Alzirinha Souza1
Falar do teólogo belga-brasileiro José Comblin (1923 - 2011), para mim é sempre um grande prazer. Não somente por ser ele o autor principal de minha tese doutoral; a primeira em nível doutorado realizado sobre seu pensamento na UCL Louvain, o que por si só seria suficiente, como também por um dos fatores que mais me encantam em Comblin que é a atualidade de seu pensamento e seu senso de percepção da realidade.
Talvez as gerações mais novas que estão na vida religiosa não o conheçam ainda, o teólogo José Comblin chegou ao Brasil em 1957 como padre Fidei Donum, esperando participar de uma Igreja viva que nascia na América Latina. Efetivamente se engajou no contexto latino americano de tal forma que jamais desejou voltar para sua terra natal, a Bélgica, a não ser para visitar sua família, oriunda de Bruxelas e participantes ativos da Paróquia da Santíssima Trindade, no bairro de Ixelles onde cresceu.
Inseriu-se na realidade brasileira inicialmente acadêmica, exercendo a docência em Bíblia em São Paulo, Campinas e no Chile. Depois de chegar a Recife em 1965 para compor a equipe de D. Helder Câmara, soma-se a docência dedicada nestes anos à fundação do ITER (Instituto de Teologia do Recife), a experiência pastoral que iniciara como assessor de um grupo de operários em Campinas, dedicando-se as comunidades de Base, à formação dos leigos e leigos missionários no Nordeste Brasileiro. Entre tantas características, uma marcantes era a facilidade que tinha em traduzir elementos complexos da teologia para um público muito simples e fazendo ao mesmo tempo reflexão a partir de suas realidades. Se tomarmos o método V-J-A, diria que Comblin era especialista em Ver as situações do mundo, perscrutando a realidade com olhar crítico buscando ver mais a frente.
Por isso escrevia com propriedade, o que vivia e, vivia as alegrias e as tristezas do povo pobre do agreste brasileiro, que vem a ser ao final dos anos, o rosto do destinatário de sua reflexão. Sua obra é densa e ampla. Sua reflexão aguçada em examinar e conhecer com detalhes as realidades as quais se referia o levava não poucas vezes a antecipar as transformações do futuro.
Para alguns Comblin poderia ser um eterno insatisfeito e eventualmente duro em suas posições, o que era agravado por sua postura tímida, assertiva própria de um legítimo belga: crítica e por vezes irônica. E ainda bem que assim o foi. A liberdade que possuía de ser um padre incardinado na Arquidiocese de Mallines-Bruxelas de onde nunca se desligou lhe permitia falar livremente sobre temas que aos demais a condição política e eclesial dos anos sessenta a oitenta, não lhes era possível. Exercitava sua profecia proferindo a palavra Parriasta, verdadeira, nos momentos em que lhe era necessário pronunciá-la.
Como afirmam seus companheiros de caminho e de teologia, sua postura profética, que o levava a denunciar as incoerências eclesiais, sem jamais pensar em deixar a Igreja. Antes, o fazia porque a amava e como tal, queria vê-la refletindo atitudes concretas de discípulos e discípulas de Jesus. Criticava os sistemas políticos e econômicos de nosso tempo, porque estes, algumas vezes associados, a seu ver, a própria Igreja contradiziam o mais profundo do Evangelho ao arrastar a pobreza e tirar a dignidade humana de um grande número de pessoas. Em coerência com sua fé e com sua compreensão de teologia como serviço, dedicou sua vida a formação dos pobres, especialmente os leigos, como caminho e processo de libertação a partir do Evangelho de Jesus.
Por essa razão aliada à consistência de sua teologia, sua opinião era freqüentemente solicitada, razão pela qual o conjunto de sua obra se caracteriza também por sua densidade e amplidão. Nesse texto especificamente foi-nos solicitado um estudo sobre o pensamento de Comblin sobre a vida religiosa. Respeitando a linha editorial da Revista, tomei por metodologia apresentar alguns elementos chaves de Comblin para o tema, a partir de artigos anteriores que ele mesmo publicara nesta, concernente ao período de 1992 a 2007, que tocam diretamente ao tema2. Contamos que estes seis artigos escolhidos revelam os pontos centrais constituintes e inquietações de Comblin sobre a vida religiosa, aos quais procuro incluir alguns pontos a partir de minha experiência de docente no Itesp/SP que me permite conviver com alunos em sua maioria religiosos (as).
