Conferencia de P. José Comblin
por ocasião do 92º aniversário de nascimento de Dom Helder
– pronunciada em Recife em 8 de fevereiro de 2001.
A. A Mística
1. Em primeiro lugar é preciso reconhecer que dom Helder foi antes de tudo um místico. Antes de ser padre ou bispo, antes de ser o guia da Igreja do Brasil, antes de ser o defensor dos pobres, antes de ser o promotor da justiça e dos direitos humanos contra toda opressão, ele foi um místico e todos o seus títulos traduzem unicamente as circunstancias nas quais ele viveu a sua mística.
Portanto, falar da espiritualidade de dom Helder é de toda a sua personalidade, porque o que ele demonstra exteriormente é apenas acidental. Entre muitos outros bispos ou padres, a espiritualidade é um acidente que surgiu durante a sua vida. Em dom Helder, a espiritualidade é seu próprio ser. É sua vida. O resto é acidental.
Houve muitas conversões na vida de dom Helder, para retomar uma expressão que ele mesmo adotou como título de um livro de entrevistas que ele publicou na França. Mas essas conversões jamais atingiram o fundo de sua personalidade. Elas foram mudanças na aplicação da sua vida mística mas não modificaram a sua orientação profunda de vida, embora tenham marcado etapas no aprofundamento de tudo o que viveu depois. Por isso essas conversões nunca resultaram de arrependimentos ou contrição pelo passado. Elas não foram dramáticas como no caso de pessoas que, frequentemente, descobrem a realidade ou de pessoas que mudam radicalmente a sua vida. Elas tampouco foram a conversão de santo Agostinho, nem a conversão de São Paulo, nem a conversão dos pentecostais ou dos carismáticos. Na vida de dom Helder não houve dramas, mas uma continuidade profundamente pacífica.
O testemunho de sua vida mística está em milhares de páginas que ele mesmo escreveu e que estão em vias de publicação, necessidade urgente porque o Brasil carece justamente de uma literatura mística. A sua vida era absorvida por Deus. Ele via tudo em Deus, a partir de Deus. Ele viveu intensamente essa vida em Deus, sem nenhum esforço, com grande naturalidade, pois era um místico e vivia no invisível mais que no visível, ou melhor dizendo, ele via o invisível no visível. Daí as longas horas passadas na comunicação com o invisível que, para ele, era realmente sensível e presente.
2. Sua vida mística utilizava os temas e as meditações do catolicismo tradicional recebido da família, sobretudo de sua mãe e do contexto cultural do Ceará. Mas ele não se fechou nessas meditações. Doutrina, dogmas, sacramentos, devoções: tantos caminhos que não detiveram sua atenção porque ele ia diretamente ao objetivo de sua mística: o Deus revelado conforme toda a tradição nordestina. Por isso, ele se sentia à vontade entre todas as pessoas de todas as religiões ou mesmo sem religião.
A teologia que ele aprendeu no seminário não teve nenhuma influencia sensível sobre ele. Outros tiveram que fazer esforços e passaram por crises dramáticas para se libertarem da teologia do seu seminário, que era apologética, intelectual, puramente eclesiocêntrica. Para ele, essa teologia escorregava, sem penetrar. Ele descobriu mais tarde que esta teologia não lhe servia mais na sua missão sacerdotal, mas essa descoberta ocorreu sem crise. Sua fé já estava enraizada em outro terreno e a perda daquela teologia não o afetou. Ainda no seminário, ele compreendeu que a teologia era superficial e artificial e que não era preciso atribuir-lhe muita importância. Ele a abandonou sem nenhum problema e jamais teve necessidade de aprofundar seus estudos teológicos. Ele estava em Deus e não tinha necessidade de discursos. Ele vivia e prescindia dos discursos. Inteligente como ele era, ele poderia ter feito seus estudos de modo brilhante, mas isso teria atrapalhado a sua carreira.
Ele teve a maior devoção pela Eucaristia, sobretudo segundo a tradição popular medieval do milagre da presença real do Cristo sensível, que, de certa maneira podemos tocar com as mãos e com a boca. Ele teve a maior devoção por Nossa Senhora, conforme a piedade popular que a torna um refugio universal, a consoladora universal, a mãe de todos e em todos os momentos da vida. Ele teve a maior devoção pelo Papa, a devoção popular pela figura alva do pai universal, visto do ponto de vista de toda a humanidade, como viu santa Catarina de Senna, independente da personalidade do papa. Ele estava impregnado das três famosas brancuras do catolicismo pós tridentino. Mas tudo isso era acidental, eram meios para expressar algo muito mais profundo que era a sua própria vida. Ele jamais foi catequista ou professor dos dogmas ou dos preceitos católicos.
