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A TEOLOGIA DA ENXADA COMO AÇÃO DO ESPÍRITO NO POVO DE DEUS PELOS CAMINHOS DA HISTÓRIA

Considerações a partir do livro de José Comblin. O Tempo da Ação. Ensaio sobre o Espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982.

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

            A Teologia da Enxada completa seus quarenta anos. De 9 a 12 de outubro de 2009, uma parte considerável de seus protagonistas – os de ontem e os de hoje – estiveram a confraternizar-se, em Serra Redonda – PB, num encontro marcante de celebração, de rememoração, de avaliação e de um esforço prospectivo. Seus protagonistas compõem uma família diversificada = a Associação de Missionários e Missionárias do Campo, o Centro de Formação Missionária/Fundação Dom José Maria Pires, a Fraternidade do Discípulo Amado, a Associação da Árvore, as  Missionárias do Meio Popular, Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste, a Associação das Escolas Missionárias, mantendo uma relação orgânica com outros grupos e expressões da Igreja dos Pobres, como as CEBs, as PCIs, o CEBI, o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste, as Pastorais Sociais, num amplo espectro no qual reconhecemos traços vigorosos do rosto da “Igreja na Base”.

            Em se tratando de uma expressão mais nordestina da Teologia da Libertação e experiência formativa de enraizamento cristão no meio dos pobres, a Teologia da Enxada tem muito a comemorar, ao tempo em que trata de exercitar um olhar avaliativo, e prospectivo, em busca de responder aos novos desafios da conjuntura social e eclesial, na perspectiva do Seguimento de Jesus.

            Momento propício para refletir distintos aspectos dessa caminhada. Nas linhas que seguem, ensaiamos focar um desses tantos pontos: o referencial teológico que melhor fundamenta e inspira a experiência da Teologia da Enxada. Em três momentos tratamos de organizar as presentes notas: 1) um sucinto quadro mnemônico dos fundamentos da Teologia da Enxada; 2) a redescoberta da missão do Espírito Santo no mundo; e 3) novos desafios na caminhada da Teologia da Enxada.

  1. Rememorando alguns traços históricos da Teologia da Enxada

 

            A despeito da clara prevalência, no Concílio Vaticano II, de um perfil entre moderado e conservador do episcopado participante, foi amplamente reconhecida a atuação de um grupo de bispos – entre os quais Dom Helder Câmara é considerada como uma de suas referências – que desempenhou um papel significativo, no empenho da ação profética da Igreja no mundo. Esse grupo, que reuniu algumas dezenas de bispos de diferentes continentes, ficou conhecido como o do “Pacto das Catacumbas”. Mas, foi, sobretudo, no contexto da Conferência de Medellín, na mesma esteira da caminhada das CEBs, da Teologia da Libertação, foi sendo tecida, pela ação do Espírito, a Teologia da Enxada, no final dos anos 60, a partir de dois núcleos iniciantes – um em Salgado de São Félix – PB – e outro em Tacaimbó – PE.

            Já de início, os protagonistas dos primeiros núcleos da Teologia da Enxada, em boa parte compostos de jovens seminaristas, descontentes com o tipo de formação recebida, compartilhavam o sentimento da necessidade de buscar uma formação alternativa, à altura dos desafios dos novos tempos. Em grande parte, de origem rural, sentiam o fosso entre uma formação com demasiado acento na apreensão intelectual de temas e problemas que tinham pouco a ver com os desafios do cotidiano do povo, especialmente os pobres das periferias urbanas e do mundo rural.

            Sob o impulso daquele abençoado contexto inspirado pelas prioridades de Medellín, a opção pelos pobres sendo a primeira, ousaram ensaiar, com a orientação e acompanhamento de formadores como o Pe. José Comblin, um caminho formativo diferente, a começar pela opção de fazê-la junto com os pobres, e vivendo como pobres.