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A missão como fundamento da vida Religiosa
Não há dúvidas de que para Comblin todo cristão e, por conseguinte todo religioso (a) é essencialmente um missionário (a). Contudo a relação missão e vida religiosa se apresentam como um problema, quando as últimas deixam de ser missionárias e foram encobertas pelos mecanismos de notadamente após o Concílio de Trento. Recuperando a história da missão no desenvolvimento da evangelização, constatamos que essa nasce eminentemente missionária. Paulo, missionário por excelência evoca como fonte de legitimidade de sua missão a sua escolha por Jesus Cristo, diretamente. Atuando independentemente de Pedro, realiza a verdadeira missão do cristão centrada no anúncio da boa nova de Jesus, assumindo todos os riscos e despojamento necessários aquele que se dispõe a ser servidor de sua palavra.
Em conseqüência a fundação de um “império cristão” dado por Constantino, houve uma decadência da Igreja tradicional. Em reação a esse momento, nasce o movimento monástico: os monges foram agentes de evangelização desde o século IV, formando novas Igrejas irradiadas pelo seu modelo de vida independente das Igrejas atingidas pela entrada de convertidos que procuravam os favores do Império. Por isso os monges estabeleceram-se fora das cidades e desses modelos de Igreja. Nasce um movimento de volta às origens do Cristianismo e da missiologia paulina, lutando contra as decisões romanas para a Igreja como a acusação de iconoclastia e o excesso de intelectualidade grega no pensamento cristão.
A crise da Igreja feudal, e o fracasso de respostas a esta no período de Inocêncio III, deram abertura para renovação da evangelização pelos Monges Mendicantes, em especial Franciscanos e Dominicanos, que inicialmente receberam do Papa a permissão de pregar e reunir os cristãos. Fundaram as primeiras igrejas que durante anos tiveram muito mais sucesso que as Igrejas paroquiais, que se conservavam pelo Batismo e casamento, sendo todo o restante realizado nas igrejas dos mendicantes, uma vez que essa se adaptara melhor a realidade das cidades nascentes. Na América Latina em particular, houve dois modelos de evangelização. O primeiro se deu pelo modelo de extensão (compreendida como a-cultural e apologética e extensão da cultura e pensamentos romanos) e, o segundo que Comblin denomina “outro modelo” que se deu com a chegada dos Franciscanos (Doze Apostoles conduzidos por Frei Martinho de Valencia 1524) com quase todos os poderes dados por Leão X, para a fundação de novas igrejas independentes e nacionais. Em seguida os Jesuítas assumem esse modelo como as reduções.
Em contrapartida o período tridentino oferece um modelo eclesial centralizador a tal ponto que o movimento missionário resta ofuscado, quase liquidado. A evangelização nesse período é compreendida eminentemente como extensão da Igreja Romana nos diferentes contextos que atinge e os monges passaram a ser utilizados para a re-evangelização permanente de paróquias e dioceses pelo ministério dos frades. Na rivalidade que se instituiu entre regulares e seculares, seguramente o contato com o povo de maneira não autoritária deu aos monges o espaço por excelência do processo de evangelização popular. A América Latina é exemplo claro que a evangelização supõe a missão uma vez que as estruturas estabelecidas tradicionais não conseguem nem manterem-se a si mesmas e quando desaparecem os missionários, a evangelização de indígenas, dos pobres, dos negros é praticamente deixada de lado.
Propostas de desafios “atuais”
Dentro da evolução eclesial em AL, apresenta-se uma tensionalidade entre o posicionamento da teologia de América Latina desde Medellín e a posição Romana. De um lado, Medellín rele o Concílio desde sua realidade identificando a necessidade de conversão e evangelização dos pobres que até agora não haviam sido devidamente atendidos em suas especificidades. De outro lado, instaura-se, sobretudo nos anos do papado de João Paulo II, a recuperação de um episcopado sem o espírito profético, que traziam em suas almas evangelizadores e missionários (Comblin, 1992, p. 224). Os novos bispos se colocam, segundo Comblin, como administradores de Dioceses e representantes da Igreja Romana. A Encíclica Redemptoris Missio (RM) de 1990, não toca em temas que fazem referência a realidade tais como Ação Católica, leigos (as), missões e/ou missionários. Ao contrário, esses são substituídos pelos movimentos, tidos como os missionários do mundo moderno (Comblin, 1992, p. 224).
