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COMO FALAR DE DEUS PAI NUM MUNDO DE EXCLUÍDOS ?

 

José Comblin

 

O nosso mundo é cada vez mais um mundo de excluídos ao lado de um mundo de satisfeitos. Os dois mundos afastam-se cada vez mais e ignoram-se. Por sinal, o mundo dos excluídos, apesar de ser majoritário, fica escondido. Num mundo que se diz mundo da comunicação, os excluídos estão fora da comunicação. Não navegam por Internet.

A vida no mundo dos excluídos é uma luta de cada dia pela sobrevivência: um mundo de privações, violências, roubos, assassinatos. Crianças maltratadas expulsas da casa, morando na rua, condenadas a praticar o sexo ou a vender drogas para sobreviver. Mulheres violentadas por homens drogados, jovens sem trabalho, sem estudo, sem horizontes e sem futuro, errando pelas ruas sem saber o que fazer. Lutas pela dignidade sempre recomeçadas e sempre frustradas. Enfim, aquela realidade que conhecemos todos os dias.

 

E Deus, onde está ? O que faz ? Sabe o que está acontecendo ? Como explicar o silêncio de Deus ? Quando os escândalos são gritantes, quando tanto sofrimento atinge pessoas sem defesa, inocentes, já humilhados na vida inteira, onde está a paternidade de Deus ? Certas pessoas e não são poucas, revoltaram-se contra Deus, acusam-no ou lhe negam a existência. Não podem compreender que se Deus existe, Ele possa agüentar a visão de tantas injustiças.

O problema não é novo. É de todos os tempos. Já forneceu o tema do livro de Jó, um dos momentos culminantes da literatura universal, porque coloca a questão de Deus. É fácil comentar os atributos divinos na tranqüilidade das cátedras de filosofia ou na paz dos conventos. Todos esses comentários permanecem superficiais porque não tocam na realidade. Não enfrentam o verdadeiro problema: o problema de Jó.

Tal problema não tem resposta. A resposta seria o silêncio de Jó. No entanto, fala-se de Deus como Pai. Por isso queríamos mudar a pergunta. Em lugar de perguntar “como falar de Deus Pai?” a pergunta mais adequada é “Quem pode falar de Deus Pai neste mundo em que estamos”? Quem pode falar com autenticidade sem merecer a acusação de ser um inconsciente ou um cínico ? 

Muitos discursos religiosos e piedosos são cínicos porque nem enxergam as pessoas as quais se dirigem: nem estão conscientes da sua situação privilegiada, nem aceitam reconhecer os sofrimentos do interlocutor.

Quem tem o direito de falar de Deus Pai no mundos dos excluídos ? Somente quem compartilha a vida deles, as provações deles, a angústia deles.

Por isso é impossível, ilícito, inaceitável falar de Deus Pai numa situação de poder. O poderoso não pode falar em Deus Pai sem ser cínico. O ditador não pode falar em Deus Pai sem cinismo, cinismo que experimentamos na América latina no tempo das ditaduras militares ou por parte de ditadores assassinos que falam de Deus, invocam a Deus e se legitimavam em nome de Deus. O rico não pode falar de paternidade de Deus para o pobre. O vencedor não pode falar de Deus Pai para o vencido. Os excluídos são os vencidos da vida.

Por que será que a imensa maioria dos textos litúrgicos nossos, redigidos entre o século IV e o século XVI não dirigem a oração para o Pai e sim para o “Senhor todo-poderoso”? Dizem assim “Deus todo poderoso e eterno”. Trata-se de uma desobediência formal à ordem de Jesus que mandou rezar invocando a Deus com o nome de Pai. Jesus ensinou assim: dizei, “Pai Nosso”.

É verdade que a Igreja conservou a fórmula do “Pai nosso”. Era impossível apagar essa página do evangelho. Porém, fora dessa fórmula, quase sempre diz “Deus eterno e todo-poderoso”.

