Fazemos a vocês, leitores, um convite para nos acompanharem em alguns passos de nossa trajetória social, eclesial e teológica desde o nosso nascimento como Pequenas Comunidades Inseridas no Meio Popular (PCIs) até os tempos atuais.
Em 2014 festejamos 50 anos de vida. Para muitas e muitos de nós foi um grande prazer e motivo de alegria e gratidão olhar para nossa história, tentar compreendê-la de novo, e nos questionarmos sobre como continuar a construí-la.
Partilhamos isso nesse texto. Ele representa apenas um resumo do que revivemos. Por ser resumo, perde sabor... Mas fala de uma tentativa de opção pelo Caminho de Jesus, Caminho do Reino de Deus. Isso é o essencial.
Passos do Caminho
*A partir do ano de 1964 vive-se, no Brasil, num regime de ditadura militar – tempo de grande dominação e opressão, tempo de torturas, de roubo da liberdade e, em muitos casos, de roubo da própria vida das pessoas.
Irmãs e Irmãos de várias Congregações Religiosas, tendo contribuído até o momento nas atividades de suas instituições dedicadas a obras de educação, saúde hospitalar e assistência social, desejam participar de ações libertárias. Deixam o trabalho de suas Comunidades e vão construir, com muita coragem, Pequenas Comunidades em meios populares, ensaiando uma experiência de participação na vida concreta dos empobrecidos do país, vítimas não só das conseqüências do regime ditatorial, mas também do conservadorismo das sociedades e de grande parte da Igreja Católica Romana, mais hierárquica do que profética.
Vale lembrar com o padre José Comblin que, durante dez séculos (do século XI ao século XXI), vão acontecer paralelamente duas concepções de Igreja: por um lado, uma Igreja hierárquica, vertical, jurídica, autoritária, uniformizada em que a virtude máxima e fonte de todas as outras é a obediência à hierarquia – identificada à obediência a Deus; por outro lado, uma Igreja horizontal, Igreja do “povo de Deus”, evangélica, pluralista, comunitária, participativa, em que a virtude máxima é a obediência a Deus distinguida da obediência a autoridades humanas.
Inclinada a esta segunda opção, a Igreja Católica Romana é convocada, de 1962 a 1965, ao Concílio Vaticano II que abre portas e janelas ao Espírito Santo na esperança de reformas profundas...A Igreja é então redefinida como “povo”, e não como “hierarquia”. João XXIII fala de Igreja de todos, particularmente Igreja dos pobres.
Em 1968 o CELAM – reunião dos Bispos Latinoamericanos – realiza sua 1ª Assembléia e dela os bispos saem com um compromisso explícito de apoio aos empobrecidos do Continente, cuja pobreza, provocadora, é tida como das maiores existentes até então.
A partir da experiência do Concílio, a Igreja Católica Romana, no Brasil, torna-se o espaço que favorece tanto os diversos movimentos leigos, eclesiais e políticos quanto a luta pela terra e uma nova sensibilidade por uma sociedade mais justa.
Nessa Igreja, as Pequenas Comunidades que vão nascendo no Nordeste – CRB- Regional Recife, buscam diálogo e participam de movimentos oriundos, alguns, dessa abertura.
*Em 1979, ainda em pleno período de ditadura militar, o CELAM realiza em Puebla, no México, sua segunda Assembléia. Os bispos comprometem-se com a caminhada das CEBs:“Um novo jeito de ser Igreja”, e desenvolvem reflexão sobre a teologia da libertação. De um lado, tomam posição pelas vítimas do sistema ditatorial que é violento e não respeita os direitos do povo; de outro lado, porém, suportam a ditadura de maneira velada e prudente.
As Pequenas Comunidades começam nessa década a se articular nas sub-regiões do Nordeste: João Pessoa, Garanhuns, Mossoró, Natal, Maceió, Recife. Os Padres René Guerre,SJ, Humberto Plummen,CSSR, Frei Walfrido Mohn,ofm, Irmã Maria Dorotéia Diederichs,ISM, e, um pouco mais tarde, Ir.Ivone Gebara,CSA, Ir.Maria Valéria Rezende, CSA e Frei Clodovis Boff,OSM prestam-lhes assessoria com dedicação, competência e companheirismo. Nas PCIs dão-se o aprendizado sistemático de uma análise de conjuntura, um alargamento da consciência política em relação às causas da opressão e da miséria, e o aprofundamento do compromisso com os pobres com uma nova visão, uma nova prática e uma nova mística.
*Nos anos de 1980 assistimos à queda da ditadura militar, à realização das “Diretas, já!” e à elaboração de uma nova Constituição.