Nesse contexto, a questão de primordial que Comblin se faz é: serão os movimentos os verdadeiros evangelizados do mundo moderno? Esses não teriam bases estreitas para estabelecer contatos, alargar espaços, alcançar pessoas das mais diversas vertentes? Não seria essa uma aposta infundada e contraditória ao que se propõe? Não estão estes refugiados em seus fundadores e em guetos que insistem em defender a fé de um mundo moderno? Não parecem ter a capacidade ou estarem dispostos a penetrar na cultura moderna. A realidade atual nos mostra.
Mediante a missão como ficam os religiosos?
A importância da relação e vida religiosa se dá à medida que se compreende que missão e Igreja são duas realidades distintas. Certamente intimamente ligadas, mas distintas, ao passo que correspondem a atos distintos do Espírito Santo. Efetivamente a Igreja não cresce como um vegetal, ou como uma Instituição jurídica por expansão. A Igreja cresce pela missão e missão por excelência é a que ultrapassa os limites de cultura e de governo de uma Igreja particular. Missão busca por princípios espaços ainda não descobertos e não evangelizados, por isso está na origem de uma nova Igreja local, onde o missionário é o instrumento privilegiado que colabora com o Espírito em sua fundação. Uma Igreja nova é um ente novo, e não parte da uma Igreja anterior, por isso há um momento em que a missão termina e deve ir a outros espaços. Nesse sentido, missão e ser missionário são um carisma especifico na Igreja; nem todos os seus membros são chamados a ser missionários e nem são delegados de uma Igreja local.
A missão é necessária cada vez que aparece um mundo novo, uma cultura nova, uma sociedade nova que as Igrejas estabelecidas não conseguem penetrar. A própria Encíclica RM, (nr. 37) reconhece que a dificuldade de penetração da Igreja em novas culturas. Aos dias atuais o Papa Francisco vem dando sinais de seu desejo de estreitar laços com as culturas asiáticas.
A questão é que para trabalhar na missão segundo Comblin, o cristão escolhido pelo Espírito e não pela Igreja, devendo sentir-se inteiramente livre em relação a sua Igreja de origem, livre dos costumes, das comodidades, das estruturas, das tradições pré-determinadas. Ele deve fazer-se servidor do Evangelho e não servidor da Igreja que deixou atrás. A liberdade é condição sine qua non de toda missão, a exemplo contundente do Apóstolo Paulo.
Resta ainda a questão de Comblin: hoje os Institutos e Congregações missionárias formam efetivamente missionários? Ou estes assumiram ao largo dos anos os papeis dos seculares ou voltaram-se para suas obras sociais, escolas, hospitais, entre outros estando ao tal ponto presos em suas estruturas, comodidades, paróquias que deixaram de ser em essência missionários?
Desde Medellín, acrescento eu a reflexão combliniana, os desafios não somente cresceram, como tornaram-se mais complexos. Como ser missionários hoje, em pleno século XXI, frente ao crescimento das Igrejas neopentecostais, da desestruturação das Cebs (e podemos pensar que o primeiro é conseqüência do segundo) da ausência de presença cristã católica em áreas típicas de missão. A complexidade da linguagem, dos recursos tecnológicos, as exigências dos recursos materiais que eliminam a perspectiva humana substituindo-a por um consumismo desenfreado, as novas tecnologias que produz hoje o homem pós-orgânico, as novas posturas éticas e morais que impõe novos comportamentos e formas de relacionar-se. Seguramente não será a estrutura das paróquias que dará conta de estabelecer diálogo com essas novas realidades.