Por acaso não foi por que o clero sentia que era impossível falar no Pai desde a posição de privilégio, riqueza e poder que ocupava ? A liturgia da cristandade foi expressão da imensa riqueza do clero e dos religiosos. Como falar do Pai no esplendor das catedrais e das igrejas abaciais do tempo ? Como falar do Pai sendo revestido de paramentos litúrgicos de preço altíssimo, manipulando objetos litúrgicos de ouro e prata, dentro de um ambiente de imagens cobertas de pedras preciosas e de pérolas ? Tudo era sinal de poder, riqueza, força, dominação. Tudo isso era atribuído a Deus, mas não deixava de ser reservado a uma classe privilegiada. Nesse contexto a fórmula que se impõe era “Deus eterno e todo-poderoso”. Não havia lugar para o Pai. Instintivamente os autores dos textos litúrgicos sentiram a impossibilidade.

Quando as liturgias celebravam as conquistas, as vitórias nas batalhas, a destruição de povos considerados inimigos de Deus, como falar do Pai ? Nas missas que celebravam a destruição dos índios, a repressão das revoltas de escravos, pode-se falar do Pai. Pode-se agradecer ao Pai o extermínio dos índios, a expulsão dos judeus, a destruição traiçoeira do reino muçulmano de Granada ? Somente se podia invocar o “Senhor Deus eterno e todo-poderoso” de quem se pensava que tinha manifestado o poder do seu braço. Esse título de Pai tinha que ser reprimido: A Igreja tinha que legitimar a conquista e a dominação, não podia invocar o amor do Pai, mas apenas a ira do Deus eterno e todo-poderoso ofendido pela incredulidade dos povos pagãos.

Os católicos foram instruídos pela liturgia, pelo modo de falar dos padres. Não é de estranhar que poucos dirigem a sua oração para o Pai. Na vida de cada dia invocam o “Senhor eterno e todo-poderoso”. Já que esse Deus é muito distante, preferem invocar o Sagrado Coração de Jesus  ou Nossa Senhora ornada de todos os seus atributos. As devoções populares foram o substituto de Deus Pai.

Os próprios documentos do magistério usam pouco o nome do “Pai”. Esse nome de Deus está praticamente ausente dos textos conciliares durante toda a idade média, em Trento e ainda nos textos do Vaticano I. Assim, por exemplo, a Constituição Dei Filius do Vaticano I somente conhece o Deus todo-poderoso. Não conhece o Pai. Deus está sempre associado a atributos de poder: força, autoridade. Deus castiga: assim manifesta-se o seu poder. Deus rebaixa a arrogância dos que não se submetem a ele.

Vaticano II inaugurou uma nova fase da história ao adotar a linguagem da Trindade. Mesmo assim, muitas vezes, ainda usa as fórmulas tradicionais em lugar de falar do Pai. 

Se a Igreja se define pelo poder e se situa no poder, é normal que Deus seja visto também como poder. A partir de tal teologia, explica-se porque no Ocidente durante pelo menos 15 séculos a Igreja praticou como base fundamental do seu agir a pastoral do medo. Para manter toda a população batizada dentro do redil, na obediência e na submissão a Igreja inculcou o medo. Para reprimir as heresias ou as suspeitas de heresias ou as possibilidades de heresias, a Igreja inspirou o medo. Para obrigar os fiéis a praticar a moral oficial católica a Igreja inculcou o medo. Para conseguir a submissão aos sacramentos, a observância da missa dominical, da confissão e comunhão anual, a Igreja pregou o medo. O grande argumento dos pregadores foi o medo: medo do pecado, medo do castigo já neste mundo e sobretudo no inferno .

 A pastoral do medo prevaleceu até as vésperas de Vaticano  II e ainda se mantém em certos Institutos particularmente fechados em que a fidelidade dos membros se consegue pelo medo , sobretudo em Instituições femininas já que as mulheres foram duas vezes vítimas da pastoral do medo: primeiro como mulheres e depois como possíveis pecadoras.

Dentro da pastoral do medo não havia lugar para o Pai. Como o Inquisidor, podia referir-se ao Pai quando torturava os suspeitos de heresia para que confessassem o seu crime. De alguma maneira o leigo era sempre tratado como um hereje potencial. Havia que figiar sempre e nunca relaxar a figilância. Falava-se do Deus de justiça, ciumento da sua autoridade, que não tolerava que sua honra fique ofendida. A heresia era a maior ofensa, um crime de lesa majestade. Invocava-se o Deus eterno e todo-poderoso.