Ele teve o privilegio de jamais trabalhar numa paróquia. Isso teria sido para ele uma grande provação, pois na paróquia muitos se deixam aprisionar pelas coisas sagradas e perdem de vista a vida mística que deve animá-los. Tornam-se prisioneiros dos ritos e das palavras e transformam-se em funcionários da religião.
Por tudo isso, as mudanças conciliares não modificaram nem o seu ritmo nem a sua orientação. Ele guardou a sua religião aprendida na infância com toda tranquilidade e a adaptou aos novos temas conciliares, sem jamais atribuir-lhe qualquer superstição. Justamente porque ele era místico, essas coisas não o afetaram.
3. Dom Helder era dotado de uma extraordinária sensibilidade. Percebia tudo, as menores mudanças com intensidade e reagia imediatamente a todos os impulsos, a todas as sensações. Ele compreendia de vez, era todo intuição. Seu pensamento procedia de intuição em intuição. Ele era de uma grande vivacidade para descobrir o que interessava, para conhecer as pessoas, para interpretar as circunstancias e os acontecimentos. Sua atenção estava sempre alerta e sua imaginação era infatigável. Ele era capaz de se levantar a cada manhã com um novo projeto e uma nova descoberta.
Está claro que a sua mística passava pela sensibilidade. Uma sensibilidade que não estava voltada pra o interior como encontramos em santo Agostinho e tantos outros místicos ocidentais do mesmo espírito. Estava voltado para o exterior e para as pessoas, à maneira nordestina. Ele via, sentia, vivia o amor de Deus em todos os seus contatos com o mundo exterior, particularmente com as pessoas que ele reencontrava. Ele era místico e poeta ao mesmo tempo. Sua mística era poética, pois é nas realidades sensíveis que percebia as maravilhas de Deus. Sua vida mística se expressava pelo jogo de seus olhos, pelas inflexões de sua voz, pelos largos gestos que pareciam sempre querer abraçar o mundo todo, pela insistência, pelo jogo das mãos e do corpo.
Muitos interpretaram esse jogo como uma comédia, um artificio voluntário, uma manobra para ganhar as pessoas. Mas sem dúvida isso era tão natural e expressava unicamente que ele estava sempre sobre a inspiração de Deus, a força de Deus. Ele dizia e fazia tudo com grande disposição, como se todos fossem momentos essenciais, como se o dia de hoje fosse o mais interessante e como se a pessoa com quem ele falava fosse a mais importante. Era o fogo de Deus que o animava a cada dia e se servia de sua sensibilidade natural. Em tudo isso ele era inimitável e aqueles que procuraram imitá-lo fizeram papel ridículo. O mesmo gesto feito por dom Helder ou por qualquer outra pessoa tem conteúdos bem distintos, pois, em dom Helder esse gesto expressava seu encontro com Deus em tudo e em todos.
Não podemos atribuir nenhuma fonte literária a essa mística, tipicamente nordestina. Dom Helder não foi discípulo de nenhum místico. Sua fonte estava na religiosidade tradicional do povo do Ceará, na mística presente na vida de tantos cearenses e outros nordestinos. Ele não pertenceu a nenhuma escola, mas poderia muito bem ser a fonte de uma nova escola desde que seus escritos sejam publicados.
4. O cerne da mística cristã e de toda mística é o amor. Mas há diferentes maneiras de viver o amor (cf. dom Helder Câmara: Entre suas mãos, Senhor – Ed. Paulinas 1986, p. 19, 31, 41, 71, 82). Deus aparece como a fonte do amor, um amor universal para toda criatura. Este amor é admiração, aceitação, reconhecimento de seu valor, da bondade das coisas. Esse amor abraça a totalidade da pessoa humana, alma e corpo. É a paz e a alegria. O amor é dom de amor. Esse amor quer ser fonte do amor universal.
O amor a Deus, no sentido de santo Agostinho, parece pouco. O tema do pecado é praticamente inexistente, como também o da penitencia e do arrependimento. Dom Helder jamais teve uma experiência forte do pecado; daí que esse tema não ocupa lugar na sua sensibilidade. Para ele o amor estava ligado à beleza, à pureza, à gratuidade e à felicidade. Assim, dom Helder podia estar sempre aberto a todos. Ele não tinha reservas. Nem se embaraçava pela ideia de que seu interlocutor poderia ser um pecador. O pecado já estava perdoado e não era preciso preocupar-se. O maro irradiava e esse amor era a fonte da atração que ele exercia sobre todos que o encontravam. Os que o criticavam ou que o denigriam eram aqueles que jamais o conheceram.