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A vida religiosa: estrutura, expectativas, experiências e limitações modernas
Em 1993, Comblin analisa o quanto Santo Domingo, com a desculpa de estar sendo preparado um Sínodo para esse grupo ignorou, a situação dos religiosos (as) no continente. Ora, as intenções da Cúria Romana para o Sínodo possuíam linhas claras de tratamento para o tema: a partir da Congregação para os religiosos que era naquele momento dirigida por um membro da Opus Dei, indicando segundo Comblin que “com certeza a Cúria romana estima que os religiosos não estivessem suficientemente estruturados, nem disciplinados”. (Comblin, 1993, p.326). Insistir em estrutura e obediência é buscar reduzir todos os religiosos (as) a uma só categoria regida pelo direito, o que de certa maneira torna-se um mecanismo de defesa contra os anarquia, dispersão, heresias, ou cismas.
Contudo, para Comblin, o maior perigo da vida religiosa naquele momento, era efetivamente sua irrelevância, falta de influência, de impacto sobre a sociedade, seja para o bem ou para o mal. De modo geral essa é uma das últimas opções que os jovens hoje pensam quando se toca ao tema religioso. Está fora de cogitação em princípio, e lhes parece contra a vida “moderna” entrar em estruturas de obediência e disciplina. Ora, nem as instituições (colégios, hospitais, creches, etc.) mantidos e administrados por essas instituições exercem alguma influência sobre aqueles a usam. Não raramente nas instituições de ensino católicas recebem alunos de outras denominações religiosas, que são ai enviados porque prestam um bom nível de ensino.
O fato é que, dentro desse contexto, Comblin apresenta algumas interpelações/questionamentos para essa irrelevância da vida religiosa no contexto atual. A primeira trata-se a falta de entusiasmo por parte daqueles que já estão aí engajados. O enfraquecimento do ardor missionário que era o fim a ser buscado desde os fundadores, se vê atropelado pelas por novas funções e atribuições, que deveriam ser meios para a evangelização. A ausência de um projeto concreto, claro e específico de atualização das origens do fundador é o maior indício de mescla entre meio e fim. A vida religiosa torna-se, uma abstração e uma fórmula barata que leva a acomodação dos que estão dentro e ao desânimo dos que um dia sonhavam ai estar (Comblin, 1993, p. 327).
Da mesma maneira, e ai decorre a segunda inquietação, é importante separar o que é a vida religiosa, do que é a estrutura da vida religiosa. A vida religiosa é missão, é possibilidade nova de anúncio do evangelho, e não um modelo. A estrutura por vezes tende a transformá-la em um modelo previsto sem imprevistos, sem paixão, sem a consideração da realidade mutante a qual estamos todos inseridos. Não compreender essas diferenças pode segundo Comblin levar a uma pessoa desejar se engajar não à uma vocação específica, mas um modelo geral de vida religiosa. Modelos podem empolgar em primeiro momento, e tornarem-se saturantes ao longo da vida, unicamente porque pessoas não são modelos únicos e ser religioso é ter uma vocação específica que pressupõe, sobretudo o respeito à ação do Espírito de Deus em contato com aqueles (as) que se abrem a sua dinâmica de forma diversificada.
Por isso, e daí provém a terceira interpelação, o risco que também correm hoje as Congregações é ao abandonarem seus fundamentos, suas vocações, se deixarem entrar no mecanismo de mercado, de individualismo e individualidade que perpassa hoje a sociedade. De todos os efeitos econômicos, burgueses, que podem invadir esses espaços, o mais devastador é a dilaceração do senso de comunidade, de luta conjunta, e de realidade. Não reconhecer honestamente em que realidade e sociedade se encontram os religiosos (as), é não ter como compreender a sociedade que muitas vezes as próprias congregações mais antigas ajudaram a construir. Para Comblin, esses não são vocacionados para a burocracia, para a individualidade para os mecanismos de mercado, ao contrário, o são para serem sinais de outra sociedade possível, para estarem na contramaré da modulação comercial, utilitária e individualista da sociedade, é dizer, para estarem na maré do Evangelho, que tem como onda central os pobres.
