Eduardo Hoornaert
Uma coisa bem diferente consiste em querer saber o que Jesus mesmo tem a dizer sobre si mesmo. Só dando a palavra ao próprio Jesus, respeitamos devidamente a memória de uma pessoa falecida dois mil anos atrás. Só escutando o que o próprio Jesus nos tem a dizer, conseguiremos saber algo a seu respeito. Embora só consigamos nos apoiar em textos escritos a seu respeito por terceiros, há como colher, em diversos tópicos dos evangelhos, declarações feitas por Jesus mesmo sobre si mesmo. Desde alguns decênios, há um esforço, por parte de especialistas em estudos neo-testamentários, em distinguir entre declarações ‘autênticas’ de Jesus e declarações ‘redacionais’, ou seja, palavras ou ações atribuídas a Jesus, mas cuja autenticidade é questionada. Os resultados desse trabalho seletivo não são definitivos, mas mesmo assim oferecem pistas por onde é possível continuar estudando. É nesse sentido que se situa este breve texto, que apresenta de modo bem resumido algum resultado de muitas pesquisas, que consegui colher lendo o recente livro alemão ‘Jesus Handbuch’, compilado por Jens Schröter & Christine Jacobi, e editado por Mohr Siebeck de Tübingen em setembro de 2017.
Efetivamente, nos últimos anos a figura de Jesus tem sido estudada intensivamente com a ajuda de ciências como a história, a sociologia, a análise linguística e a arqueologia. Hoje estamos em condições de penetrar mais no modo em que Jesus entendeu a si mesmo e a sua missão que algumas décadas atrás. Todos os estudos dos últimos anos apontam para um Jesus judeu, que pensa em categorias judaicas, próprias de seu tempo e do ambiente em que vive. Sua cosmovisão difere muito da nossa. Basta dizer que seu mundo é habitado por sopros, santos ou impuros, por anjos e demônios, forças positivas e negativas que influenciam poderosamente a vida humana. Portanto, uma ‘análise da realidade’ modo bem diferente da nossa, mas não desprovida de uma lógica convincente.
1. Ele acredita que Deus detém o poder no céu, enquanto seu adversário Satanás manda na terra e no inferno. É dentro da resolução, tomada por Deus, no sentido de alargar seu Reino na terra, que Jesus entende sua ação, seus milagres e suas expulsões de demônios. Jesus acredita agir em nome de Deus e assim encara sua ação, que é inevitavelmente de caráter pontual e passageira. Ela é sinal da resolução, por parte de Deus, de estender seu domínio sobre a terra. Jesus entende que sua ação é obra de Deus, ou seja, que ele age em nome e no poder de Deus. Não se trata de uma ação propriamente humana, mas de uma ação de Deus (Jesus fala em ‘graça de Deus’).
2. Acreditando ser o enviado de Deus, Jesus entende que suas ações, em última análise, são ações de Deus. Quem pensa que ele pratica milagres, expulsa demônios e afasta ‘sopros malvados’ pelo poder de Satanás, e desse modo se escandaliza com Jesus, está mal-intencionado, pois a cura de doentes, por exemplo, não pode ser obra de Satanás, já que obedece à lógica do Reino de Deus, que combate a doença e outros males.
3. Jesus acredita que, quanto mais se alarga o círculo onde se praticam curas e exorcismos (expulsões de demônios), mais se alarga o Reino de Deus. Os setenta discípulos são enviados para circular pelas aldeias, curando e expulsando demônios. A ideia não é de fundar uma instituição religiosa, mas de difundir o Reino de Deus pela luta contra o que prejudica as pessoas, como a doença, a marginalização, etc.
4. Um engano comum consiste em pensar que aderir a Jesus significa aderir a alguma religião, sem agir em consequência do que ouviu da boca de Jesus. ‘O homem que ouve minhas palavras se parece com quem, querendo construir sua casa, cava fundo e assenta a casa na pedra. Vem a tempestade, lançam-se as águas contra a casa, mas ela não se abala. Quem ouve, mas não faz nada, se compara com um homem que constrói uma casa sem fundamentos. A água se joga contra a casa, ela desaba. Sua ruína é total (Lc 6, 47-49). Não basta dizer: ‘felizes os pobres’, há de se fazer algo para que os pobres sejam felizes.
5. Embora acompanhado de numerosos discípulos (setenta), Jesus faz questão de escolher um círculo mais íntimo de doze, ‘escolhidos para ficarem perto dele, serem enviados em seu nome e terem autoridade para caçar demônios. Assim ele fundou os doze’ (Mc 3, 14-16). Esses apóstolos são comparáveis aos doze patriarcas de Israel. São os patriarcas de um novo Israel, colaboradores na construção do Reino de Deus.