5. O amor era essencialmente paz. Há certas formas de amor que são conquistadoras e violentas. Há pessoas religiosas que compreendem a vida cristã como um conflito entre a verdade e o erro, o bem e o mal, a igreja e seus inimigos. Dom Helder nunca foi assim. Seu amor era fonte de paz universal. Ele não procurava perceber ou descobrir o mal ou o erro. Ele acreditava na força do amor. Para ele, o amor era sempre o mais forte.
As circunstancias o obrigaram a aceitar e a enfrentar situações de conflito e o levaram a reconhecer o caráter inevitável de uma luta pela justiça. Mas ele teve que sofrer muito, não tanto por ser vitima do conflito, mas por tê-lo provocado ou criado situações de conflito para defender o evangelho da justiça. Por sua sensibilidade ele era espontaneamente pacifico. Ele sofreu muito. Ele pregou continuamente a não-violência que estava profundamente enraizada em seu temperamento, ele que acreditava no amor universal e que procurava praticar esse amor.
Por temperamento ele evitava todo conflito. Ele aceitou que muitos padres fizessem campanha contra ele na sua diocese sem jamais tomar medidas contra eles. Ele preferia ignorar. Ele preferia ser humilde mais a humilhar. Ele não podia pensar que havia pessoas más no mundo e tampouco na Igreja. Para ele o amor era capaz de vencer todas as resistências, promovendo a paz.
B – Mística e Ação
1. O Cearense (cf. Em tuas mãos Senhor! P. 71). Dom Helder tinha uma profunda consciência de ser cearense e o privilegio que é ser cearense. Nascer cearense era como uma predestinação. Ele não diz em que consiste o privilegio dos cearenses, mas a história nos fornece ensinamentos interessantes.
Há uma longa tradição mística cearense. Quase todos os místicos nordestinos e mesmo brasileiros foram ou são cearenses. Basta relembrar os nomes de padre Ibiapina, Antônio Conselheiro, padre Cícero, beato Lourenço, dom Helder, dom Hélio Campos para relembrar apenas os mais conhecidos. Em nenhuma outra região do país houve essa sucessão de místicos. Há algo em comum entre eles, apesar da diversidade das personalidades.
O que é comum a todos é que eles foram ao mesmo tempo místicos e homens de ação intensa. Totalmente místicos e totalmente ativos. É comum a todos que toda a sua atividade era impregnada de mística e que sua mística abraçasse o mundo com um amor ativo. Essa associação não é tão frequente na historia da Igreja. A maioria dos místicos não foram tão atuantes no mundo. Ao menos, eles foram ativos na Igreja, através de atividades especificamente religiosas. A ação no mundo é precisamente a característica da tradição cearense.
2. Todos os místicos eram visionários. Eles olhavam para o futuro. Eles acreditavam na irrupção de um mundo de amor e de paz. Eles pensavam que eles deviam eles mesmos tomar a iniciativa de uma mudança do mundo nessa direção. Eles possuíam uma imensa confiança no porvir, confiança na sua capacidade. Na sua missão. Eles tinham uma extraordinária esperança, esperavam contra toda esperança, renovando a cada dia a sua esperança.
Essa esperança fazia que o padre Ibiapina percorresse incansavelmente todo o Nordeste, mobilizando o povo sertanejo para suas missões, a partir das Casas de Caridade criando uma nova sociedade em pleno sertão. Essa esperança visionária conduziu o padre Cícero a criar o Juazeiro, atraindo milhares de nordestinos oprimidos e desamparados para uma cidade livre, que era já a realização do Reino de Deus. Essa esperança levou Antônio Conselheiro a fundar a comunidade de Belo Monte que, em dois anos, tornou-se o segundo polo de desenvolvimento econômico da Bahia. Essa esperança levou dom Hélio a transformar o inferno de Pirambu (n.t. a pior periferia de Fortaleza) numa comunidade de comunidades, prefigurando as comunidades eclesiais de base.
A esperança de dom Helder era extraordinária, a ponto de dar, aos olhos dos que estavam próximos dele, uma impressão de ingenuidade. Nos piores momentos do regime militar, ele se levantava a cada dia com novas razoes de pensar que a libertação já estava à vista. Não importava qual era o indício ou aparência, bastava verificar uma confirmação de suas previsões. Seu otimismo não admitia desmentidos. Ele tinha sempre no coração uma visão imensa do mundo novo em gestação. Como todos os visionários cearenses, ele renovava o entusiasmo dos profetas: de toda maneira, o futuro era tão presente que já parecia estar acontecendo.
3. Os cearenses são visionários, mas são visionários práticos que sabem realizar, que não perdem de vista as condições materiais e a necessidade de organização do povo. Tosos realizaram obras válidas e eficazes para o seu tempo. Eles foram sonhadores mais não irrealistas; eles foram ao mesmo tempo sonhadores com os pés na realidade. A diferença foi que todas as ações, as atividades as mais praticas ou imediatas se inseriram numa visão grandiosa do porvir do Reino de Deus. Tudo o que eles realizaram foi de uma importância decisiva, pois tudo se inscrevia na marcha inelutável do mundo novo.
