Francisco de Aquino Júnior1
Embora se possa discutir se a Constituição Dogmática Lumen Gentium deva ser considerada a “pedra angular” de todos os documentos conciliares1, não se pode negar que desde o final da primeira seção, sob forte influência dos cardeais Suenens e Montini, foi se impondo cada vez mais a tese de que a discussão sobre a Igreja era o grande objetivo do Concílio. E, nessa discussão, um ponto fundamental diz respeito à estrutura social da Igreja que é inseparável de sua missão de ser “sinal e instrumento” de salvação ou do reinado de Deus neste mundo.
É verdade que o Vaticano II não superou completamente a compreensão clerical clássica da Igreja, formulada em termos de “hierarquia e laicato”. Mas, ao começar falando do “povo de Deus” e, só depois, distinguir nesse povo os vários carismas e ministérios, o Concílio lançou as bases para uma compreensão da Igreja como “comunhão” que depois será explicitada e formulada em termos de “comunidade – carismas e ministérios”2.
Essa nova compreensão da Igreja encontrou nas comunidades eclesiais de base (CEBs) na América Latina sua expressão mais básica, mais criativa e mais fecunda. A Igreja como povo de Deus com seus carismas e ministérios se realiza primariamente em comunidades concretas que se constituem como lugar de oração, de vida fraterna e de compromisso com os pobres e marginalizados e como lugar onde se exercitam e se desenvolvem carismas e ministérios importantes e necessários para a vida da comunidade e o exercício de sua missão no mundo. Essas comunidades de base são em si mesmas e simultaneamente “sinal” (expressão) e “instrumento” (mediação) de salvação ou do reinado de Deus nesse mundo.
Aqui está uma das intuições e uma das marcas mais importantes e mais originais do processo de recepção do Concílio na América Latina: A tradução/concretização do “povo de Deus” em termos de “comunidade eclesial de base”. Certamente, a Igreja como povo de Deus não se esgota na comunidade de base, mas tem aí sua expressão mais elementar e mais fundamental. E, certamente, a Igreja latino-americana desenvolveu muitos outros processos criativos e fecundos de comunhão eclesial (colegialidade episcopal, compreensão e exercício do ministério episcopal e presbiteral, vida religiosa inserida, carismas e ministérios, estruturas de coordenação pastoral etc.), mas todos esses processos, de alguma forma, estão vinculados a essa expressão básica e fundamental do povo de Deus que é a comunidade eclesial de base.
No Documento 15 sobre “Pastoral de Conjunto”, Medellin fala das “comunidades de base” 1) como pequenas comunidades que permitem a “convivência pessoal fraterna”; 2) como “comunidades de fé, esperança e caridade”; 3) como “primeiro e fundamental núcleo eclesial” ou “célula inicial da estrutura eclesial” e como renovação da paróquia; 4) como “foco de evangelização” e “fator primordial de promoção humana”; 5) como comunidades que têm seus “lideres ou dirigentes” e em que todos os membros assumem a missão “sacerdotal, profética e real”; 6) enfim, como “um sinal da presença de Deus no mundo”3.
As CEBs marcaram decisivamente o processo de recepção do Concílio na América Latina e por décadas se impuseram como o fato eclesial e social mais importante de nossa Igreja. Sobre elas já se escreveu muito, tanto do ponto de vista teológico-eclesial, quanto do ponto de vista sociocultural4. Um aspecto decisivo, embora tenso e ambíguo, para essa importância das Cebs é o caráter institucional que elas adquirem nas conferências de Medellín e Puebla. Elas aparecem nos documentos finais dessas conferências não apenas como uma experiência identificada e até valorizada na América Latina, mas como projeto pastoral ou, em todo caso, como parte integrante e fundamental do projeto pastoral que se desenha e se propõe para o conjunto da Igreja latino-americana. É verdade que isso nunca foi tão tranquilo e consensual como pode parecer à primeira vista e que foi, inclusive, um dos pontos tensos e controversos em Puebla. Mas não se pode minimizar o fato de que, em meio a tensões e conflitos, elas foram assumidas oficialmente como orientação/proposta pastoral para todo o continente e que isso foi assumido por uma parte significativa da Igreja e em um contexto de crescente mobilização e organização social na América Latina.
