o conjunto tão variado da obra de Comblin, ora em linguagem mais simples, ora em análises mais complexas quando se trata de examinar as estruturas políticas, econômicas e eclesiásticas numa perspectiva histórica e crítica tomando o evangelho e o povo como critérios. Este é contexto fecundo de seus escritos.
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Teologia, a elaboração intelectual da fé do Povo de Deus.
Em 1985 e 1986, com o estímulo da Comissão Episcopal de Doutrina da CNBB, aconteceram dois encontros de teólogos e algumas teólogas em Belo Horizonte, donde nasceu a atual Associação de Teologia e Ciências da Religião (SOTER). Comblin estava lá, como estaria normalmente, quase todos os anos, nos Congressos da Soter. Desde os primeiros congressos pedíamos a Comblin que abrisse o Congresso com uma análise de conjuntura da sociedade, da Igreja e da teologia, tanto a nível internacional como nacional. Ele tinha o dom de nos surpreender não por gosto da surpresa mas porque quando estávamos todos olhando em uma direção, ele conseguia olhar para outra direção e levantar questões realmente “proféticas” que frequentemente nos perturbavam. Nós o tínhamos apelidado carinhosamente de “metralhadora giratória”, porque não conseguíamos prever para onde ele iria dirigir sua crítica. Era impossível sair de perto de Comblin sem material para pensar e discutir. Conosco, mesmo com sua simpatia, com um sorriso sereno, com voz tranquila e quase tímida, ele não usava luvas de pelica.
Assim, enquanto estávamos entusiasmados com a fundação da Soter em base a pressupostos epistemológicos bem alicerçados nas Comunidades Eclesiais de Base, na Opção preferencial pelos pobres, no principio evangélico de Libertação, portanto na função de intelectuais orgânicos das comunidades de fé e de luta por libertação, na aproximação dos movimentos populares, etc. Comblin objetou com severidade que esta seria uma teologia de pouca duração, uma teologia rasa, se não tivesse também um nível universitário, se não se confrontasse com as ciências, com os demais saberes da cultura. A elaboração da teologia deveria ser o mais rigorosamente possível de nível acadêmico, num ambiente de interdisciplinaridade. Isso nos surpreendia porque sabíamos da “teologia da enxada” e das desilusões de Comblin com os ambientes acadêmicos dos seminários. Mas até mesmo nas pausas desses congressos, quando Comblin não estava cercado por colegas em diálogo, podia ser encontrado sentado no jardim com um livro na mão. Se ele andou por este Brasil de ônibus, se viveu em meios populares, também amou a informação científica, a cultura universitária que lhe oferecia subsídio para sua missão de teólogo assessor. Por isso não penso errar em resumir que, para Comblin, a teologia é elaboração intelectual da fé do Povo de Deus.
Mas agora o outro lado. Nos últimos anos Comblin observava o crescimento acadêmico da teologia: foi reconhecida pelo Ministério da Educação, as faculdades e institutos começaram a receber visitas oficiais do MEC, credenciamentos, as pós-graduações exigiram corpo de professores permanentes, etc. e a implementação de exigências acadêmicas obrigam à interdisciplinaridade e à confrontação com outras áreas de conhecimento, ao ecumenismo e à relevância social e pública da teologia, o que ajuda enormemente contra a improvisação e as eventuais manipulações intraeclesiais. Mas ele observava a tendência de quem se ocupa com teologia a se consumir com os indicadores de excelência acadêmica, e inclusive a se refugiar e se acomodar no espaço universitário, afastando-se perigosamente do “primeiro amor” da teologia latino-americana. Por isso, embora dissesse com a sua proverbial calma, era claro em apontar a necessidade de retomar o lugar originário da teologia, as comunidades de fé, a vitalidade do povo, as comunidades de base, o opção preferencial pelos pobres que toca a legitimação de uma teologia realmente cristã. E ele mesmo, como todos sabemos, permaneceu fiel a este lugar teologal – a fé do povo de Deus – ainda que viajasse e lesse tratados sofisticados de teologia e da cultura em geral. Sua teologia seguiu o rio da vida, as demandas do Povo de Deus, e por isso não se tornou uma teologia sistemática conforme a academia, mas uma teologia fecunda porque conforme as perguntas reais da fé.