            Aspectos do tipo de formação dessa ousada experiência acham-se registrados no livro organizado pelo Pe. José Comblin, intitulado Teologia da Enxada. Uma experiência da Igreja no Nordeste. publicado pela Vozes, em 1977. Dizem respeito aos propósitos formativos da experiência, inicialmente voltada à  formação de jovens do meio rural, vocacionados ao presbitério. Experiência que se realizaria, em inícios dos anos 80, no Seminário Rural, inicialmente instalado numa pequena área chamada Avarzeado, no município de Pilões – PB, em 1981, pouco tempo depois (1982/3) transferido para Serra Redonda, com o firme apoio de Dom José Maria Pires, então arcebispo da Paraíba.

            Após passarem por vários dias de reflexão, no exercício do discernimento, acompanhados por uma Equipe de Formadores, e por uma criteriosa avaliação, em que se buscava ajudá-los num primeiro discernimento entre o caráter daquela proposta e o que sentiam aqueles jovens, em processo de admissão ao Seminário Rural, foi assim que por lá passariam dezenas de jovens do meio rural de vários Estados do Nordeste e até de fora do Nordeste. Aí passavam dois anos, numa experiência formativa que incluía, além dos estudos teológicos e da realidade social, o cultivo da lavoura e a criação de pequenos animais, como meio de contribuir para sua própria sustentação, bem como as atividades litúrgicas e atividades pastorais, junto às comunidades vizinhas. Nos dois anos seguintes, sempre contando com a participação de uma equipe de formadores, passavam em comunidades rurais, a estudarem, a trabalharem e a acompanharem as atividades das respectivas comunidades, numa atitude de aprendizado, vendo, ouvindo, sentindo e registrando diferentes aspectos de suas experiências. A formação se completava nos dois anos seguintes, quando assumiam o compromisso de irem ajudar a fundar novas comunidades, noutras regiões, sempre acompanhados pela Equipe de Formação.

            Essa fecunda experiência de formação de jovens do meio rural vocacionados ao presbiterado, que tinha contado com a aprovação do Papa Paulo VI, foi negativamente avaliada no pontificado do Papa João Paulo II, e desaprovada como insuficiente em sua proposta curricular... A partir daí, a experiência é mantida, mas na perspectiva de formação missionária para jovens do meio rural. E assim evoluiu, com a participação de várias dezenas de jovens.

            Experiência que se mostrava aberta e sensível aos sinais dos tempos, o que implicou a necessidade de se adaptar aos vários perfis e carismas de seus formandos. Nascem, assim, várias ramificações da mesma experiência: inicialmente, com a iniciativa de criar associações com caráter autônomo, tal como a Associação de Missionários e Missionárias do Campo, a Associação da Árvore. Uns, sentindo-se mais vocacionados a uma vida contemplativa (Fraternidade do Discípulo Amado, passam a viver uma experiência monástica de novo tipo, bem sintonizados com as necessidades, as aspirações, as lutas, as dores, as alegrias e as esperanças do povo dos pobres, passando a viver no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina – AL;

            Outros continuaram vivendo no Centro de Formação Missionária, constituindo a Fraternidade São Marcos, dedicando-se à formação de jovens do meio popular rural e urbanos, em cursos oferecidos em vários formatos, conforme o perfil dos jovens formandos, vindos de experiência de animação de grupos de jovens, das pastorais sociais, de atuação sindical, de militância em movimentos sociais, ONGs, partidos políticos populares, ora em formato de finais de semana, ora em quinzenas semestrais, para os quais eram e continuam sendo oferecidos cursos versando sobre temáticas várias: formação de educadores populares, cuidados do meio ambiente, cultura de paz, comunidades quilombolas, entre outros.

            Outros sentiam-se chamados a uma vida itinerante, a peregrinarem pelo Nordeste, em consonância, aliás, com o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste. Convém, ainda, lembrar mais uma experiência dessa mesma “família”: a fundação da experiência formativa específica às jovens do meio rural. Eis que, em 1986/7. Mogeiro passou a ser a sede da formação dessas moças do meio rural, as Missionárias do Meio Popular. Outra experência fecunda, também na área da formação, foi a fundação das Escolas Missionárias, no final dos anos 90, espalhadas por vários Estados: Bahia, Piauí, Paraíba, Tocantins, Pernambuco.