Por conseguinte, a história ensina que a Igreja não consegue falar do Pai quando está numa situação de poder. Desde o poder ela invoca o Deus eterno e todo-poderoso. Este afirma a sua justiça de tal modo que o pecador se sente esmagado e deve pedir piedade, compaixão, perdão.

 

Então, quem pode falar do Pai ? Em primeiro lugar, Jesus. No Antigo Testamente ninguém se atreve a tratar a Deus de Pai: nem os profetas, nem os reis, nem os sacerdotes, nem os sábios. Às vezes fazem uma leve comparação, mas a oração que Jesus aprendeu quando era criança não era oração dirigida ao Pai. A invocação ao Pai é criação dele. Criou esse modo de falar para Deus e procurou transmiti-lo aos discípulos. Até agora não conseguiu salvo em casos excepcionais. Não desanima. Pode ser que no início do terceiro milênio os cristãos se convertam e comecem a adotar o modo de orar que Jesus quis ensinar. Nunca é tarde demais, nem sequer depois de 2000 anos.

Jesus pode porque é pobre, fraco, vulnerável. Jesus não mostra os atributos de poder que eram comuns no seu tempo.

Jesus compartilha a vida sofrida dos pobres do seu tempo, os camponeses. Conheceu a fome, a sede, a falta de casa, as humilhações dos grandes, o sentimento de impotência diante das injustiças. Os milagres não lhe tiram o sentimento da sua própria fraqueza, porque são atos do Pai, que intervêm somente em certas circunstâncias. 

Jesus conheceu os problemas de Jó. Conheceu-os na sua vizinhança e por isso sentiu solidariedade com os excluídos do seu país. Ele pôde falar dos lírios do campo e dos passarinhos para um povo que tantas vezes passava necessidade. Pôde falar porque ele próprio compartilhava as mesmas necessidades. O seu discurso do Pai podia surpreender, mas não escandalizar a não ser os ricos. Tinha credibilidade porque estava no meio dos pobres como um deles. Quando expressa a sua fé no Pai apesar de tudo o que se vê, apesar de tantos sofrimentos, é escutado pelos pobres porque sabem que essa fé corresponde a uma vivência profunda. Além disso, ele manifesta sinais de compaixão pelas dores do seu povo. Põe à disposição deles tudo o que pode. O seu próprio comportamento confere credibilidade ao seu discurso.

Na cruz, Jesus foi até a extremidade da solidariedade com os oprimidos e os excluídos. Ali foi excluído pelas autoridades do seu povo e pelo medo do povo. Para todas as gerações seguintes, a cruz foi, ainda é e será o sinal da credibilidade. Jesus pode falar do Pai porque fala desde a cruz. Fala apesar do sentimento de abandono que experimenta até o fundo da alma. Se pode invocar o Pai nesta extremidade, todos os pobres o podem também. Jesus estava na noite total. Por isso os seres humanos que também vivem na noite total, podem identificar-se com o seu apelo ao Pai e com o seu fundo de confiança. Confiam em que a noite obscura não seja a última palavra e que o Pai se revelará na luz do dia!

 

Gustavo Gutierrez escreveu um pequeno comentário do livro de Jó aplicado à situação dos povos latino-americanos . Jó perdeu tudo e não entende por que. Não aceita reconhecer que a culpa seja dele e que a sua miséria seja o castigo dos seus pecados. Também não se revolta contra Deus. Não fala mal de Deus. Está sem poder pensar nada. Mas a fé permanece. Ele aguarda o dia da justiça. Está na hora das trevas e aguarda a volta do dia.

Desde a conquista, os povos indígenas estão na noite obscura. Não entendem o que aconteceu, porque perderam tudo o que tinham. Os conquistadores acusam-nos de ser eles mesmos culpados da sua miséria. Denunciam-lhes os vícios, rejeitam-nos na exclusão total. Ora hoje em dia não são somente os índios que estão na noite obscura, mas todos os pobres, dois terços da população latino-americana.