Mas essa situação mudou radicalmente no contexto eclesial que vai se desenhando e se impondo na América Latina a partir dos anos 80. E é de fundamental importância analisar a atual situação eclesial (diagnóstico) para compreender bem o lugar e as perspectivas das CEBs nesse novo cenário eclesial (prognóstico).
I – CONTEXTO ECLESIAL ATUAL
As CEBs aparecem em Medellín e Puebla no contexto e no horizonte mais amplos de recepção do Concílio e renovação da Igreja na América Latina: o “povo de Deus” tem sua concretização mais básica e elementar na “comunidade eclesial de base” e a missão de ser “sinal e instrumento” de salvação ou do reinado de Deus no mundo se realiza na vida fraterna e no compromisso com os pobres e marginalizados. Elas aparecem, portanto, como elemento fundamental da estrutura da Igreja (“primeiro e fundamental núcleo eclesial”, “célula inicial da estrutura eclesial”) e como lugar e forma privilegiados de exercício de sua missão no mundo (vida fraterna, opção pelos pobres e compromisso com a justiça) e são apresentadas oficialmente como projeto pastoral ou, em todo caso, como elemento fundamental do projeto pastoral que se desenha e se propõe para o conjunto da Igreja.
Esse aspecto institucional das CEBs foi fundamental para o seu desenvolvimento quantitativo e qualitativo e para sua importância na Igreja e na sociedade. Não obstante suas ambiguidades e contradições, sem ele não se pode entender adequadamente as CEBs nem muito menos o florescimento e o impacto socioeclesial que tiveram nas décadas de 70 e 80. Tanto que, na medida em que a Igreja latino-americana, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 80, vai tomando outros rumos pastorais, as CEBs vão progressivamente perdendo força, relevância e espaço no conjunto da Igreja.
É verdade que se continuará falando de CEBs na Igreja, inclusive nos documentos do CELAM e das conferências episcopais. Mas, além das suspeitas, advertências e correções que normalmente acompanham ou estão por trás dessas falas, a perspectiva eclesial é bem outra: Por um lado, as CEBs já não aparecem mais como o “núcleo fundamental” ou a “célula inicial” da estrutura eclesial, mas como uma organização ou mesmo como um movimento entre outros. Por outro lado, e isso é ainda mais determinante e decisivo, vai se impondo uma compreensão de missão ou evangelização (a chamada “nova evangelização”) de caráter marcadamente religioso e doutrinal que, embora não negue explicita e teoricamente, na prática, aos poucos, vai relativizando e mesmo prescindindo do envolvimento com os problemas sociais e do compromisso com os pobres e a justiça social. Trata-se de um processo progressivo (mais prático que teórico) de fechamento ao mundo e auto-centramento eclesial.
Se as CEBs nasceram e se desenvolveram em um contexto de renovação eclesial e como parte ou elemento essencial desse contexto, a partir da segunda metade dos anos 80, elas se encontrarão em um contexto eclesial extremamente adverso, tanto do ponto de vista da estrutura eclesial, quanto, sobretudo, do ponto de vista da ação pastoral-evangelizadora. Se antes eram assumidas e propostas oficialmente como parte ou aspecto essencial do projeto pastoral para toda a Igreja latino-americana, perderam essa centralidade institucional e, na melhor das hipóteses, são aceitas e/ou toleradas como uma possibilidade entre outras, mas não mais como elemento essencial para toda Igreja.
Essa perda de centralidade institucional repercutiu muito na importância e no lugar da CEBs no conjunto da Igreja. Por um lado, é cada vez menor o número de comunidades que se reconhecem como CEBs e, menor ainda, o número de comunidades que se identificam e assumem com convicção essa forma de ser Igreja. Boa parte das comunidades que existem hoje e de suas lideranças nunca ouviu falar de CEBs. Por outro lado, esse modo de ser Igreja, comprometido com os pobres e marginalizados e suas lutas e organizações, é cada vez mais marginal e estranho na Igreja. A imensa maioria das comunidades está reduzida a culto e doutrina e tem um caráter marcadamente devocional-pentecostal. E tudo isso desafia as CEBs a repensar seu lugar (cada vez mais marginal) e sua atuação (cada vez mais profética) no conjunto da Igreja.