Em âmbito acadêmico, dado o crescimento de pós-graduações de ciências da religião no Brasil, nós debatemos as identidades e diferenças de ciências da religião e teologia. Parece incômodo academicamente afirmar que o lugar originário da teologia é a fé compartilhada em comunidades vivas de testemunho da fé e não a academia. Esta é um lugar derivado, não originário. As observações de Comblin corroboraram para que entendêssemos sem ambiguidades a complexidade da teologia que, para não se encerrar numa nova e árida escolástica no mundo da academia, origina-se no mundo da vida das comunidades de fé. Em relação a nós, que acabamos dependendo de um salário e/ou de uma missio canônica, Comblin sorria dizendo que ele já não dependia nem de uma coisa e nem de outra. Ele elaborou uma teologia crítica, livre e por isso libertadora. É disso que gostaria de tratar na sequência.
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Uma teologia crítica
Uma característica de Comblin foi a de dizer cada coisa por seu nome, sem a diplomacia dos que defendem suas carreiras. O seu realismo poderia parecer sombrio e até ácido para quem escutasse somente suas análises críticas. Mas Comblin era também um grande admirador inclusive de gente da hierarquia eclesiástica, e digo isso porque pode ter ficado a impressão que, em termos de hierarquia, ele tenha sido sempre muito duro. Eram muitos os bispos de quem ele admirava a coragem profética e a sabedoria brotadas de uma postura pastoral verdadeiramente evangélica. Ele nos ajudou a organizar um número da revista Concilium dedicada aos “Padres da Igreja na América Latina”. E o artigo inicial é de sua autoria, em que desenvolve o sentido e os critérios para considerarmos um bispo que seja “Padre da Igreja”: sua santidade, sua sabedoria, sua coerência com o conjunto da sabedoria da Igreja, sua importância na criação e sustentação da Igreja. Diversos bispos conciliares e pós-conciliares ajudaram a dar à Igreja latino-americana uma fisionomia e um pensamento próprio, e, segundo Comblin, a estes convém o título de “Padres da Igreja”. Em meu último encontro com ele, em San Salvador, por ocasião da celebração de trinta anos de martírio de Dom Oscar Romero, percorremos juntos os lugares que marcaram os últimos tempos de Romero – a catedral, a sepultura, o hospitalito com a modesta casinha e a capela onde Romero tombou. Reparei na grande reverência e piedade com que Comblin olhava e rezava.
Mas à noite daquele mesmo dia, na sua conferência, fez uma distinção clara e fina entre fé e sistema religioso, mostrando como o cristianismo só se tornou um sistema religioso pesado quando aderiu à política imperial triunfante, a era constantiniana. Nesse sentido sua teologia, mais precisamente sua eclesiologia, sempre teve um corte crítico junto à crítica social da política e da economia. Essa crítica, na verdade, partia da vida dos pobres e representava uma denuncia profética em favor dos pobres submetidos a toda sorte de poderes, inclusive o poder sacralizado na Igreja.
A visão crítica de Comblin em relação às estruturas da Igreja era “nua e crua”, mas não apocalíptica. Um contemporâneo que teve um perfil muito próximo em termos críticos foi Ivan Illich, que passou inclusive pelo Brasil assessorando o CENFI, Centro de Formação Integral, também chamado Centro Cultural Missionário, para um tempo de formação in loco dos missionários recém-chegados. Ivan Illich dirigiu por diversos anos um centro pioneiro no México, em Cuernavaca, ao lado do grande bispo Sergio Méndez Arceo. Antes disso tinha percorrido uma carreira meteórica em Roma e em Nova York, e como reitor de uma universidade católica de Porto Rico. Despertou nesse caminho para a necessidade de valorizar as culturas, mas com a crise violenta que se abateu sobre a Igreja de Cuernavaca, não só desistiu de modificar a Igreja, mas também do ministério que tinha na Igreja. E em seu livro já póstumo, de 2005, cujo título francês é sintomático - A corrupção do melhor engendra o pior – Illich retomou a expressão joanina “anticristo” para aplica-la aos cristãos quando pervertem a fé autenticamente cristã e voltam ao sistema religioso que encobre o cristianismo, uma luta do apóstolo Paulo e, no caso, também de João. Em outras palavras, somente cristãos podem ser esta figura de anticristo, um cristo invertido, apóstata que não se retira da Igreja mas se pensa como centro da Igreja, e faz a Igreja se tornar obscura, portanto algo pior que o demônio. Quando a fé cristã se perverte pelo poder é praticamente impossível de conversão, é o “pecado contra o Espírito Santo”, e parece não haver outra saída que a de invocar o fogo do apocalipse sobre ela. É uma visão perturbadoramente apocalíptica.
A crítica de Comblin não é apocalíptica nesse sentido, nem tão radical. Em seu escrito em que se interroga sobre um novo amanhecer na Igreja ele analisa dialeticamente a variedade de momentos tanto do ponto de vista histórico como de novas possibilidades para a Igreja. O caso de João XXIII é bem ilustrativo, e Comblin menciona a boa surpresa para a maioria dos católicos e até mesmo de não católicos, como Hanna Arendt em seu texto sobre um cristão no trono de Pedro. Portanto o imponderável, a surpresa e as possibilidades pertencem ao Espírito, e Comblin sempre acreditou indiscutivelmente no Espírito, de tal forma que a esperança também sempre permitiu permanecer com as portas abertas. Mas é necessário concluir de suas análises que a esperança não é ingênua, não conhece caminhos fáceis, já que a malícia humana penetra todas as estruturas, inclusive as mais religiosas. Na verdade, exatamente por isso, Comblin nos ensinou que não é necessário escandalizarmo-nos demasiado.
A crítica é um elemento necessário do discernimento, significa discernimento. Para chegarmos ao que é genuíno, autêntico, é necessário discernir, distinguir do que tem aparências mas tem caráter desviante. Comblin herdou de Lovaina esta tradição de exame da história, de seus dinamismos, que dá um perspectiva aos acontecimentos e instituições, para um discernimento entre os elementos culturais das estruturas, da liturgia, do dogma, etc. e os poucos e simples elementos essenciais, evangélicos, a pérola que antecipa o Reino de Deus. Nesse sentido ele foi especialmente crítico do exercício do poder na Igreja. Mas como explicar seus estudos sobre o Pe. Ibiapina ou sobre a cidade e suas oportunidades de evangelização sem uma visão que, passada pela crítica, discerne os sinais que mantem a esperança vigilante e as possibilidades históricas abertas?
Sua fineza crítica, provinda de uma fé e de uma esperança centrada no essencial, tornava-o um cristão e um teólogo livre com a liberdade do evangelho: “a verdade vos libertará”.
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Uma teologia livre
Se repararmos bem, a palavra “liberdade”, no conjunto da obra de Comblin, é mais recorrente do que a palavra “libertação”. Parece uma sutileza, mas tem importância e deve ser explicada. Em termos mais especificamente teológicos, Juan Luís Segundo teve o mérito de apontar para este detalhe: antes de a teologia pretender ser uma teologia de libertação é necessário que haja libertação da teologia, ela mesma deve ser libertada e livre para poder libertar. A teologia da Europa, com as ciências e a filosofia hermenêutica do século XX, descongelou seu quadro escolástico e metafísico de conteúdos incompreensíveis e ao menos aparentemente irrelevantes para a cultura contemporânea, e tornou-se uma ciência hermenêutica do sentido e da compreensão da fé e da esperança. Porém, na sociedade de bem-estar que se constituiu como objetivo na Europa, as comunidades de fé e de esperança não se erigiram suficientemente em comunidades de sentido e testemunho, excetuando pequenos grupos quase contraculturais. Na América Latina, no entanto, os pobres – a grande maioria da população sem horizonte de bem-estar – através de comunidades de base, de ministérios leigos, de encontros de formação, de leitura bíblica, etc., se tornaram um novo sujeito eclesial e um novo lugar teológico na opção preferencial pelos pobres: o lugar teologal preferencial da revelação e da salvação, onde Jesus está identificado com os pequeninos e onde Deus está com quem sofre e com os vencidos e vítimas dos sistemas de poder. Esse lugar teologal e teológico indiscutivelmente evangélico torna a teologia livre e profética.