É nesse sentido, que em América Latina, as conferências do Celam, ressaltam desde Medellín a Aparecida a centralidade evangélica dos pobres (Opção preferencial pelos pobres), que deve ser constantemente atualizada ao momento histórico em que nos encontramos. Hoje, diferentemente de 20 anos atrás os desafios de conscientizar os pobres e sua luta mudaram. Em uma era eletrônica, de neoliberalismo exarcebado, de novos paradigmas econômicos, como por exemplo, o da ecologia, não é mais possível lhes anunciar o Evangelho como há 20 anos. A que pontos religiosos (as) devem readequar antes, suas vidas “neoliberais” para poder hoje anunciar o Evangelho àqueles que ainda são os excluídos da sociedade? Estamos a ponto de pensar que comunidades que insistem no trabalho com os pobres é que são as excluídas do anúncio do Evangelho? Talvez. A teologia presente na missão, não pode ser suplantada por ecônomos, pastoralistas desconectados do Evangelho. Neste caso a teoria deve necessariamente fazer juz a sua prática. Como podem esses se reinventarem para as demandas atuais? (Comblin, 1993, p.333). E acrescento eu: estariam dispostos a isso? Ou estão demasiadamente presos aos atuais esquemas em nome de uma subjetividade excessiva? É dizer, um exagerado olhar sobre si mesmo, que não permite perceber a realidade externa. Uma auto-referencialidade excessiva que anula o próprio da vida religiosa. A pergunta que se coloca Comblin é: como traduzir numa vida moderna o equivalente das grandes opções de monges e frades antigos e das mulheres consagradas do passado? O que significa o evangelho para pessoas cuja primeira preocupação é a realização pessoal, sua felicidade subjetivamente percebida? Com sair da acomodação proposta pelas estruturas romanas, que foi agravado pelo subjetivismo? (Comblin, 1993, p. 333).
3. Os votos são meios e não fim.
A decorrência da terceira interpelação, posta no ponto anterior, Comblin reflete como vivências as exigências da vida religiosa notadamente os votos de castidade, pobreza e obediência em contexto de pós-modernidade subjetivista.
Um primeiro aspecto que destaca, é a sacralização da vida religiosa, no sentido de que religiosos (as) passaram a ser considerados “semideuses”, ou no mínimo aqueles que estão mais próximos de Deus. Ora, para alguns foram considerados verdadeiros objetos religiosos, e na cristandade foram tratados efetivamente como objetos, se lhes pede orações, bênçãos, pensam que sua palavra pode ser milagrosa, especialmente em contextos aonde o clero secular não chega. Nesse sentido a hierarquia secular se aproveitou desse fato e os religiosos igualmente souberam tirar proveito comportando-se como tais.
Ora, tendo por princípio combliniano que a vida religiosa é essencialmente missionária e vocacionada, nada mais sem razão que a objetivação desta. Contudo, há algo mais essencial ainda que deve vir antes dos dois : o amor. O sinal da vida cristã não é o sagrado e sim o amor. (Comblin, 2004, p. 83).
Na mente popular o que fazia a santidade era a consagração e não o amor e o que faz o religioso para o povo de Deus não é o amor, mas os votos. Ledo engano, que ao que parece até mesmo os religiosos ao confundir o que é a vida religiosa com sua estrutura acabaram por assumir. Para todo cristão, a única realidade, o único valor é o amor. Nesse sentido se questiona Comblin: a consagração e os sinais não teriam substituído o amor essencial do cristianismo? (Comblin, 2004, p.82). A consagração tal como é posta atualmente, dando-lhes privilégios de segurança total, autoridade, o marketing religioso, a disfunção de sua atuação, o afastamento da caridade e por vezes da inserção no mundo dos pobres, não seriam um sinal contra-evangélico?
Os votos não representam a experiência, mas o que está englobado na experiência da vivência amorosa que se presume antes de assumi-los. É necessário sempre passar do nível dos votos ao nível da vivência da caridade e jamais permitir que o contrário aconteça. (Comblin, 2004, p.84). Logo, o desafio aos religiosos hoje é quase “ontologicamente cristão”: como ser cristão (viver a caridade) e ser religioso? Como equilibrar a estrutura formal e a inserção experiente da caridade?
Estritamente falando, o celibato não é um conselho dado por Jesus, ele constata o fato, mas não apela a ninguém que faça isso. Paulo o aconselha em circunstâncias bastante próprias, para quem, aliás, a perfeição encontra-se na caridade e não no celibato. Também não se explica porque a pobreza levaria à caridade. Jesus convida para dar os bens e ajudar aos pobres e não para entrar em um estado de pobreza. Pobreza não garante a caridade. Há muitos pobres que não a praticam. Como dizia D. Luciano Mendes: nós amamos os pobres, mas eles têm defeitos como qualquer pessoa. O mesmo vai para a obediência. Às vezes ela serve exatamente para ser uma desculpa de não praticar a caridade, como revela a parábola do samaritano misericordioso. Se tomarmos 1 Cor 13,2-3, observa Comblin, poderia ser substituído por : “Ainda que fizestes os votos de castidade, pobreza e obediência e os praticasse perfeitamente , se não tivesse a caridade, eu não seria nada”. (Comblin, 2004, p. 88). O que importa não é emitir os votos, mas vivê-los precedidos pela caridade.
A vida religiosa vem de outra vertente: vem de Deus criador, por intermédio da natureza das pessoas que tem sentimentos religiosos distintos. Há aqueles que vivem esse sentimento de maneira muito mais evidente e intensa. Contudo a menor ou maior sensibilidade religiosa é independente da caridade e santidade. Cada cristão é chamado a vivê-las não por seu estado, mas por ser primeiramente cristãos. Os primeiros monges apareceram independentes da Igreja. Não se sabe como, mas se sabe que não viviam em comunidades cristãs, e buscavam a Deus nos desertos e somente muito depois foi configurado como temos atualmente. A busca da realização da vocação cristã exige uma resposta de inteligência e vontade, uma conversão da vida, e não pode ser influenciada, ou o apelo é interior e ele existe, ou não existe. E nem são os votos que o farão existir. De certo modo a busca constante de conciliar vida religiosa e caridade, nas diferentes épocas da História da Igreja, não exclui em nenhum momento sua essência, ao contrário, procura atualizar sua vivência as diferentes épocas da Igreja.
Diferentemente do declarado no Direito Canônico, a vida religiosa é bastante mais ampla e mais profunda experiência amorosa do Evangelho. Esses códigos são de inspiração medieval e seguramente não é o retorno a essas estruturas que vai permitir o aprofundamento dessas experiências (Comblin, 1993, p. 335). Definir a vida religiosa pelos votos, não quer dizer nada; é uma pura formalidade canônica para entrar numa categoria canônica. Na origem das Congregações e Institutos não está à pertença, e sim a caridade. A formulação jurídica veio muitas vezes da hierarquia e não era desejada pelos fundadores, vide o caso extremo de Francisco de Assis. A idéia imposta era de reduzir as iniciativas e canalizá-las para um modelo único, como se os carismas e a ação do Espírito de Deus pudesse ser unificada (Comblin, 2001, p.60)
4. Interrogantes sobre o lugar dos religiosos na Igreja e no mundo
O carisma especial dos religiosos (as) está na radicalidade: a pessoa obra (no sentido mais amplo) de caridade. A questão de fundo do pensamento de Comblin pode ser traduzida em: onde na Igreja e no mundo se situam aqueles (as) que fizeram essa opção radical?
Os religiosos na Igreja
A partir da segunda metade do Sec. XX, as funções tradicionais dos religiosos foram deslocadas à outros grupos. A educação e saúde passaram a grupos de leigos. O papel religioso, propriamente dito tais como a comunicação da fé ativa no mundo do trabalho, testemunho, a direção espiritual de grupos e associações, a formação cristã, a pregação de retiros para sacerdotes e bispos, enfim quase tudo foi transferido e está cada vez sendo assumido por movimentos. Seguramente ainda existem religiosos que se dedicam a essas atividades, porém cada vez em menor proporção. A questão é que os movimentos assumem tais funções a partir daquilo que são e como se colocam na sociedade: subjetivistas e desconexos da realidade, constituindo ilhas de espiritualidade, estados de refúgios privilegiados (Comblin, 2001, p.54).
Contudo, Comblin não quer afirmar que os religiosos (as) sejam inativos. Acontece justamente ao contrário: eles se ocupam e muito daquilo que não deveriam e a nível que mereciam estar nas estruturas eclesiais e paróquias. Agem como se tapassem buracos na Igreja. Faltam de mão de obra nas paróquias, dioceses, nas pastorais: ai entram religiosos e religiosas, via de regra sem nenhum projeto próprio. (Comblin, 2001, p.55). Posições não definidas levam a perda de suas identidades e o sentido de suas vocações, uma vez que em lugar de evangelizar tornam-se administradores de comunidades. Ao aceitarem paróquias, os religiosos deixaram a hierarquia sem necessidade se assumir suas responsabilidades. Perdem-se suas especificidades, como perguntar qual a missão destes na Igreja? Alguns diriam que a questão é o número. Mas a questão de fundo para Comblin é efetivamente o que cada grupo assumindo sua própria identidade, carisma, caridade e missionaridade poderiam fazer por aquilo que lhes é próprio: Evangelizar.