II – PERSPECTIVAS PARA AS CEBS
Antes de tudo, é preciso reconhecer que a Igreja mudou muito e mudou numa direção contrária ao Concílio Vaticano II e sua recepção na América Latina a partir da Conferência de Medellín. E isso teve muitas implicações na vida das comunidades eclesiais de base, enquanto expressão privilegiada do jeito de ser Igreja que se gestou a partir do Vaticano II e de Medellín.
Esse jeito de ser Igreja se tornou cada vez mais marginal no conjunto da Igreja. E não só do ponto de vista da orientação e condução pastoral por parte dos ministros ordenados, mas também, e o que é pior, do ponto de vista das bases da Igreja e de suas lideranças. Sem esquecer nem desconsiderar o peso decisivo que as mídias religiosas de cunho pentecostal-devocional-conservador (católicas e protestantes) têm no imaginário e na vivência religiosos atuais. Temos uma Igreja profundamente autocentrada e clerical. Isso ajuda compreender, inclusive, as resistências que o papa Francisco tem encontrado em seu projeto de renovação eclesial - um verdadeiro “cisma branco” em que, mesmo quando não se faz críticas abertas e até se tece elogios a ele (“o santo padre”) e o cita (muito seletivamente!), não se leva a sério ou mesmo se boicota suas orientações pastorais5.
Nesse “novo” contexto eclesial, as CEBs ocupam um lugar marginal no conjunto da Igreja. Em geral, na melhor das hipóteses, são aceitas ou toleradas como uma entra as muitas expressões eclesiais e uma expressão pouco relevante e pouco atraente. E isso tem gerado muitas desilusões e tem desafiado suas lideranças a encontrar formas criativas e eficazes de “conservar a fé” em um mundo e em uma Igreja que, sob muitos aspectos, vão na contramão do Evangelho de Jesus Cristo.
Parte de suas lideranças históricas mais convictas e criativas foi sendo marginalizada e excluída das instancias de articulação e coordenação pastoral das paroquias e dioceses e/ou se desiludindo e se afastando dessas instancias e, aos poucos, perdendo espaço nas comunidades e pastorais. Mesmo conservando a fé e se reconhecendo como Igreja, não encontra mais espaço ou não se encontra mais nos atuais espaços eclesiais (excessivamente devocionais e reduzidos a culto e doutrina e com mentalidades e relações de poder profundamente clericais). Essa situação, dolorosa e compreensível, acaba produzindo na vida de algumas pessoas um processo de des-eclesialização da fé que é trágico para a própria vivência da fé. Uma nova versão do “Jesus Cristo, sim; Igreja, não”. Esse processo de des-eclesialização da fé se dá tanto medida em que se prescinde explicitamente da comunidade (não é necessária) quanto, e de modo mais sutil, na medida em que, mesmo afirmando sua importância, não se vincula a nenhuma comunidade real/concreta (idealização da comunidade). E isso é trágico para a própria vivência da fé porque compromete um aspecto fundamental da fé que é constituir-nos real/visivelmente como comunidade (“povo de Deus”, “corpo de Cristo”, “templo do Espírito”) e porque, ao prescindir da comunidade real/concreta, acaba reduzindo a fé a uma questão individual e dissolvendo seu caráter de corpo e/ou de força social e, assim, comprometendo sua eficácia no mundo.
Outras lideranças, por sua vez, têm resistido profética e criativamente em comunidades de base, em pastorais, organismos e serviços sociais, em estruturas paroquiais e diocesanas e em articulações de setores populares da Igreja. Sabem que a Igreja, nas últimas décadas, tomou um rumo bem diferente e sob muitos aspectos até contrários aos rumos dados pelo Concílio Vaticano II e sua recepção na América Latina a partir da Conferência de Medellín. Na linguagem do papa Francisco, foi se tornando cada vez mais uma Igreja “autoreferencial e autocentrada” (em vez de uma “Igreja em saída para as periferias”) e uma Igreja clerical (em vez de uma Igreja povo de Deus com seus carismas e ministérios). Mas sabem também que a fé nos faz Igreja e se vive em Igreja (comunidade concreta/real e não apenas ideal) e que a missão se realiza como Igreja e não apenas como indivíduos (corpo ou força social) e não abrem mão desse aspecto fundamental da fé e da missão. Por isso, resistem profética e criativamente na vivência eclesial da fé e no exercício eclesial da missão. E de muitas formas: participando de comunidades e pastorais; assumindo serviços ou ministérios na comunidade; articulando comunidades e setores populares da Igreja; sensibilizando comunidades e pastorais com os problemas e as lutas do povo; vinculando esses problemas e essas lutas à catequese, à leitura da bíblia e à liturgia; atentando para as diversas situações de sofrimento que marcam a vida de tanta gente; fazendo trabalho de base com adultos, crianças, adolescentes e jovens; despertando, cultivando e acompanhando novas lideranças; participando e/ou fortalecendo as pastorais, organismos e serviços sociais na Igreja; mobilizando atividades eclesiais que abrem a Igreja para aos grandes problemas do mundo (Campanha da Fraternidade, grito dos excluídos, marchas por direitos, defesa de comunidades e grupos marginalizados e injustiçados etc.); apoiando e participando de lutas e organizações populares etc. Fazem isso num ambiente eclesial extremante adverso, não sem dificuldades e até sofrimento, mas como aspecto fundamental e irrenunciável da forma cristã de viver a fé e assumir a missão que nos foi confiada.