Comblin, que preferia ser mais prático inclusive em sua especulação, faz uma conexão intrínseca entre o Espírito e a liberdade, entre o Espírito e a história em que o Espírito inspira e sustenta a experiência da liberdade. A liberdade evangélica, alcançada na verdade do Evangelho, não pode ser roubada nem diminuída por nenhum poder, inclusive por poderes internos, por pressões de ditaduras e manipulações ideológicas. Comblin foi um homem coerentemente livre, e sua liberdade provinha da centralidade do evangelho e da ação do Espírito nos movimentos da história humana.
Em seus exílios e perseguições, quando, por exemplo, no Rio de Janeiro, membros da organização “Deus Família e Propriedade” fizeram passeata com cartazes exigindo a sua expulsão, ou quando os militares chilenos descobriram que um artigo em inglês, publicado no norte do mundo, explicando os mecanismos das ditaduras do cone sul, tinha por detrás um pacato padre belga residindo em Talca, ao sul de Santiago, e o expulsaram mais uma vez, evidentemente tudo isso, somado inclusive a incompreensões em meios eclesiásticos, ferem a sensibilidade e fazem sofrer até os mais fortes, mas a impressão sempre foi a de um cristão livre, que desfazia o peso e a obscuridade com a firmeza tranquila da convicção evangélica. Este pé firme numa liberdade ao mesmo tempo originária e já escatológica é que permite entender a capacidade de examinar também a miséria humana em suas formas de poder e de violação mais escabrosas e decepcionantes, sem se deixar contaminar ou abater. Como a libertação é um processo dialético que tem que se bater com a opressão e ao mesmo tempo tem que ser maior do que a opressão, ter um pé fora desta dialética, já na liberdade dos filhos de Deus, que é nosso sonho escatológico, é absolutamente necessário. Ficando-se inteiramente dentro do processo dialético, há o risco quase impossível de ser evitado de ser consumido num círculo em que, de libertador se passa a opressor.
A liberdade, de fato, por seu excesso, por ser mais que o círculo de opressão e libertação, além de ser libertadora, é criativa. Um sinal desta liberdade criativa ficou evidente quando, em uma assembleia queixosa pela falta de liderança e de compreensão na Igreja local, pelas proibições e intimidações que pairavam sobre as iniciativas pastorais, parecendo sufocar o impulso evangelizador, Comblin afirmou com humor que, num Brasil tão grande e em cidades tão complexas ou no interior, sempre havia muito espaço para realizar sonhos pastorais e criar ambiente favorável para o Povo de Deus se manifestar, sobretudo nas periferias dos poderes, nas imensas áreas abandonadas a si mesmas, sem aí ser molestados. Enfim, há sempre liberdade para criar, sem precisar de forma infantil a aprovação e o estímulo de fora, de cima. É claro que não se trata de um ideal, pois o ideal é a comunhão orgânica para melhores frutos da evangelização, mas se trata de realismo com liberdade de espírito.