É por isso que toda a paixão com a qual dom Helder vivia em Deus se aplicava também às atividades práticas. Ele fazia tudo com a mesma paixão, convencido que cada dia era um momento decisivo da história. Ele se dedicava com paixão às atividades politicas em um primeiro momento, depois às atividades eclesiais no Rio de Janeiro, depois às obras assistenciais aos favelados, à luta contra a opressão no Recife, às viagens pelo mundo para denunciar o sistema de dominação imposto ao terceiro mundo – as ditaduras – e anunciar um mundo novo, até iniciar as Obras de São Francisco (obras sociais em Recife): tudo isso como se fossem momentos decisivos da história, vividos com uma consciência profética.
Como todos os bispos místicos e proféticos de sua geração – os bispos de Medellín – ele foi acusado de negligenciar a sua diocese, de desorganização, de ser um bispo confuso. Por essa razão ele foi proibido de viajar, para que se ocupasse mais da diocese. É falso, inspirado, sobretudo pela maledicência, pela inveja, pelo famoso rancor sacerdotal – não há nada pior do que a raiva de padre, se não for a raiva de um bispo. Na realidade, a diocese funcionava muito bem e dom Helder sabia resolver os problemas como um verdadeiro diretor de empresa, com a única preocupação de preservar sempre a prioridade dos pobres, o que não significa uma desordem, mas uma forma de ordenar as coisas. E ele podia contar com o apoio certo e totalmente leal de dom Lamartine (seu bispo auxiliar) e ter confiança nos seus colaboradores.
Não havia nenhuma oposição entre a vida mística e a vida prática, mesmo nos detalhes da vida cotidiana. Tudo estava integrado na visão profética, pois em nenhum momento dom Helder perdeu sua grandiosa visão da marcha para um mundo novo no qual a diocese de Recife era um lugar privilegiado. A diocese de Recife não devia ser ela o centro do terceiro mundo, o polo do surgimento de uma Igreja para o terceiro mundo? O que para muitos poderia ser ingenuidade ou vaidade era para ele uma projeção de sua mística profética. Ele vivia tudo com a intensidade com a qual absorvia as promessas do Evangelho.
4. Ele era de uma curiosidade e interesse sempre vigilante. Sempre buscava as noticias, os derradeiros acontecimentos, queria ver o que sucedia. Sempre buscava os indícios que reforçavam a sua convicção de que estávamos caminhando para a libertação. Persuadido pela proximidade do Reino, ele procurava os sinais, como nas parábolas do Evangelho. Em tudo ele encontrava sinais otimistas. Tudo parecia sempre melhorar – sensibilidade do cearense, para não dizer do nordestino em geral.
A curiosidade era tal que muitas veze ele se iludia. Mas quando a realidade desmentia suas previsões, ele não se deixava abater mas descobria imediatamente outros sinais que o faziam renascer para a esperança e a busca de sinais recomeçava.
Ele tinha grande interesse pelos outros. Em tudo ele via as pessoas que podiam contribuir nessa marcha do reinado de Deus. Todos tinham um papel na sua visão profética do mundo. A todos, desde o primeiro reencontro, ele atribuía um papel porque cada pessoa era muito importante a seus olhos. Por isso ele exercia uma verdadeira fascinação. Muitos visitantes que não o conheciam pessoalmente saiam fascinados após o primeiro encontro. E os que o conheciam de longa data permaneciam sob a influencia dessa fascinação pois o papel que dom Helder lhes atribuía os valorizava muito. Mesmo aqueles que não lhe davam muito crédito se sentiam valorizados e persuadidos de que sua ação era realmente necessária e eficaz. Todos se sentiam importantes ao lado de dom Helder. Ele sabia inspirar esse sentimento. Por isso ele soube suscitar a colaboração de tantas pessoas.
Assim, ao invés de fazer ele mesmo, ele fazia fazer, mobilizando outros para agirem e multiplicarem sua ação. Ele agia por intermédio de outros. Ele agia geralmente nos corredores onde ele incentivava outros a fazerem o que ele queria fazer. Ele estava nos bastidores do Concilio, do CELAM (Conferencia Episcopal Latino Americana), da CNBB Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil), aparecendo raramente, mas encarregando outros de fazer o que ele queria sem que eles percebessem que estavam fazendo a política de dom Helder.