Ora, fora do espaço eclesial, devem necessariamente aprender a lidar com a diversidade que trás em si todas as pessoas com as quais têm contato. Essas trazem problemas próprios, mentalidades próprias e a forma e o cuidado da presença cristã em meio a estas não deve improvisado (Comblin 1994, p. 415). Daí decorre o segundo cuidado a ser tomado com a subjetividade. Cada um apresenta-se como um sujeito único ainda que as demandas sejam idênticas. Efetivamente a unicidade da pessoa não pode ser confundida com subjetivismo. Unicidade de problemas e leituras da realidade não impede de constituir comunidade para sobrepensá-los. Não se trata de pastoral de massas, mas de suplantar as distâncias que se impõe a custas de uma auto-referencialidade egoísta.
Para tanto é preciso que o Evangelho leve as pessoas efetivamente à experiência da liberdade. A liberdade trazida pelo individualismo é falsa, é induzida a uma autonomia que não se realiza. O exercício da liberdade se dá não consigo mesmo, mas em contato com o outro. Hoje muitos em nome de uma liberdade individualista em meio a tantas ofertas não sabem o que escolher, anda por tudo e por nada, experimentam tudo e nada, porque o que vem de fundo é o autoritarismo de vontade. A proposta do evangelho é a liberdade na caridade, no serviço e na partilha. As escolhas brotam respeitando as individualidades, em função da comunidade.
Para tanto, é necessário uma espiritualidade concreta, vivida e experenciada. É ela que vai permitir e suportar a prática da vida cotidiana e vice-versa. Cada carisma religioso trás uma maneira prática de colocar o evangelho na vida numa situação específica, num tempo específico no meio de condições bem definidas (Comblin, 1994, 417). E uma espiritualidade somente pode oferecer respostas se é primeiramente vivenciada plenamente por aqueles que a assumem. Não basta a disciplina passiva dos noviciados clássicos em que as regras são bem definidas pelos superiores e não sofrem nenhuma possibilidade de infração. Isso não leva ninguém a preparação efetiva para o mundo exterior, a perceber se estão efetivamente no lugar e da forma como devem estar para realizar suas missões.
Conclusão
A teologia de José Comblin é contemporânea e contextualizada, e os pontos que destacamos nesse artigo demonstram isso. Mesmo se foram escritos em período anterior, creio que todos se adéquam perfeitamente aos dias atuais. Trabalhando alguns deles em retiros que preguei em duas Congregações, os resultados foram bastante pertinentes como se escritos atualmente. Contudo suas constatações não anulam o esforço de milhares de religiosos (as) que já vivem com autenticidade e seriedade a vocação que assumiram.
A experiência da vivência cristã deve ser constantemente revista e repensada à época atual, para que o Evangelho se faça vivo no mundo e a Palavra se transforme efetivamente em “carne” através de cada cristão, que por meio de seus testemunhos a atualizam na história. Do contrário, transforma-se em palavra morta e livro sem vida. Ora, o repensar constante, a percepção do mundo que deve ser evangelizado e as formas de fazê-lo por essa porção do povo de Deus, é um constante desafio. Reinventar constantemente a vivência da vida religiosa é quase um esforço heróico aos dias de hoje. A pergunta maior de fundo que Comblin nos deixa creio que pode ser resumida em : vale ainda a pena essa vivência ? Se sim, mãos a obra para o constante cuidado e desafios que se apresentam atualmente em um mundo tão complexo!
Alzirinha Rocha de Souza
Bibliografia: Revista Convergência da CRB Brasilia
1 Alzirinha Souza, Leiga, Doutora em Teologia Université catholique de Louvain Bélgica - Professora de Teologia Sistemática ITESP SP e Pós Doutoranda da PUCSP.