Chegou a hora das trevas . No presente momento não há nenhum sinal visível de esperança para os pobres. Todas as leis, as disposições do Estado, as políticas econômicas fazem com que cada ano os pobres fiquem mais distantes dos privilegiados. Jamais uma lei é votada para favorecer os pobres. Aos pobres se lhes explica que devem sacrificar-se pelo bem da nação. Porém, nem os bancos, nem as grandes empresas jamais devem sacrificar-se e os executivos ganham mais cada ano, aumentam a porção de riqueza que tiram das mãos dos trabalhadores.

No entanto, como Jó, os povos continuam acreditando no Pai. Continuam esperando uma mudança, uma libertação. Não falam mal de Deus. Não blasfemam. Esperam contra toda esperança.

Quem pode falar-lhes do Pai ? Quem pode falar da sua fé sem cinismo ?

Somente os que se tornam semelhantes, participam da mesma condição dos excluídos e os que se compadecem. Jesus deixa-se comover pelos sofrimentos do povo pobre. Cura doentes, levanta paralíticos. Quem luta ao lado dos pobres, quem os ajuda a sobreviver ou melhor, quando é possível, a levantar-se da sua miséria, pode falar do Pai porque o povo fala. Podem compartilhar também a fé e a esperança dos excluídos. Quem participa dos sofrimentos, pode também participar da sua fé e da sua esperança.

Nem todos os pobres mantêm a fé no Pai. Entre eles há pessoas que não agüentam mais e perderam toda esperança. Vivem sem esperança. Deixam de pensar no futuro e tomam a vida como um fardo que precisam carregar sem que tenha sentido. Tornaram-se também cínicos.

Há jovens que buscam refúgio na violência como única maneira de afirmar sua existência num mundo que os excluí. Outros caem na bebida, nas drogas para deixar de ver, deixar de ouvir e deixar de pensar. Não esperam mais nada da vida. Sentem como esses adolescentes que dizem: sei que não vou viver e vão me matar. Então, parece que infringir todas as normas é a última maneira de protestar contra a vida. Para eles não existe nenhum Pai, assim como não houve pai na terra, não há Pai no céu.

É verdade também que outros lutam para salvar a própria dignidade e a dignidade dos seus irmãos, mas não aceitam o Pai dos céus. Por que? O Vaticano II deu a respostas. Somente conheceram a religião dos dominadores, o Deus dos grandes e dos fortes, o Deus que legitima todas as opressões. Rejeitam esse Deus e não conhecem outro. Desconfiam de antemão diante de qualquer mensagem religiosa. Na realidade são movidos pelo Pai cujo nome rejeitam. Não têm nome para designar o Deus Pai que seguem porque todos os nomes do vocabulários já foram contaminados.

A grande maioria, porém, continua confiando no Pai apesar de tudo. Sabem fazer a distinção entre o Pai e os que se dizem seus representantes na terra. E porque eles falam do Pai nós também podemos falar. De modo mais discreto porque bem sabemos que não somos os crentes mais firmes, que a nossa fé não foi provada como a fé deles. Não para ensinar, mas para apoiar. Quando o Pai permanece silencioso e permite tantas injustiças, tantas opressões, tanta arrogância dos vencedores, tanta miséria material e moral, nosso discurso precisa ser muito discreto, sem ênfase, o contrário dos discursos dos supostos amigos de Jó. Mais do que as palavras falam os gestos de solidariedade. Estes gestos são sinais do Pai e lembram-lhes a presença invisível.

Os discursos de propaganda são indecentes. Certas gerações suscitam desconfiança, por exemplo os discursos de propaganda da Igreja Universal. Manifesta-se aqui como se pode manipular a fé dos simples, substituir a esperança pelas ilusões e explorar financeiramente o desconcerto de pessoas esmagadas pelos fracassos da vida. Os seus discursos são indecentes porque não respeitam a dignidade humana dos que sofrem.

Nem todos têm o direito de falar do Pai. Alguns usurpam um direito que não lhes corresponde. Também diante desta exploração do sentimento religioso, o Pai permanece silencioso.

Depois da Segunda Guerra Mundial, quando apareceu todo o horror do Holocausto, levantou-se uma questão: pode-se falar ainda de Deus depois do Holocausto ? Se Deus é Pai, como pôde assistir impassível a tal monstruosidade ? Que valor podemos atribuir a paternidade de Deus em tal situação ? 