A maior parte do tempo ele fazia isso inconscientemente, tão convencido estava que o mundo novo estava por vir e que todos deviam prepara sua chegada. Em geral, o seu papel foi muitas vezes subestimado. Outros davam a impressão de agir quando na verdade eles eram movidos por dom Helder. Ele não tinha orgulho nem espírito de competição. Para ele tanto fazia que outros tivesse a glória. Ele queria que o reinado de Deus chegasse. O que foi muitas vezes interpretado como vedetismo, vaidade, coisas completamente alheias à sua personalidade.
Está claro que dom Helder exerceu uma atração especial sobre as mulheres, mais fascinadas do que os homens – isso porque percebemos um grande devotamento por parte delas. Cada uma era feliz de poder se consagrar totalmente a sua vida às obras que ele estimulava e de merecer a sua atenção. Suas amizades, na maior parte, foram amizades de mulheres. Sua afetividade desarmava qualquer apreensão e, ao contrário, criava uma espécie de cumplicidade. E ele foi fiel nas suas amizades, especialmente às amizades do Rio de Janeiro, que ele denominou o grupo de s. Joaquim – até o final de sua vida.
D. As Etapas
1. As circunstancias permitem ou não, que uma pessoa se revela ou não revela. As circunstancias permitiram a dom Helder de revelar a sua personalidade. Ela estava ali, visível: existia antes das circunstancias. Mas, em outras circunstancias, dom Helder teria sido um novo dom Leme, mais brilhante porém distinto nas suas ações. Seus começos permitiam perceber tal eventualidade. Mas as circunstancias – seria essa a via secreta da Providencia? – lhe foram mais favoráveis. Houve o Congresso Eucarístico em 1955, houve a Ação Católica e a preparação do Concílio Vaticano II, houve os golpes militares de Estado e os regimes de Segurança Nacional que estenderam diante de dom Helder um campo imenso de atuação, uma série de desafios onde ele pode revelar o que trazia em si. Sua mística atravessou as fases desta história. Ele sempre permaneceu o mesmo, mas com aplicações distintas, o que lhe permitiu um aprofundamento progressivo.
2. Quando dom Helder foi ordenado sacerdote em 1931, o plano pastoral de dom Leme – que não eram mais do que as orientações definidas pelo episcopado após a separação entre Igreja e Estado – já estava em andamento. O plano visava restabelecer o poder da Igreja na nova estrutura que lhe foi imposta. A reconquista se faria pela ação direta sobre as elites dirigentes do país, sobretudo através dos colégios católicos que deviam converter as crianças dos republicanos em políticos, senhores da terra, mestres do poder sob todas as formas.
Os bispos logo perceberam os talentos do jovem Helder e resolveram direcioná-los a serviço de sua política: atuação no mundo da política através da Liga Eleitoral Católica (LEC), atuação sobre a opinião publica através da imprensa, atuação junto à nova classe dirigente através da educação católica. O jovem Helder se lançou neste programa episcopal com todo seu entusiasmo. Sua personalidade era tão privilegiada que o sucesso foi imediato e ele poderia ter sido o continuador natural da estratégia de dom Leme. Ele teria sido o líder de uma cristandade restaurada, dominando o Estado com seu poder cultural, como em outros tempos, e influenciando de modo decisivo o poder político. Helder já estava bem ligado às elites. As posições que ele ocupou no sistema educacional nacional rapidamente o colocaram em contato com as pessoas mais importantes da sociedade e do estado brasileiro da época. Todas as portas no Rio de Janeiro e no Brasil lhe eram abertas.
Responsável pela Ação Católica, ele tinha em mãos as chaves da pastoral na época. Isso lhe deu o chão para criar a CNBB e depois o CELAM. Foi também o organizador do famosos Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, quem foi a coração da primeira fase de sua vida. Ele realizava o sonho de dom Leme. Sua contribuição nas instancias governamentais brasileiras na preparação e na realização do Congresso demostraram a importância que a Igreja havia adquirido no cenário político nacional.
Os mestres intelectuais da época serviram apenas para reforçar a politica episcopal: politica de poder, de reconstrução da cristandade, de vitória sobre a modernidade que era vivamente condenada pelo magistério da Igreja e, no Brasil, por Jackson de Figueiredo e o grupo intitulado Tradição, Família e Propriedade, incluindo Alceu Amoroso Lima no primeiro período. Toda a mística de dom Helder serviu para apoiar essa estratégia pastoral. Não é preciso surpreender-se. Naquele tempo quase todos os católicos aceitavam essa orientação da hierarquia: a famosa obediência cegava os olhares de todos. E dom Helder estava impregnado do culto ao Papa. Se o Papa queria essa pastoral, isso certamente era do agrado de Deus.