            Convém, ainda, ter presente que várias outras experiências daí nasceram ou guardam consideráveis vínculos de afinidade, a exemplo da fecunda experiência de formação protagonizada pelo DEPA – Departamento de Pastoral e Assessoria, animada por uma Equipe de Formadores, da qual faziam parte: Pe. Humberto Plummen, o atual bispo anglicano Dom Sebastião Armando Soares, Pe. René Guerre, os Professores Eduardo Hoornaert, Ivone Gebara, Luiz Carlos Araújo, Marcelo Agusto Veloso, entre outros.

            A partir desse sucinto relato de elementos relativos à Teologia da Enxada, tratamos de focar o que entendemos como os fundamentos axiais da proposta formativa dessa experiência. Fundamentos que brotam de um entendimento novo da missão do Espírito Santo no mundo. Tema em relação ao qual a obra do Pe. José Comblin, especialmente a de caráter pneumatolótico, vem dando, pelo menos desde 1978, uma profunda contribuição. Nossa questão, agora, é: em que vem se inspirando a fecunda experiência da Teologia da Enxada? Que importância ela atribui à ação do Espírito Santo na História do Povo de Deus, ontem como hoje?

 

  1. A ação do Espírito Santo sobre o Povo de Deus pelos caminhos da História

 

            Do vasto leque de temas trabalhados por José Comblin, em seu frutuoso percurso existencial e densa produção teológica, a ação do Espírito Santo no mundo, na história e na construção do Povo de Deus destaca-se sobremaneira. Mais do que uma simples inquietação circunstancial, esse tema nele se tem constituído um alentado projeto de incessantes buscas. Desse projeto, iniciado sobretudo a partir de seu livro O Espírito no Mundo (Petrópolis: Vozes, 1978), e ao qual dá seqüência com a publicação de uma meia dúzia de livros[1], este do qual ora nos ocupamos constitui um de reconhecida relevância e repercussão, dentro e fora da Igreja Católica latino-americana.

            Já tivemos ocasião de nos deter em outros textos de Comblin, a exemplo de O Espírito no Mundo e de O Povo de Deus. Agora, houvemos por bem, e em conseqüência dos estudos sobre a obra de Comblin, que vêm sendo objeto de trabalho de um pequeno Grupo, debruçar-nos sobre o presente, nos termos anunciados no título dessas notas.

            Iniciamos pela forma como vem estruturado o livro, aqui apresentando um quadro  panorâmico da obra, para, em seguida, propor um passeio mais detido pelos capítulos da mesma. Não por acaso, o mais volumoso dos estudos pneumatológicos publicados por José Comblin. Em quase quatrocentas páginas, cuja introdução toma dez por cento, ele distribui em nove densos capítulos sua fecunda incursão, iniciando pela explicitação e precisão dos conceitos com que trabalha, ao longo do texto, inquietação a que dedica os dois primeiros capítulos, destacando os sentidos da ação na história e na construção do povo de Deus.

            O terceiro capítulo é dedicado a uma apreciação crítica das relações entre o Cristianismo e o Helenismo. A marcante penetração deste nas manifestações do Cristianismo e suas profundas implicações, de modo a destacar suas negatividades. O desafio a Cristandade é alvo de análise do quarto capítulo, onde historiciza as relações características vivenciadas pelos cristãos nesse período, destacando as terríveis implicações, sem deixar de reconhecer aspectos positivos.

            “A Reforma em questão” é como intitula o quinto capítulo, em que cuida de situar historicamente a proposta da Reforma, em suas positividades e em suas inconsistências.O sexto capítulo trata do “choque da modernidade”. Nele, o autor aborda criticamente o impacto da “civilização do trabalho” e a posição da Igreja Católica e do Cristianismo, seja quanto a uma rígida oposição, seja quanto a uma aproximação. O estudo se estende até o pós-Vaticano II.