Não somente o silêncio Deus. Há também o silêncio das religiões, o silêncio da Igreja católica de modo particular. Quem ficou calado nessa circunstância comm que direito pode ainda falar de Deus ? Depois de ter mostrado tal ausência de fé, tanto medo, que valor pode ter ainda o seu testemunho ?

Onde estava o Pai durante o Holocausto ? Há uma só resposta que não é cínica: Deus estava nas câmaras de gás, morrendo com os milhões queimados pelos gases venenosos. Ora, se Deus estava ali, como explicar que as pessoas religiosas do mundo não o tenham reconhecido ? Elas que tanto falam de Deus, como aceitar que não o reconheçam na sua manifestação terrestre ? Que valor pode ter uma religião que esconde a Deus em lugar de mostrá-lo ?

Estas foram as perguntas. Claro está que nunca receberam nem receberão respostas plenamente satisfatórias.

Disseram: pode-se falar em Deus depois de Auschwitz, porque em Auschwitz também Deus foi invocado. Muitos judeus continuaram como Jó, acreditando em Deus, mantiveram sua fé inabalável apesar do silêncio. Muitos entregaram sua vida com confiança além de toda esperança .

Escutando a voz dos milhões de sacrificados, aceitando o seu testemunho, podemos acompanhar, redizer o que disseram numa situação extrema que nunca conheceremos. Porém nunca mais poderemos falar em Deus como antes. Sobretudo sabendo que durante séculos os cristãos alimentaram animosidade, medo, raiva, ódio para com os judeus, o que, sem dúvida preparou o Holocausto. Os cristãos não se sentiram solidários quando vinham prender os judeus por serem judeus e mais nada. Por isso falaremos de Deus na consciência de nossa própria incredulidade, por não termos falado quando devíamos: falando em Deus com a consciência de quem traiu.

Aqui no Brasil, poderíamos dizer: não temos nada a ver com o Holocausto. Não estávamos aí. A maioria dirá: nem sequer existíamos naquele tempo. É verdade. No entanto, o Holocausto é um sinal, um revelador. O Holocausto mostra as extremidades que a humanidade é capaz de alcançar. Porém, assim despertados por esse sinal, podemos enxergar melhor outras realidades que também existem e muito mais perto de nós. Hoje mesmo os governos de tantas nações manipulados pelos grandes poderes econômicos mantêm bilhões de seres humanos numa situação de exclusão que neste final de século XX alcança situações extremas. O mundo não quer ver. Vê de longe, pela televisão de vez em quando. Vê sem ver, vê com uma emoção rápida e rapidamente esquecida porque se trata apenas de um elemento menor dentro da abundância de imagens oferecidas pela mídia.

Deixar os miseráveis na sua miséria não provoca um choque tão forte como o Holocauto, mas a realidade objetiva não é tão diferente. Como falar de Deus Pai quando o seu Filho é crucificado todos os dias ao nosso lado ?

O Holocausto criou uma nova consciência pelo menos numa minoria da humanidade: a consciência de que também os povos cristãos podem matar a Deus crucificando o seu Filho, que também os cristãos colaboram com o silêncio, a covardia. Outrora a consciência cristã aceitou a escravidão. O Papa Leão XIII condenou a escravidão somente quando o último país católico tinha decretado a abolição. De modo algum a hierarquia da Igreja quis adiantar-se. A consciência moral despertou mais empurrada pelo exemplo de governos do que pelo evangelho. Não adianta multiplicar os exemplos de fatos semelhantes. Por isso, uma nova consciência começou a manifestar-se: começou mas apenas começou. Há ainda sinais contrários.

 

No presente momento estamos testemunhando uma avalanche de religião burguesa. A religião burguesa é religião a serviço do bem-estar individual: bem-estar físico e bem-estar psicológico. No Brasil nunca se falou tanto em Deus, nunca houve tanta profusão de símbolos religiosos, nem mesmo na idade barroca. O Nordeste é campeão da religiosidade: será para fazer esquecer totalmente a realidade objetiva ?