É certo que dom Helder não se engajou nessa via por convicções intelectuais dos grandes autores católicos de então, nem mesmo de Maritain. Esse inclusive foi acolhido com receio pelos defensores da TFP, mas depois que perceberam que Maritain defendia também uma estrutura de cristandade e poderia ser útil à estratégia do episcopado. Mas dom Helder não era impelido por motivações intelectuais. O que o movia era a obediência à hierarquia. Se o Papa queria assim, isso bastava: ele não necessitava argumentos intelectuais que jamais tiveram muita importância para ele.
No início a Ação Católica não modificou os fundamentos de sua visão pastoral. A Ação Católica se baseava na ação dos leigos para influenciar o Estado e assim reforçar a ação mais discreta do episcopado, aproveitando-se das oportunidades oferecidas pela estrutura republicana da sociedade. O objetivo era o mesmo: reconstruir o poder da Igreja na sociedade. Foi somente a partir da JOC e da JUC, sobretudo depois de 1955, que a Ação Católica tomou um outro rumo e, pouco a pouco, modificou a visão de dom Helder que era seu assistente nacional. Mas convem lembrar que antes disso, houve a sua conversão em 1955.
3. A conversão de 1955, por ocasião do Congresso Eucarístico internacional é bem conhecida e foi relatada muitas vezes. Não é preciso repetir o que já foi bem escrito e comentado. Essa foi a sua conversão aos pobres. Foi então que dom Helder começou a descobrir outro mundo e passou a distanciar-se cada vez mais de seu projeto anterior. Isso ocorreu de tal forma que a convivência com dom Jaime se tornava cada vez mais difícil e o cardeal acabou solicitando a sua saída da arquidiocese. A mesma mística que ele dedicou ao poder da Igreja agora ele consagrava no serviço aos pobres.
Essa conversão foi se desenvolvendo progressivamente. Helder não compreendeu tudo de uma vez. Mas seus olhos estavam abertos e ele começava a ver o mundo de outro ponto de vista e isso foi o começo de um novo processo que ele percorreu em etapas. Após descobrir a miséria das favelas e a necessidade de fazer alguma coisa – por isso idealizou a Cruzada São Sebastião – dom Helder percebeu pouco a pouco a complexidade do problema e a que ponto a pobreza estava relacionada à estrutural da sociedade. Nisso a evolução da Açao Católicca, a preparação do Concilio Vaticano II, a personalidade de João XXIII, a influencia do padre Gautier e do padre Lebret, dos bispos do Pacto das Catacumbas em Roma, do cardeal Lecaro e a evidencia escandalosa da opressão dos pobres pelos detentores do poder marcaram as etapas de um processo progressivo e decisivo que chegou a seu termo nos anos 70.
Com sua sensibilidade sempre desperta dom Helder compreendeu que a opção pelos pobres seria um caminho que iria longe, com perspectivas ilimitadas. O medo não o impedia, como a tantos outros. Ele se engajou com todo o seu entusiasmo. Esse era um movimento que animava a Igreja no mundo inteiro, ainda que de forma minoritária. Ele tomou a dianteira desse movimento e foi um dos que lhe deu maior impulso. No fim desse processo ele pôde ser chamado de o bispo dos pobres!
Em que medida dom Helder percebeu que essa nova orientação estava em sintonia com Deus e com a sua alma mística? Em que medida ele a percebeu como um aprofundamento de sua fé? Não tenho autoridade para responder. Quem o conheceu mais intimamente poderá responder melhor.
Mas está claro que ele assumiu esse novo papel de bispo dos pobres de forma natural e como se isso sempre tivesse sido a sua forma de viver. É claro que diversos fatores o ajudaram. Chegando a Recife ele redescobriu seu povo, suas raízes nordestinas, ele identificou-se com o seu povo nordestino, povo pobre e massacrado. O fato de retornar ao Nordeste certamente foi muito significativo para ele.
Em segundo lugar, com a ruptura provocada pelo Estado militar, ele perdeu seus laços com o poder que ele tinha no Rio de Janeiro: ele estava livre para mergulhar no mundo dos pobres que doravante era também o seu mundo. Prontamente ele se descobriu destituído de poder.
Com o golpe de Estado militar, ele perdeu seu poder não apenas na sociedade civil, mas também na CNBB que o rejeitou. O golpe de Estado coincidiu com sua saída da CNBB. Após anos de sucessos, ele era rejeitado e desprezado por essa mesma conferencia que ele havia fundado: ele estava ao lado dos pobres e dos oprimidos, com uma nova identidade que, sem dúvida, correspondia melhor às suas origens e às origens de sua mística do que os triunfos do Rio de Janeiro.
Com o regime militar começava um período de perseguição, de ameaças que o tornaram cada vez mais solidário aos pobres perseguidos e oprimidos. Ele reencontrou a sua verdadeira natureza. O despojamento das glórias do Rio de Janeiro marcou uma ascensão. Sua mística foi provavelmente muito mais despojada que antes.