            O sétimo capítulo ocupa-se de analisar “a era das revoluções”, destacando seu contexto histórico, suas relações com o Cristianismo. Aborda, também, o sentido da ação revolucionária, bem como os aspectos positivos e negativos dos processos revolucionários. Por fim, o autor situa um impactante quadro de desafios conjunturais (oitavo capítulo), em relação a que importa exercitar o discernimento (nono capítulo), para se captar o sentido da ação inspirada pelo Espírito.

            Tendo fornecido um leve quadro sinótico do livro, buscamos, em seguida, resumir e destacar aspectos pontuais de cada capítulo, começando pela própria

 

Apresentação e introdução do livro

 

            Já na apresentação do livro, cuida o autor de explicitar o caráter de sua produção. Reconhecendo a vastidão do alvo de suas inquietações externadas no presente livro, prefere propô-lo em termos em que expressa profunda modéstia: propõe seu livro em termos de um ensaio, de uma hipótese, de uma sugestão, não obstante tratar-se de um texto com 389 paginas, fruto de uma pesquisa de longo fôlego, amparando-se em fontes e autores de reconhecida contribuição. Trata, igualmente, de assinalar o lugar social e o contexto sócio-histórico a partir dos quais propõe sua reflexão. Esta brota de um lugar e de um contexto bem concretos: o caminhar da Igreja Católica na América Latina da primeira metade dos anos de 1980. Daí é que despontam as interrogações partilhadas no livro.

            Começa a introdução com uma afirmação lapidar e emblemática: “Deus é ação. Nosso Deus é um que age: que liberta, constrói, transforma.” E, com propósito de contextualização sócio-histórica, parte, em seguida, para uma constatação tocante, inclusive pela sua refinada sensibilidade ecológica, já então (vale lembrar o livro foi publicado em 1982)> recorda que em cem anos, a população do mundo passa de um para seis bilhões, o que implicou a emergência dos seres humanos, da sociedade humana, como o maior desafio a ser enfrentado pela ação, pelas profundas implicações que tem representado essa enorme expansão da presença humana no Planeta (cf. p. 13).

            Por conta de tal desafio sócio-histórico, a Igreja é instada a passar de uma ação voltada para si mesma, para abrir-se, solidária, aos desafios do mundo, da história, de toda a sociedade, de promover o bem de todos os homens, cristãos e não-cristãos. É instada a contribuir efetivamente com o processo de libertação do homem todo e de todos os seres humanos (cf., por ex., a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, de 1967).

            Na esteira do anúncio da ação libertadora de Deus no mundo e na história, o livro indica os fundamentos e inspirações mais fortes dessa abordagem da ação do Espírito. Um desses elementos é a Teologia da Libertação, na medida em que nasce e se afirma, pela força do Espírito, como uma proposta de reflexão e ação dos cristãos na América Latina, no fecundo contexto sócio-históricos de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Uma proposta de reflexão teológica, então ainda apenas anunciada, em suas bases e traços gerais mais fortes: o espírito profético de denúncia das profundas desigualdades sociais, o compromisso com a causa libertadora dos pobres e oprimidos, tomando estes como sujeitos de seu processo libertador, o exercício de uma consciência mais forte da Igreja Povo de Deus, abertura ao exercício de um ecumenismo de base, entre outras características que, em seguida, seriam tomadas como alvo de uma alentadora proposta de produção teológica, como a expressa pelo Projeto “Teologia e Libertação”, do qual resultaram importantes contribuições, em diferentes domínios, desse novo modo de fazer Teologia (a Teologia da Libertação), da qual o autor é uma das principais referências.

            No seio da Teologia da Libertação, vai se produzindo uma fecunda gestação de formulações inovadoras, a exemplo da Cristologia. No caso do presente livro, o propósito explícito do autor é de contribuir num domínio específico e organicamete articulado a outros: o campo pneumetológico, o da ação do Espírito Santo no mundo. Neste caso, tratava-se de continuar a contribuir, pois desde a década precedente, já iniciara sua contribuição (O Espírito no Mundo é de 1978). Espírito e libertação – eis o terreno mais impactante de sua contribuição, desde então.

            Tal é o alcance da contribuição do autor, enquanto um dos formuladores da própria Teologia da Libertação, que, mesmo reconhecendo que a TdL achava-se então ainda como um anúncio, precisando de consolidar-se em diferentes esferas, propõe-se contribuir na esfera da ação do Espírito Santo no mundo, tendo o Espírito como uma das mãos com as quais Deus age no mundo, na história e entre os homens (a outra é Jesus). Já àquela altura, sentia-se à vontade para tecer um comentário crítico na tendência de então de se fazer Cristologia, a partir de uma perspectiva eclesiológica ocidental. Sua avaliação, a esse respeito, revela-se bastante crítica: “Até o momento pode-se dizer que as teologias da libertação têm seguido os caminhos traçados pela teologia ocidental. É notório que ignoram as teologias do Oriente. Buscam uma cristologia, mas o mais das vezes se fundamentam, antes de tudo, numa eclesiologia. O fato se torna mais grave, visto que querem ser teologias da práxis, e se abordamos o cristianismo pelo ângulo da práxis, aquele que de imediato encontramos é o Espírito.” (p. 22).

            A teologia ocidental parece não haver encontrado em suas sínteses o lugar certo da Terceira Pessoa da Trindade. Até que se invoca sua presença, lembra o autor, mas quando se trata de pedir-Lhe que confirme as decisões já tomadas, sem um esforço concreto de escutar o quê o Espírito tem a nos dizer. Uma forma inconsciente de se tentar privatizar o entendimento da missão do Espírito Santo?

            Essa incompreensão ou entendimento insuficiente da missão específica do Espírito Santo na História tem implicado equívocos diversos. Um deles: a tendência a um certo cristomonismo, à medida que se acha completamente acabada mensagem cristã, após a ascensão de Jesus e a partida dos apóstolos. Tudo que se tinha a dizer, já teria sido dito. Agora, nossa missão é só repetir. É aí que se escanteia a missão específica do Espírito Santo, o enviado do Ressuscitado, que continua agindo sobre o Povo de Deus, inspirando-o em suas buscas, em suas lutas de transformação, na perspectiva do Reino de Deus.

            Devem-se a tal incompreensão da especificidade da missão do Espírito Santo sucessivos equívocos: o de julgar-se a Igreja como a continuadora do próprio Cristo, portadora dos seus poderes divinos, em vez de pensar-se estabelecida sob Seu poder. Mais: com tal compreensão, a Igreja julga ser função sua apenas conservar, repetir e difundir as verdades reveladas como sendo toda a Revelação; o equívoco de, ao definir-se como divina e humana, atribuir uma divisão rígida entre essas duas dimensões, de tal modo que, em virtude de seu lado divino, retém para si automaticamente qualidades que somente a Deus deviam ser aplicadas, e, em relação à sua dimensão humana, só retém as fragilidades, os pecados, as fraquezas, sem admitir também as potencialidades, as virtudes como também fazendo parte da dimensão humana, graças à atuação do Espírito na humanidade, na história; o equívoco de trabalhar apenas a unidade/uniformidade, fazendo uma leitura negativa da diversidade/multiplicidade, enquanto, em verdade, uma melhor compreensão da missão do Espírito Santo, a ajudaria a ver positividades e e negatividades tanto na unidade quanto na diversidade. Diferentemente do entendimento hegemônico na teologia ocidental, de que a unidade é divina, enquanto a diversidade é coisa humana, Comblin pondera que “a unidade como a multiplicidade, a uniformidade como a diversidade, são divinas e humanas, ao mesmo tempo. O Cristo é princípio de unidade, mas o Espírito é princípio de multiplicidade. Se existem formas de diversidade que constituem fraquezas devidas à fragilidade humana, existem também formas de unidade que são devidas à mesma fraqueza humana.” (p. 26). E conclui: “A volta ao Espírito restaura a plenitude das dimensões divinas e humanas da salvação.” (ib.).

            A partir dessa compreensão, o autor prossegue sua instigante reflexão, sempre bem fundamentado biblicamente. Assim, cuida de bem articular e distinguir as atribuições de Cristo e do Espírito Santo. Entre as Pessoas da Trindade, há uma unidade tocante, como há uma diversidade de funções. É o que acontece também em relação a Jesus e ao Espírito: suas atribuições comportam uma notável unidade bem como uma diversidade notável, sendo que esta é muito pouco observada na teologia ocidental. Donde o cuidado do autor, de acentuar tal distinção, sem prejuízo da unidade entre as Pessoas Trindade. “Para nos levar ao Cristo não outro caminho senão o Espírito.” (p. 30). E o Espírito dispõe para cada um, para cada uma, uma multiplicidade de caminhos cuja unidade é assegurada pelo próprio Espírito.

            Nessa mesma linha, Comblin aborda a missão do Espírito, nas diferentes situações humanas, inclusive quanto ao esforço de conhecer que comporta armadilhas, à medida que pretendemos conhecer a Deus, a partir de nossos esquemas próprios, de nossos métodos, o que implica apenas ter-se uma idéia de Deus. Só pelo Espírito chegamos ao verdadeiro conhecimento de Deus, pondo em prática seus ensinamentos, e não apenas limitanndo-nos a conhecimento intelectual. O mesmo se dá em relação à Igreja, à conversão – como expressão da ação do Espírito no meio do Seu Povo.

 

Elementos do estado dos estudos atuais sobre o Espírito Santo na História

 

            O primeiro capítulo, assim como o segundo, constituem um espaço destinado a explicitar o sentido que a obra confere aos três conceitos-chave que a permeiam: “Ação”, “História” e “Espírito”. O autor começa pelo sentido dado à “Ação”, focando principalmente a dimensão pública, antes que a ação no cotidiano, seguindo o critério bíblico e da tradição oral da mensagem cristã. Enquanto a maior parte da obra cuida de focar, de modo contextualizado, como se deu a ação do Espírito através da História, o primeiro explicita as relações entre ação, história e Espírito Santo, ao tempo em que, o segundo capítulo cuidará de situar o estado atual dos estudos bíblicos contemporâneos sobre o Espírito e sua ação na História. (cf. (cf. pp. 45-46).

            Com relação especificamente ao primeiro capítulo (pp. 45-75), o autor o distribui em duas partes: trata inicialmente da relação entre a ação e o Espírito (pp. 46-66); em seguida, enfoca a relação entre História e Espírito (pp.66-75). Os destaques da primeira parte incidem sobre o lugar de Jesus como Ação do Pai; o Espírito como continuação do Ressuscitado como Ação no mundo; o conteúdo e o valor dessa ação e a relação entre Messias e ação, enquanto na segunda parte deste capítulo (História e Espírito), reflete sobre o sentido de duas opções frente a esse movimento do Espírito na História: a de acomodar-nos à situação histórica ou a do compromisso com a transformação.

            Na leitura da Teologia contemporânea, Deus age no mundo por meio do seu Povo, razão por que a nossa ação tem origem divina, sendo a Bíblia um ponto de refência relevante, desde que seja interpretado à luz do Novo Testamento.

            Retomando as grandes linhas do primeiro capítulo,  primeiro destaque do capítulo incide sobre a missão de Jesus, o enviado do Pai para agir no mundo, ungido pelo Pai, desde sua concepção e desde seu batismo, para ser ação no mundo, na História. O livro enfatiza a ação de Jesus, em sua diversidade. Jesus aparece nos relatos bíblicos como Ação: anuncia, denuncia, cura, proclama, faz o bem por onde passa. Jesus é a Ação do Pai, pela força do Espírito. E, como Ação, tem como alvo maior, que atua como unidade de sua ação, a formação do Povo de Deus, pelos caminhos da História.

            À medida que esse Povo vai compreendendo sua vocação, passa a entrar para o Seguimento de Jesus, não tanto para imitá-lo, para copiá-lo, mas para reinventar sua ação, nos desafios do presente, eis por que, afirma o autor: “Toda verdadeira ação humana, toda história humana, todas as nossas ações encontram sua imagem perfeita, sua inspiração, nessa ação de Jesus. Toda a história, no sentido mais humano e profundo, apenas revive ou sai em busca da ação de Cristo para revivê-la. Mas para revivê-la será preciso reinventá-la. Nada há para ser copiado. Tudo foi dito, mas nada ainda foi dito. Tudo foi mostrado, mas tudo está por descobrir. Pela missão do Espírito, a humanidade reinventa a ação de Cristo, a seu modo, múltiplo e diverso, em todos os cantos do espaço e do tempo, e isso forma uma grande ação, uma única história.” (pp. 50-51).

            Eis por que Deus é ação, e das três Pessoas da Trindade é a Terceira que melhor a quem incumbe revelar esse atributo divino. Insiste o autor em reconhecer a dificuldade de se ter claro tal atributo de Deus, a partir dos profundos limites do vocábulo “Espírito”, em relação ao qual se passa uma idéia de algo contraposto a matéria, a corpo, na esteira do dualismo das filosofias gregas. Vocábulo a tal ponto limitado, de modo que o autor se sente obrigado a estar sempre lembrando que “Espírito ´quer dizer força ou ação. Dizer que Deus é Espírito é dizer que Deus é ação, energia, movimento.” (p. 51).

            E o Espírito age em nós, Seu Povo, pelos caminhos da História. A ação do Espírito não se deixa controlar por instituições. Nem por aquelas que, a exemplo das igrejas, pretendem ter o monopólio do Espírito. O Espírito age no Povo de Deus, e, em especial, se manifesta nos pobres, nos fracos. É aí que Sua força age de modo todo especial. Agir implica uma vasta multiplicidade de operações, protagonizadas pelas pessoas. São inumeráveis as ações. Mas, é agindo na direção da libertação que o ser humano vai se libertando. Cada ação conta para uma conquista mais ampla. Enquanto luta, o ser humano vai se pondo no processo de libertação.

            Nem toda ação provém do Espírito Santo. Somente aquelas que promovem e conduzem á liberdade, à libertação de todas as formas de escravidão. Somente aquela ação portadora de sementes de efetiva mudança. Mudança do mundo, mudança do ser humano. E mudança para melhor. Em breve, é toda ação que implique um processo de conversão pessoal e social. De cada uma, de cada um e do conjunto do Povo de Deus.

            Processo que requer incessante exercício de discernimento, condição a que o autor dedica parte do último capítulo deste livro, mas já adianta alguns de seus elementos. Discernimento tem a ver com o exercício de nossa capacidade perceptiva, de nossa atenção aos sinais dos tempos, ao que o Espírito tem a nos dizer e nos estimular a fazer. Implica também uma avaliação crítica das relações das forças em embate: as que lutam por mudanças efetivas e as que representam obstáculos a essas mudanças. Implica um ato criador, pelo qual são buscadas pistas concretas de ação transformadora. No limite, uma tal busca pode implicar o martírio, o ato cristão definido pelo autor como o mais completo, cuja referência maior é o próprio Jesus. (cf. pp. 57-58). Mais adiante, assim se exprime o autor, a propósito do valor da ação: “Cada uma das ações, desde o martírio até os mais humildes serviços quotidianos, é uma antecipação da libertação final e se projeta nessa tela de fundo.” (p. 61).

            No movimento de libertação dos pobres, sobretudo – mas não apenas – no universo judeu-cristão, as ações dos oprimidos têm comportado uma considerável motivação de caráter messiânico, à medida que, ao se darem conta dos mecanismos de sua opressão, põem-se a resistir contra a ordem imperante, e a ousar ensaiar caminhos alternativos. Não apenas as experiência messiânicas de natureza religiosa, como também as de cunho laico. A proposta de Jesus ia além de uma empreitada estritamente messiânica, ainda que não tenha sido entendida por seus discípulos. Acenava para um protagonismo maior dos próprios oprimidos, em vez de apostarem demais na força transformadora da ação exclusiva do Messias.

            De todos os modos, é em função da transformação da História que age o Espírito Santo no meio do Seu povo.

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