As lutas sociais saem da proteção da Igreja. Cria-se o Partido dos Trabalhadores. Organizam-se grupos de Mulheres.
O neoliberalismo, já ativo, toma conta do campo econômico – político – social.
A igreja também decepciona seus fiéis: dentre algumas medidas repressivas, condena teólogos e uma teóloga da libertação.
As Pequenas Comunidades do Nordeste reforçam seu processo educativo, dando início a uma série de “Encontrões” que, preparados durante todo o ano, reúnem irmãs e irmãos de todas as sub-regiões. Seus temas referem-se à caminhada das PCIs; ao nordestino do campo e da cidade; à religião do povo; ao compromisso político; à questão feminista; à mística do Movimento... Ir para um Encontrão significa ir para a partilha de uma busca séria a nível da inserção, e para uma festa bonita e fraterna.
*Os anos da década de 1990 registram a queda do socialismo soviético e, com ela, a queda da esperança de outros socialismos. Nossos governos aderem ao neoliberalismo e a uma política que provoca a exclusão de grande parte da população de um trabalho e de uma vida digna. Crescem a violência e a insegurança social. Multiplicam-se os grupos espiritualistas. A teologia da libertação e as teologias tradicionais entram em crise diante da revolução do pensamento humano que produz novos critérios para interpretar a realidade.
Por outro lado, cresce o peso político de forças populares da sociedade civil como o PT, o MST, o movimento pela moradia, o movimento ecológico, o movimento antimundialista, e acontece o “Forum Social de Porto Alegre: Um outro mundo é possível!”
As Mulheres, os negros, os indígenas, as crianças, os homossexuais, os portadores de deficiência, os portadores do vírus HIV surgem como novos protagonistas sociais.
Em 1992 realiza-se a Terceira Conferência do CELAM, desta vez no Caribe, em Sto. Domingo. A maioria dos Bispos estando alheia aos novos referenciais científicos, teológicos e culturais, fica clara sua forte tendência à volta à “grande disciplina”...
As Congregações, por sua vez, reforçam suas estruturas e transferem forças vivas das Pequenas Comunidades Inseridas para seus quadros.
Quanto às Pequenas Comunidades, reforçam sua visão cosmológica e teológica. Deus é para elas fonte de vida e não mantenedor da ordem e castigador; aproximam-se da teologia feminista e do ecofeminismo; despertam para uma mística integradora de toda a pessoa humana e dos grupos sociais.
*No entanto, não imunes à crise, as Pequenas Comunidades, na chegada dos anos 2000 perdem o sentido de sua integração e a certeza da força do conjunto diante das respostas a dar aos desafios da realidade sócio-econômico-político-eclesiástica que se apresenta em toda sua complexidade: globalização progressiva, envolvendo toda a vida do povo; neoliberalismo que influi no dia a dia; atentado de 11 de setembro: nova face do terrorismo; crescimento da influência do imperialismo dos Estados Unidos; manipulação por parte da mídia, do poder político vigente, do pentecostalismo; fundamentalismos em confronto; volta à fidelidade católica canônica... Ampliam-se a consciência do que deva ser, nesse contexto, a inserção das PCIs, e a necessidade de se atualizar sua identidade coletiva. Percebe-se, ao mesmo tempo, a existência deste grande desafio: na sociedade, o movimento é de mudança; na Igreja, o movimento é de retração.
Os anos 2000 têm sido de busca de caminhos que renovem e concretizem para hoje o objetivo que sempre animou o Movimento das PCIs. Seminários têm contado com a colaboração de educadoras feministas como Ivone Gebara, Sílvia Camurça e Carmen Silva, de Frei Tito, OC, do Professor Alder Julio, do sociólogo José Afonso Chaves, do professor Almir Básio, de Irmãs e Irmãos da equipe de articulação do Movimento. Tem-se buscado, com um olhar crítico, os perfis dos novos pobres e protagonistas sociais - homens e mulheres, uma visão atualizada do Nordeste, chão da inserção das Comunidades, e um aprofundamento da mística do Movimento baseada em raízes mais profundas e na percepção em torno desta realidade atual – em sua maioria conflitiva, despolitizada ou mal politizada e, muitas vezes, pouco ética – assim como das práticas religiosas e sociais de nosso tempo.