Uma vez feita a descoberta da Igreja dos pobres, ele foi fiel até o fim. Ele reencontrou Deus nos pobres, sem perder o contato com todas as pessoas. O concilio lhe ofereceu o contexto adequado. Ele achava que de certa maneira toda a Igreja descobriria esse caminho, embora muitos ficassem assustados e retornassem à segurança tradicional.
Na América Latina surgiram diversos bispos proféticos como ele, cada qual a sua maneira, mas com uma profundidade e uma radicalidade semelhantes: Manuel Larrain no Chile, Leônidas Proaño no Equador, Samuel Ruiz no México foram as estrelas mais brilhantes entre dezenas de outros menos conhecidos, mas também radicalmente engajados. Estes foram os bispos de Medellín e de Puebla. Dom Helder foi de certa forma um líder secreto, discreto mas real, deste grupo. Tanto em Medellín como em Puebla, ele foi um símbolo visível da opção pelos pobres. Não somente um símbolo, mas o grande mestre da ação.
Na opção pelos pobres ele experimentou toda a sua sensibilidade, o seu afeto, o seu dom de comunicação. Ele se tornou mais simples ainda e se concentrou naquilo que havia de mais profundo. Doravante o amor de Deus era o amor aos pobres.
É verdade que ele se tornou o bispo dos pobres favorecido pela circunstancia que constituía a grande virada da Igreja no Concilio e em Medellín. Mas ele soube captar a hora exata dos sinais dos tempos e entrar inteiramente no trem da história. Fazendo história ele se fez a si mesmo. Ninguém se faz sozinho, sem o contexto que o envolve. Não apenas ele entrou nesse movimento, mas pela força de seu carisma, ele rapidamente tornou-se o líder de uma multidão dentro e fora da Igreja.
Ele logrou converter parte do episcopado e esteve na origem dos extraordinários primeiros 24 anos da CNBB presidida por Aloisio Lorscheider, Ivo Lorscheiter e Luciano Mendes de Almeida. Fato único na história: 24 anos de continuidade numa mesma linha que era exatamente a linha que dom Helder traçou a partir de Recife, quando ficou exilado longe do poder após o golpe militar.
4. Arcebispo de Recife e Olinda, dom Helder tornou-se uma figura mundial. Aqui também as circunstancias o ajudaram. Entre os anos 60 e 75, o assim chamado primeiro mundo foi sacudido por movimentos revolucionários e, sobretudo, interessou-se pelas revoluções no terceiro mundo. A América Latina estava na ordem do dia. O mundo ansiava pelas noticias da América. Dom Helder chegou justamente nesta hora em que era esperado alguém como ele. Hoje talvez não lhe prestariam a mesma atenção, pois o primeiro mundo perdeu todo interesse pelo resto do mundo, considerado apenas enquanto mercado consumidor. Portanto dom Helder surgiu no momento certo. Mas a genialidade consiste precisamente em saber entender os sinais dos tempos e aproveitar as circunstancias. Ele não calculou isso de antemão, mas tudo foi se sucedendo através de uma intuição espontânea.
Não podemos dizer que dom Helder escolheu ou procurou este papel; pelo contrário, nem era próprio do seu temperamento. Por natureza, ele era pacífico e não gostava de conflitos. Mas foi levado pelas circunstancias. Não forçado, mas percebeu os sinais de tal modo que se sentiu impelido a corresponder e agir.
Ele foi o profeta da resistência aos regimes militares, da defesa dos direitos humanos e dos direitos dos oprimidos. Por isso foi convidado em diversos países onde a palavra era livre e tornou-se um símbolo. Dizendo de outro modo, o seu jeito cearense de ser – os gestos, a afetividade, a vivacidade, a espontaneidade – essa mistura de mística e de realismo político fascinaram o público do primeiro mundo.
Ele foi denuncia à Roma como se podia prever e as denuncias foram mais acolhidas do que poderia se prever. Ele foi incompreendido em Roma e castigado sem piedade. O papa Paulo VI mesmo, que o estimava muito, disse-lhe um dia que ele poderia continuar sua atuação mas que o Papa não poderia apoiá-lo publicamente sempre. Suas viagens foram limitadas assim como as suas manifestações publicas.
Ele foi tratado como uma criança tutelada, como o faz a cúria romana – instrumento de infantilização da Igreja católica. Ele aceitou tudo. Foi reprimido pela cúria que o perseguiu de forma astuciosa como podem fazer os administradores. Ele suportou tudo com paciência. Como não era um homem de conflitos, ele se submeteu a todas as humilhações que lhe foram impostas. Ele não procurou se defender. Ele poderia ter recorrido ao papa Paulo VI. Mas não o fez e o Papa também não teve muita coragem e deixou-se levar pela cúria da qual ele era mais servidor do que guia.