7. Como Jesus trabalha psicologicamente essa convicção de ser o enviado de Deus para estabelecer seu Reino na terra? Um texto forte de Lucas descreve isso. A ideia deixa Jesus inquieto, impaciente e ao mesmo tempo resoluto: Vim botar fogo na terra e não vejo a hora dele pegar. Devo me meter num batismo e me atormento, pois não vejo nada mudar. Vocês pensam que vim trazer a paz sobre a terra? Mas não: eu trago a divisão (desunião). Doravante, cinco pessoas moram numa casa, e elas estarão divididas. Serão três contra dois e dois contra três. Pai contra filho, filho contra pai. Mãe contra filha, filha contra mãe. Sogra contra nora, nora contra sogra (Lc 12, 49-53). O profeta Elias teve uma emoção parecida: Sou tomado por uma paixão furiosa por Ihwh (1Rs 19, 10). E no Salmo 39 se lê:Meu coração arde em mim, dentro de mim se acende um fogo (Sl 39, 4).
8. Não é por menos. Com Jesus, o reino de Satanás sobre a terra está abalado. Demônios são expulsos, melhor, convertidos em anjos. Desvanecem, na mente de Jesus, os espíritos maus que milenarmente rondam o mundo, os demônios das sete profundezas subterrâneas, os dragões, as serpentes, os monstros, as maldições, as perturbações assombrosas, as máscaras de cifres ameaçadores, os carrascos, os tiranos do mal, os ‘divisores’ (diabolos), as turvações, as perturbações, as dissoluções, as tiranias, a cauda que varre o mundo, os morcegos que chupam a vida, as unhas que arranham todo sinal de vida, as presas enormes, o sol negro, as trevas de Lucifer (o anjo carregado de levar a luz vira o príncipe das trevas), o adversário, os maus pensamentos, a desordem na consciência humana, a enganação, o demônio infiltrado na história. Aparecem os anjos, mensageiros de Deus, guardiões da vida, condutores de astros e homens, protetores de plantas e de filhos de Deus. Entram Michael, Gabriel, Rafael, os protetores da vida. Jesus visualiza, com Isaías, os serafins em torno do trono de Deus. Ele enxerga os anjos da guarda a proteger as pessoas, fazer a festa, fundamentar a alegria e divulgar. Algo inteiramente novo acontece.
9. Essa convicção enche a alma de Jesus de uma inconfundível alegria. Imagens terríveis, que atormentam a humanidade desde sempre, desvanecem, enquanto aparecem imagens de luz e festa. Por onde Jesus anda se espalha um clima de festa. Em sua presença ninguém jejua. ‘Numa festa de casamento, será que os acompanhantes de honra do noivo jejuam? Enquanto ele está com eles, não jejuam. O dia virá em que o noivo lhes será tirado. Então jejuarão. Ninguém conserta roupa velha com emenda nova: o pedaço novo puxará o velho, novo sobre velho, e o rasgão será pior. Ninguém mete vinho novo em odres velhos. O vinho arrebenta os odres e tudo fica perdido. Vinho novo, odres novos’(Mc 2, 18-22). O vinho novo da alegria, do convívio alegre: ‘um homem oferece um grande festim’ (Lc 14, 16). ‘Façam a festa, pois meu filho estava morto e vive de novo, estava perdido e foi encontrado’ (Lc 15, 24). Jesus convida as pessoas a comer e beber com ele, inclusive ‘pecadores e cobradores de impostos’. A Carta aos Hebreus, dos anos 65, traduz essa alegria contagiante: (Vocês não têm de que se queixar, pois) é do monte de Sião, da cidade de Deus vivo, de Jerusalém celeste e da miríade de anjos em festa que vocês se aproximam (Hb 12, 22).
10. Como Jesus se apresenta? Enviado de Deus, revestido do poder de Deus, mais que profeta, ele sofre o destino dos profetas. Mais que anunciador do Reino de Deus, ele o realiza ao derrotar o Reino de Satanás e demonstrar poder sobre os demônios. Mais que idealizador do novo Israel, ele é seu iniciador, embora de modo apenas tópico. Está empenhado em alargar o Reino de Deus na terra e de fundar um novo Israel. Para tanto, envia seus discípulos pelas aldeias da Galileia. Seu ‘vinho’ é novo, exige ‘odres novos’. Jesus não se apresenta como fundador de uma nova religião, nem mesmo como ‘mestre em Israel’, antes como iniciador e animador de atividades e comportamentos, na humildade.