Quanto à Igreja dos dias de hoje, o CEBI Nacional expressa-se desta maneira: “Atualmente vivemos em uma sociedade altamente globalizada e, ao mesmo tempo, individualizada. As igrejas em geral têm reforçado essa realidade ao priorizarem uma “cultura religiosa”, fruto da criação de muitas gerações, e ao distanciarem-se, assim, dos problemas sociais, preocupando-se em manter as pessoas dentro do templo sem fazer a discussão sobre justiça social e igualdade de direitos. Em muitos casos prestam um desserviço ao pregar sobre modelo de família para combater o avanço da aceitação das relações homoafetivas. Ao mesmo tempo, reforçam o papel de submissão da mulher e ignoram problemas sociais como o da violação de direitos dos povos originários e o da violência contra jovens, especialmente negros. Reforçam dessa forma um fundamentalismo que precisa ser combatido”.
As Pequenas Comunidades têm procurado entender toda essa realidade e para além dela. Têm também procurado entender as mudanças que têm ocorrido no Brasil, especialmente a nível social e educativo, nas cidades e no campo, bem como as políticas públicas que as sustentam.
Como grupo, animadas e animados por um projeto da CRB Nacional, participam da Rede “Um grito pela vida”, desejosas de se somarem aos esforços pelo combate ao tráfico de seres humanos.
Irmãos e Irmãs dedicam-se também a acompanhar portadores do vírus HIV e homoafetivos; à animação de relações humanas, evangélicas, educativas com os empobrecidos do bairro de periferia onde moram; ao aprofundamento da formação das CEBs, mantendo, em Caruaru, o “Santuário das Comunidades”; à participação nas lutas dos trabalhadores e trabalhadoras da terra, ligadas à CPT – Comissão de Pastoral da Terra; ao trabalho educativo em escolas populares de periferia e aos trabalhos de saúde em hospitais da rede pública; atuam, também, num Conselho Municipal de Saúde e no Conselho da Criança e do Adolescente; participam do “Projeto Thalita – Associação Esperança e Vida”.
Cresce, no conjunto, a sensibilidade pela situação da Mulher na sociedade (conquistas e violências) e na Igreja, onde ainda, em grande parte, são “mão de obra” e raramente ocupam espaços de decisão.
É preciso dizer que, em sua ação, as Irmãs e Irmãos inspiram-se na sabedoria da pedagogia de Paulo Freire.
Nosso horizonte
As Pequenas Comunidades não têm necessariamente a paróquia como horizonte. Elas assumem a busca da construção do Reino de Deus, que, citando novamente o Padre Comblin, é uma renovação de toda a humanidade , realização de toda a história humana. O Reino de Deus busca o crescimento da vida e, por isso, tem meta política.
O reino de Deus não é, pois, “religioso”. Não prioriza a “religião”. Quando falamos em Reino de Deus não estamos falando em um sistema religioso de doutrinas, de crenças, de cultos, de leis, de preceitos morais e éticos, de instituições... Estamos falando em “Caminho de Jesus”. Caminho que precisamos conhecer para sermos capazes de expressar o que Jesus veio trazer ao mundo. A religião virá depois, de acordo com a cultura de cada povo – e ligada ao “Caminho” pelo amor de justiça e de misericórdia.
Jesus vai para a Galiléia, lembra o Padre Comblim. A opção por esse local já é boa nova, evangelho. Jesus nem precisa falar muito. A escolha do povo da Galiléia para sua presença e atuação já fala por si mesma. A boa nova é sobretudo para os pobres, humilhados, rejeitados, excluídos. Pessoas sem poder reconhecido e respeitado. Por suas palavras e atos Jesus desperta neles e nelas a esperança. A mensagem de esperança consiste em levantar o ânimo, a auto - estima... e em buscar, com as pessoas que necessitam, caminhos concretos que as ajudem a sustentar uma vida digna.
Essa é a referência absoluta. É preciso “ir para a Galiléia”.
As pessoas que não se tornam irmãs dos pobres não terão parte na esperança. E talvez não tenham fé. Pensam que a fé é acreditar nas doutrinas, nos dogmas, freqüentar os cultos, obedecer as leis e preceitos, contemplar milagres... Ter fé, porém, é acreditar no Reino de Deus neste mundo, no Caminho de Jesus, e tornar-se, como ele, sinal para os desesperançados.
Em 2013, por ocasião do último seminário deste grupo do Nordeste antes da comemoração dos 50 anos de sua existência enquanto PCIs, voltamos a nos interrogar sobre o “Caminho”. Neste momento, são os discípulos de Emaús que nos provocam, eles que já tinham vivido a experiência do Caminho de Jesus mas que, depois de sua morte, e desiludidos por ela, “caminham para trás”!... Tristes, desesperançados e medrosos, voltam para sua casa... Caminham conversando, refazendo sua história no contexto maior da história de seu povo. Sua caminhada não é só de seus pés... mas de tudo o que sua pessoa, seus sentimentos, a necessidade da compreensão dos fatos exigem. Tudo neles caminha! Estão em busca. No caminho e em casa sentem fortemente a presença viva de Jesus e a nova força de sua fé, e refazem a consciência do sentido do que havia acontecido. Tomam, então, de novo, o Caminho, e agora o fazem prontamente, na liberdade e muito alegres, dispostos a lutar contra o medo, os preconceitos, as incompreensões, os erros, e a acolher o diferente com o coração ardendo... Manifestam sua fé e sua esperança. É no amor que abraçam o Caminho, sua perspectiva de vida, sua missão política e profética - libertadora.
