1. Quando o jovem bispo de Araçuaí viajou a Roma em 1959 para se encontrar com o papa João XXIII, atrapalhou-se com o ferraiolo (roupão cerimonial de um bispo) e o papa gentilmente ajeitou-lhe o apetrecho. Isso deve ter impressionado Dom José, pois 46 anos mais tarde, em 2005, ele contou esse episódio numa conferência em Recife[1]. Criado em um rígido casulo clerical, ele deve ter estranhado a ‘quebra do protocolo’ do papa. O seminário em que se formara era dirigido por padres lazaristas, convidados pelo bispo de Diamantina, Dom João Antônio dos Santos, no final do século XIX. Com esse convite, o bispo demonstrara sua adesão a um movimento proveniente de Mariana, onde o lazarista Dom Viçoso tinha aplicado com vigor, ao longo de 34 anos (entre 1844 e 1876), um modelo de formação sacerdotal diferente da tradição anterior e que cultivava o ‘amor à batina’, a disciplina e principalmente a seriedade nos estudos. Era a primeira romanização da igreja católica no Brasil. Os lazaristas difundiram um estilo de ‘ser padre’ que se destacava por meio de pequenos, mas significativos detalhes, como o cuidado com a boa pronúncia e articulação das palavras, a clareza na exposição do pensamento, a escrita aprimorada, a pontualidade nos horários, o rigor no comportamento e o hábito da leitura, como pude pessoalmente observar em Dom Helder, um dos mais destacados ex-alunos dos lazaristas (que soube ‘abrasileirar’ esse estilo, de cunho marcadamente francês). Quanto a Dom José, sempre me chamou atenção sua cuidadosa articulação das palavras e a clareza com que expõe seu pensamento, qualidades que dele fizeram um apreciado orador. Por esses e outros detalhes se verifica como foi grande a influência dos lazaristas na formação do clero brasileiro entre 1850 e 1960. O historiador americano Serbin escreve que ‘de meados do século XIX a meados do século XX, os lazaristas prepararam mais de mil padres seculares brasileiros. Até o ano 2000 tinham formado 158 bispos do Brasil moderno’[2].Foi paradoxalmente por meio da ingerência de Roma na sua vida que Dom José recebeu o primeiro impulso para se libertar das idéias romanas recebidas no seminário. Com apenas 38 anos (em 1957), foi apontado como candidato a bispo por Armando Lombardi, núncio apostólico no Brasil entre 1954 e 1964. Naqueles tempos, o núncio tinha ampla liberdade para indicar bispos, pois a cúria romana não conhecia bem a América latina e não costumava interferir em nomeações episcopais. Monsenhor Armando Lombardi soube aproveitar dessa oportunidade e, num lapso relativamente curto de dez anos, indicou nada menos de 109 bispos, na maioria pessoas de espírito aberto e progressista, que geralmente não simpatizavam com o ideal de uma igreja romanizada. Aliás, ainda falta ser colocada em plena luz a influência de Lombardi sobre os rumos da igreja católica no Brasil entre 1950 e 1990, aépoca dos ‘grandes bispos’.
Um segundo impulso romano veio, é claro, do concílio Vaticano II. Três anos depois de ordenado bispo, com a idade de 42 anos, Dom José participou das quatro sessões do concílio, mais para aprender que para falar. Beozzo, que estudou a fundo o concílio, apenas menciona uma fala dele (em latim) no plenário[3] e nas circulares conciliares de Dom Helder seu nome só é mencionado de passagem, a respeito de um assunto que pouco tem a ver com o concílio[4]. O nome de Dom José não aparece tampouco entre os participantes do ‘grupo da pobreza’ que desembocou, no final do concílio, no famoso ‘pacto das catacumbas’[5]. Numa conferência pronunciada por ele em 2005 encontrei uma análise de sua parte que caracteriza bem seu modo de entender o concílio Vaticano II[6]. É uma análise de determinados temas intra-eclesiásticos tratados pelo concílio, referentes à liturgia atualizada, à missa em língua vernácula, ao abandono das pompas clericais. O espírito prático de Dom José enxerga em primeiro lugar as reformas internas. O tom dessa sua análise não é tão resolutamente mundano (no sentido de voltado para os problemas do mundo) como os posicionamentos de Dom Helder.
Como arcebispo, Dom José sucede a Dom Mário de Villas Boas (arcebispo 1959-1965), um eclesiástico tradicional em sintonia com um clero igualmente tradicionalista em sua maioria. Sabendo disso, o novo arcebispo faz seus primeiros passos com circunspeção. Pois ele tem plena consciência de que ele mesmo necessita de tempo para assimilar as orientações do Vaticano II, principalmente do pacto das catacumbas. Ele sabe que doravante é representante oficial de um sistema sólido, construído por séculos e que não se abala facilmente e que, portanto, ele não pode brincar em serviço. Pressentindo oposição por parte de uma parcela do clero, dos poderosos usineiros da várzea paraibana e da própria instituição católica, Dom José avança devagar, ‘mineiramente’. O ex-ministro Bresser Pereira, que conheceu na época seu trabalho na Paraíba, o chama de ‘herói prudente’.
3. A partir de 1971 vai diminuindo aos poucos a projeção de Dom Helder no Brasil[10] e vem surgindo uma nova geração de bispos a sustentar o compromisso dos pioneiros do Vaticano II, de Medellín e principalmente do pacto das catacumbas. Surgem lideranças como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Tomás Balduino, Dom Pedro Casaldáliga e outros. Entre elas está Dom José Maria Pires, que toma iniciativas sempre mais ousadas, como a criação do primeiro centro de defesa dos direitos humanos do Brasil em João Pessoa, uma iniciativa que projeta o arcebispo da Paraíba a um nível latino-americano. Ele se torna responsável pelo setor social do Conselho episcopal latino-americano (CELAM). Em 1981, ele publica pela editora Vozes um livro com título significativo: ‘Do centro para a margem’. Um título que demonstra como Dom José sempre mais rompe o casulo eclesiástico e vê na sua função hierárquica um trampolim que possibilita o mergulho em questões relativas à vida na sociedade como um todo. No dizer de José Comblin, é esse tipo de bispo que o terceiro milênio vem solicitar: ‘Doravante, o lugar do bispo é o mundo. Ele encarna a presença da igreja no meio do mundo. É homem de relações públicas, é a visibilidade da igreja’[11]. Um sinal disso é a ‘missa dos quilombos’ (1981) que ele celebra em Recife com Dom Pedro Casaldáliga na frente da igreja do Carmo, onde a cabeça de Zumbi fora exposta séculos atrás. É, como todos observam na época, uma missa de dimensões antes societárias que eclesiásticas. Os sons dos tambores sinalizam um compromisso societário com o segmento negro da população. E a partir desse momento Dom Pedro Casaldáliga chama o bispo da Paraíba de ‘Dom Zumbi’, uma palavra bem mais carregada de simbolismo que o ‘Dom Pelé’ que lhe foi atribuído por Dom Helder em 1966 por ocasião da posse em João Pessoa. A partir de 1981, Dom José não é mais ‘moreno’, ele é ‘negro’, ou seja, assume a carga simbólica que o termo negro tem dentro da sociedade brasileira. Nos anos seguidos, ele celebra repetidamente missas negras, nas quais troca a mitra romana pela toca africana. Nos últimos anos de seu episcopado, ele alarga o leque de movimentos societários que resolve apoiar: indígenas, mulheres, presos, padres casados, mas principalmente negros.