Mesmo assim, com Paulo VI, dom Helder tinha um defensor. Após a sua morte, ele ficou indefeso, isolado e a cúria logrou aniquilá-lo a ponde de lhe dar um sucessor que todos bem conheceram. Era evidente que João Paulo II não o compreendeu. Ele precisou esforçar-se para compreendê-lo. Ele estava impressionado pela imensa consideração que dom Helder gozava na América Latina e no mundo todo. Mas ele não o compreendeu e escutou as criticas que vinham não apenas das classes dominantes do Brasil, mas também de certos colegas do episcopado que galgaram posições de poder na cúria romana.
Em Roma suas viagens foram limitadas, como se isso ameaçasse o poder ou a popularidade do Papa. Foi criticado sistematicamente. Na verdade, o próprio dom Helder não queria ter esse papel de líder mundial. Atribuía-se a ele a imagem de alguém muito conflitivo, embora ele buscasse sempre e somente a paz e pregasse a não violência. Ele vivia um conflito interior. O episódio do discurso em Paris, quando começou na prática o seu papel profético diante do regime militar é esclarecedor. Ele foi forçado pela sua missão profética. Ele foi forçado por Deus a se pronunciar. Ele mesmo não queria e teria fugido se pudesse, mas ele assumiu, ele precisava assumir essa imensa provação.
De fato ele sofreu muito mais do que outros, pois ele não era feito para o conflito. Em comparação com outros bispos da mesma envergadura, ele sofreu mais do que eles. Os outros estavam mais preparados para enfrentar hostilidades e perseguições. Ele não, ele era completamente desarmado. Mas ele aceitou, ele não recusou o papel que a historia lhe impunha. Ele experimentava que essa era a vontade de Deus. Sua mística se tornou mais dolorosa, passava pela cruz. Outros teria inventado diversos pretextos para se esquivarem. Ele se fez disponível, ele deixou-se conduzir até onde Deus o quis levar. Ele compreendeu e aceitou. E isso não foi sem muito sofrimento. Ele não lamentou e jamais demonstrou o seu imenso sofrimento.
4. Ele não sabia que o pior ainda estava por vir. Jamais ele pressentiu o que Deus lhe reservava para o final de sua vida. Foi de fato o desaparecimento completo de todo poder humano.
Seus últimos 14 anos de vida foram de noite escura - uma noite interminável. O que se passou então no coração de dom Helder? Outros poderiam sabê-lo melhor do que eu. O que ele expressou no decurso dessa longa, interminável noite? Quem pode recolher os menores sinais devia publicá-los, pois as gerações futuras devem conhecer isso.
É certo que ele se recolheu na fé de sua infância, ele se recolheu com toda intensidade de sua energia mística. Mergulhando na noite escura, ele se recolhe no silencio. Jamais disse a alguém o que ele sofreu. Nós o podemos imaginar a partir de tudo o que foi vivenciado desde então. Foi uma longa provação, uma lenta ascensão ao calvário.
Apesar de tudo, dom Helder jamais perdeu a esperança, esperou contra toda esperança e acreditava que a provação seria passageira. Como antes, como sempre, ele procurava os menores indícios de uma possível mudança. Pensou mesmo que dom Marcelo seria o seu sucessor. E como terá reagido ele quando, ao aproximar-se o final de sua vida, ele percebeu que isso não aconteceria, que a noite duraria até a sua morte, que o Pai o havia abandonado como a Jesus na cruz? Com a certeza de que o Amor é mais forte. Jamais ele quis atribuir-se qualquer importância. Ele quis ser simples, um poeta, puro amor e até o fim ele se saciou com isso. Ele se recolheu na simplicidade do começo. Ele jamais se lamentou. Na saída do túnel, ele esperou o fim, o reino de Deus na sua plenitude. Será que ele viu alguma luz no fim do túnel antes de morrer? Quem o sabe? Seria importante recolher os mínimos indícios de seus derradeiros sentimentos ao cruzar sua noite escura, quando ele já não havia mais nenhum sinal objetivo de esperança, quando a noite se fez definitiva.
Enfim, a vida de dom Helder foi uma aventura mística. Ele viveu o começo num ambiente de triunfo. Depois, pouco a pouco, em sofrimento crescente. Sua vida é parecida à vida de Jesus que também começou com triunfos para depois seguir o caminho da cruz, dia após dia mais consciente de qual seria o seu destino final nesta terra. Mas também com a certeza da ressurreição e da irrupção da plenitude do mundo novo tão sonhado, do qual ele foi o profeta desde o inicio.