O desafio da fé exige, portanto, que se dê passos para conhecer o Caminho, que se entre nele com coragem, que se ande agarrando o diferente e o novo que levam para a frente! Que se desperte em si o amor, para que se possa acolher o outro, a outra, na verdade, na liberdade, na igualdade. Que se aprenda a ouvir em profundidade e a partilhar, abrindo o coração e as mãos. Que se integre o sofrimento, a morte e sua superação, na busca da libertação. Que se desperte também em si a consciência crítica diante das realidades social, econômica, política, cultural e religiosa e que se busque sempre o sentido do que acontece, o sentido da vida e a confiança nela. Que se esteja sempre ligada e ligado à esperança do que está por vir, por ser construído.
A fé, a partir dessa busca, é o chão de nossa mística e se confunde com ela sempre, e no meio do povo que escolhemos como companheiro em nossa missão.
Os pobres, prioridade em evidência na Igreja Católica Romana e no Brasil de hoje
É preciso ir para a Galiléia! afirma o Padre Comblin. E o Papa Francisco, em sua exortação apostólica “A alegria do Evangelho” escreve: “Deriva de nossa fé em Cristo que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados, e da própria obra libertadora da graça em cada um e em cada uma de nós, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade”. Da parte do Brasil, nossa Presidenta Dilma Roussef orienta-se, em seu primeiro mandato, por este lema: “País rico é país sem pobreza!”
Em uma audiência com os participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em outubro de 2014, na cidade de Roma, o Papa Francisco faz estas constatações e interpelações: “Este encontro dos movimentos populares é um sinal, um grande sinal: vocês vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos uma realidade que frequentemente passa em silêncio: os pobres não sofrem, somente, a injustiça, mas lutam, também, contra ela. (...) Vocês percebem que os pobres não esperarão mais e exigem serem protagonistas; eles se organizam, estudam, trabalham, reclamam e, sobretudo, praticam a solidariedade que existe entre muitos dos que sofrem e de que nossa civilização parece ter-se esquecido, ou ao menos, parece querer se esquecer.(...) Vocês sentem o bairro, o povo, a luta! Nós queremos que sua voz, que geralmente é pouco ouvida, seja ouvida! Ela talvez incomode, proponha mudanças que poderão causar medo às sociedades! Mas, sem sua presença real nas periferias, as boas propostas e os bons planos dos quais ouvimos falar nas conferências internacionais ficarão no domínio das idéias”.
A solidariedade, diz o Papa no documento “A Alegria do Evangelho”, é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada (...) Deve ser vivida como decisão de devolver ao pobre o que lhe pertence. Lembra também, citando o Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, que a paz se funda não só no respeito aos direitos da pessoa, mas também no respeito ao direito dos povos.
Que saibamos valorizar com sabedoria este momento tão especial do governo da Igreja Católica Romana Universal e do governo de nossa Pátria, que também tem privilegiado os pobres, homens e mulheres, jovens e crianças de todas as raças e credos; momento este que também é de revisão de nossa fidelidade ousada na busca da construção da igualdade de direitos na diversidade tão grande, a todos os níveis, das realidades das pessoas e dos povos.
Consultas
Linha do Tempo do processo histórico das PCIs preparada no acompanhamento dos passos do Movimento por um grupo de participantes.
Pe. José Comblin – O Povo de Deus, Paulus, 2002
O Caminho – Ensaio sobre o seguimento de Jesus, Paulus, 2004
Artigo sobre Distinção entre Religião e Evangelho, site Teologia Nordeste
Cecília Sodero Pousa –Preparação de assessoria sobre “Dois possíveis jeitos de ser Igreja”
Referência: Pe. Comblin, O Caminho - Ensaio sobre o seguimento de Jesus
CEBI – Por trás da Palavra, Jan.- Fev. 2015, “Eu vim para servir”
Papa Francisco – A alegria do Evangelho, Paulinas, 2013
Comité Catholique contre la faim et pour le développement – terre solidaire – Le Pape François
s´adresse aux mouvements populaires , Rome, le 28 octobre 2014