Enfim, as suas migrações até o final de sua vida são o melhor testemunho de sua liberdade pessoal e coerência com o que aconselhava aos outros. Somente pessoas livres podem ser também libertadoras. Mas como ninguém é livre sozinho, é necessário apoiar a própria liberdade na libertação e na liberdade mais ampla daqueles com quem se convive. Se Comblin tinha uma análise frequentemente severa para com as estruturas e com quem mantem interesses de poder sem transparecer poder de serviço nessas estruturas, foi da admirável luta dos pobres que, depois de tudo, mantém a fé e a esperança, que Comblin aprendeu a ser mais livre, segundo seu testemunho. Esta é uma das inversões que detectava e nos apontava respaldado pelas inversões evangélicas, sobretudo de Lucas.
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Uma teologia libertadora
Em última análise, o que importa para uma teologia ser relevante é sua dimensão libertadora, que não se dá somente, como buscou com grande prestígio a teologia da Europa, no sentido da existência humana diante de Deus, mas numa prática de transformação da realidade querida por Deus. Esta diferença coloca alguma afinidade eletiva com as lutas socialistas, como sabemos. E, no caso de Comblin, convém aqui um paralelo a meu ver instigante entre a pedagogia de Paulo Freire e a sua pedagogia teológica na “teologia da enxada”. Uma tese firme de Paulo Freire é de que ninguém educa ninguém e também ninguém se educa sozinho. É a interação que possibilita a emergência de sujeitos que se ajudam e se socializam na educação. Tornou-se bem conhecido o método de pedagogia do oprimido: através da linguagem, da alfabetização, em torno de palavras que expressam sua luta de vida, seus sonhos de vida, seus sofrimentos e conquistas, a consciência de sujeito emerge cada vez mais segura e livre. Passa-se das palavras geradoras aos temas geradores, ao debate do que é essencial para a vida. A conscientização, como a libertação, não é outorgada por algum sujeito messiânico e recebida passivamente. Faz, antes, parte de um processo que os oprimidos elaboram juntos. Não me estendo mais nem com mais rigor neste ponto porque dou por sabida esta genial metodologia de Paulo Freire.
Quando Comblin chegou ao Recife, Paulo Freire já estava no exílio. Dom Helder, no entanto, em tempos de proibição de se reunir em público, incentivou um verdadeiro e genial movimento de expressão, o “Encontro de irmãos”. O que aproxima fé e vida segundo o método de Paulo Freire. O método se irradiou por toda a vida do povo envolvido. E foi se expandindo para outras áreas, inclusive a teologia acadêmica. Não conheço, na parceria entre o pastor e o teólogo, entre Dom Helder e Comblin, quem influenciou quem, mas é certo que se afinaram na mesma direção. É então que a “teologia da enxada” tem significado insuperável até hoje. Não sou a pessoa mais indicada para testemunhar o método da teologia da enxada como um método de reunião de fé e vida e também de vida e conhecimento de forma tão libertadora. Essa teologia exigia muita abnegação de quem se engajava nela: deixar a tranquilidade do espaço asséptico de estudo, do silêncio da biblioteca, do conforto da academia, para mergulhar na vida de trabalho do povo, nas suas conversas e nos seus dramas e sonhos. Com uma clara preferencia, evidentemente, pelo povo humilde, pobre, gente que mata um leão por dia para continuar vivendo. Dalí provinham as palavras e os temas realmente importantes, o circulo da vida e da teologia.
Na Soter, mesmo depois de desarticulada aquela teologia e o seminário do Recife, nós ainda desfrutamos do realismo e da simplicidade de quem vai direto ao assunto que importa em todas as intervenções de Comblin. O recurso à sua erudição histórica, eclesial, cultural, vinha em segundo lugar, como reforço ao essencial, que ficava sempre a vida do povo de luta e de fé interpretada evangelicamente.
A renúncia à pretensão de desempenhar um papel messiânico ou de esperar demais da Igreja como responsável pela evangelização se deveu ao fato marcante de que Comblin realmente acreditou no Espírito Santo, na palavra com Espírito, na solidariedade com Espírito, nos movimentos sociais com Espírito, na ação com Espírito, na História com Espírito, naquilo que tece a vida popular sempre com Espírito.