Para a religião burguesa, o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão a serviço da satisfação. Constituem eflúvios de forças favoráveis. Deus é aquele que acalma, tranqüiliza, desculpabiliza, infunde sentimentos bonitos, afasta o medo, a tristeza, enche o coração de amor, felicidade, reconciliação com tudo e com todos. Graças a esse Deus, os homens e as mulheres sentem-se felizes, longe dos problemas da vida, gozando, respirando alegria. Essa religião é sempre alegre e condena todos os sentimentos tristes. 

A religião burguesa pretende estabelecer um ambiente de simpatia universal, afasta a consciência de conflitos: proclama a abolição de todos os conflitos: todos banhados num banho de felicidade.

Para esse fim, a religião oferece terapias, cultos, orações, exercícios corporais ou mentais. Oferece boas palavras sedutoras, gestos de amor, símbolos de paz e reconciliação. Como Pai e Mãe Deus aceita tudo, perdoa tudo e manifesta-se na prosperidade. Jesus é um amigo sempre compreensivo, sempre disponível, que nunca se queixa, nunca reclama, o amigo sempre serviçal que nunca pede nada. Pode-se pedir-lhe tudo, ele nunca exige retribuição. O Espírito Santo é essa força, essa ambientação que enche o corações de alegria.

A religião burguesa  não contempla os pobres. A pobreza é um espetáculo deprimente. É melhor nem pensar nela pra não entrar em depressão. Aos pobres se lhes diz que Deus é um Pai que lhes dará riqueza e prosperidade se são religiosos, bem comportados, trabalhadores e pacientes. Para eles há histórias que narram a maravilhosa ascensão social de pessoas pobres. Os livros de Paulo Coelho mostrarão como poderes benéficos estão sempre atuando: podem confiar que nada vai acontecer. Não tenham medo ! As religiões novas como a Nova Era anunciam que já vem a idade do Aquário e todos os problemas vão desaparecer não pela ação dos homens, mas por uma feliz configuração de algumas estrelas. A religião burguesa suprime o mal negando-o simplesmente. Para os que têm, não é tão difícil manter a ilusão. Para os que não têm, quanto tempo durará a ilusão ?

Quem mais fala em Deus Pai é quem tem menos direito de falar nele. A burguesia moderna era incrédula. Era racionalista e considerava a religião uma vivência pré-racional. A nova burguesia tornou-se mais radicalmente capitalista. Não se preocupa pela razão e sim pelo dinheiro. Descobriu que a religião tem valor comercial. Pode-se vender religião e fazer dinheiro e muito dinheiro com a religião. Hoje em dia, o ateísmo não rende mais. Mas religião rende. Oferece mercadorias apreciadas no mercado: o Pai é uma boa mercadoria destinada a render muito. Essa Pai é como um Papai Noel, cheio de bondade, indulgente, terno, que não faz nenhum reparo ao egoísmo, ao individualismo. Pelo contrário, excita o desejo de gozar, fomenta o consumismo religioso. O Pai reveste-se de atributos dos pais permissivos, inventados pela civilização norte-americana que os espalhou pelo mundo inteiro, começando pelas burguesias.

A religião burguesa promete aos pobres o acesso à satisfação dos desejos e mostra-lhes as partas abertas do consumismo. Na prática esses despertar alimenta as loterias, o jogo do bicho, todas os concursos. Os pobres sabem muito bem que pelo trabalho nunca se saiu da pobreza. Somente pelo jogo. Ou pelo roubo, pelas drogas, pela ilegalidade. A religião burguesa que alimenta o desejo de consumismo leva a esses recursos na sociedade paralela.

Os milagres do Pai fazem com que a gente ganhe na loteria. A loteria não basta por si só: a loteria com muita oração, muita fé, muita confiança oferece muito mais esperança. A religião do Pai reforça o jogo porque se pensa que o Pai intervém nos jogos para fazer triunfar os seus favoritos. Quem tem muita confiança ganha. Então é bom não esquecer-se de agradecer, pensando na próxima vez.

Há pobres que se deixam iludir. Eis a frivolidade dos discursos religiosos privilegiados pela burguesia.

Lembremo-nos: onde está o Pai na atualidade ? O que significa o seu silêncio ? Qual é o registro decente, autêntico para falar dele ? A resposta é: falar do Pai como Jesus, com Jesus, no mesmo lugar, na mesma situação.

 

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