Fato é que as CEBs, como jeito de viver a fé, têm cada vez mais um lugar marginal e uma atuação profética no conjunto da Igreja. Mais do que nunca tem que assumir características de “fermento”, de “sal”, de “luz”, de “semente”. E isso em um contexto social e eclesial adversos. Não dá para fazer de conta que nada mudou e continuar organizando grandes encontros intereclesiais como se as CEBs fossem a base de toda Igreja. Não dá para ignorar a sensibilidade atual para questões subjetivas e cotidianas tão bem captada pelos movimentos pentecostais. Não adianta criticar e lamentar os “novos” rumos da Igreja sem se dispor a viver e construir na base o jeito de ser Igreja das CEBs. Não dá para coordenar e articular as CEBs sem fazer parte de nenhuma comunidade concreta. Não adianta idealizar e celebrar o passado com suas lutas, seus profetas e mártires sem assumir com seriedade o tempo que nos toca viver: seus desafios, suas lutas, suas profecias... Tampouco adianta admirar e aplaudir o papa Francisco em seu empenho profético por uma “Igreja pobre e para os pobres” ou uma “Igreja em saída para as periferias” sem se dispor a viver e animar no dia-dia esse jeito de ser Igreja – mesmo que marginal e na contramão do modelo clerical e auto-referencial que se impôs nas últimas décadas – como faz o papa Francisco e como fizeram todos os profetas e movimentos proféticos ao longo da história...
Não basta lamentar o passado e criticar o presente. Importa atualizar crítica e criativamente esse jeito de ser Igreja no contexto eclesial e social em que estamos inseridos. Sempre nos passos de Jesus de Nazaré, na fidelidade ao Evangelho do reinado de Deus, na força do Espírito, no serviço aos pobres e marginalizados.
1 Cf. PHILIPS, Mons. A Igreja e seu mistério no II Concílio do Vaticano. História, texto e comentário da Constituição Lumen Gentium. Tomo I. São Paulo: Herder, 1968, p. 1.
2 Cf. CNBB. Missão e ministério dos cristãos leigos e leigas. São Paulo: Paulinas, 2012, Nº 104-105.
3 Cf. CELAM. “Conclusões de Medellín”. In: Conclusões da Conferência de Medellín – 1968. Trinta anos depois, Medellín ainda é atual: São Paulo: Paulinas: 2010, p. 207ss.
4 Cf. MATOS, Henrique Cristiano José de. CEBs: Uma interpelação para ser cristão hoje. São Paulo: Paulinas, 1985; MUÑOZ, Ronaldo. A Igreja no povo: Para uma eclesiologia latino-americana. Petrópolis: Vozes, 1985; TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto. A gênese das CEBs no Brasil: Elementos explicativos. São Paulo: Paulinas, 1988; BOFF, Leonardo. E a Igreja se fez povo. Eclesiogênese: A Igreja que nasce da fé do povo. Petrópolis: Vozes, 1991; BOFF, Clodovis [et al.] As Comunidades de Base em questão. São Paulo: Paulinas, 1997.
5 Cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. “50 anos de Medellín – 5 anos de Francisco: Perspectivas teológico-pastorais”. Perspectiva Teológica 50 (2018) p. 41-58, aqui 45s.
1 Doutor em teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster – Alemanha; professor de teologia na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE.