Genildo Santana
Um dos teólogos que tocam no tema da violência é Jon Sobriño, de El Salvador, mais precisamente no livro, Jesus, o Libertador, lançado no Brasil pela Vozes, na Coleção Teologia e Libertação, em 1996. Nossa reflexão tem esse livro por base. Elenca o autor várias formas de violências que afligem a América Latina e as põe em duas categorias básicas: Violência Gerante e Violência Gerada. A violência gerante, sem amparo ético, embora com amparo jurídico, causa a violência gerada.
No Brasil atual, nós sofremos vários tipos de violência gerante que findam por tirar a nossa paz. Algumas são visíveis, outras, invisíveis. Algumas são barulhentas, outras, são silenciosas. A primeira e pior das violências é a violência institucionalizada. Ela é a violência primária e originária de dois outros tipos de violência: O terrorismo de Estado e a insurreição.
A violência institucionalizada é a violência patrocinada pelo Estado e que pode ser chamada também de violência silenciosa. É quando o Estado reprime a voz do cidadão. É quando o Estado usa o seu braço armado que é a polícia para reprimir protestos e passeatas contra gestores corruptos, contra políticas imorais, genocidas. É quando os “líderes políticos” (tenho dificuldade em vê-los como líderes e como políticos) brincam com o erário público. Ela se manifesta ainda quando os governantes desrespeitam eleitores, como é o caso dos auxílios-privilégios dados a deputados, senadores, gestores. É aí que a corrupção ganha tons de constitucionalidade.
Esta violência acontece diariamente, não só no Brasil, mas no mundo todo. Esta violência institucionalizada é chamada também de violência gerante, por ser geradora de outras violências. Esta violência gerante não tem legitimidade ética, embora tenha erroneamente amparo jurídico.
A violência silenciosa acontece quando povos inteiros e regiões ou países são condenados à pobreza e à morte. Foi o que aconteceu com a África e com o Nordeste brasileiro. Foi o que aconteceu com os negros e com os índios. É o que acontece na atual conjuntura nacional.
A violência silenciosa dá-se, ainda, quando a religião legitima este poder. E essa violência hoje se nota nas igrejas evangélicas e setores da Igreja Católica que apoiam o atual governo. Ela se manifesta, também, quando o poder público patrocina culturas que não enaltecem o ser humano, sexualizam nossos infantes, sem educá-los para a vivência da sexualidade e não dão a devida dignidade que o ser humano merece. Bonito e mais que verdadeiro foi o protesto de Antônio de Catarina, poeta popular de São José do Egito, em Pernambuco, quando exibiu no seu carro esta estrofe:
O que mais me arrepia
É ouvir som nas alturas,
Desse forró que é brega
Exterminando culturas
E saber que o patrocínio
Vem das nossas prefeituras.
A violência silenciosa dá-se no professor que ministra mal sua aula porque não ganha um salário mais digno. Também em quem não paga um salário digno ao professor: violência gerada e violência gerante na vida diária. Acontece no motorista que ultrapassa o sinal vermelho. Naquela banda musical que faz zoada e diz que é música (e nessa parafernália eletrônica que invadiu a nação e os nossos ouvidos). Quando um padre vai abençoar carteiras de trabalho e não mostra que o desemprego é causado por políticas negativas.
A violência gerada possui amparo jurídico e ético. No dizer do Santo Padre, Papa Paulo VI, na POPULORUM PROGRESSIO: “Ser libertos da miséria, encontrar com mais segurança a subsistência, a saúde, um emprego estável; ter maior participação nas responsabilidades, excluindo qualquer opressão e situação que ofendam a sua dignidade de homens; ter maior instrução; numa palavra, realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais: tal é a aspiração dos homens de hoje, quando um grande número dentre eles está condenado a viver em condições que tornam ilusório este legítimo desejo.” (PP. 06). Nessa ótica, a história nos mostra que em todos os países da América Latina surgiram grupos de guerrilheiros que praticaram a violência gerada, que lutaram contra a colonização, contra tiranias e ditaduras que impediam o progresso dos povos, além de negar-lhes a vida, das mais variadas formas.
Os mais conhecidos são: Sandinistas na Nicarágua, Tupac Amaru no Perú, as FARC na Colômbia, o EZLN do subcomandante Marcos no México, a ALN no Brasil, o Sendero Luminoso, também no Perú, o Tupamaro, no Uruguai, do ex-presidente José Mugica, o Movimento 26 de Julho de Fidel Castro, Raúl Castro e Chê Guevara. Muitos homens de Deus foram pra luta apoiados nesta ótica: Padre Camilo Torres na Colômbia, Padre Rutílio Grande em El Salvador, Padre Camilo Cienfuego em Cuba, Padre Ezequiel Ramim, em Rondônia, Padre Jósimo Morais Tavares, no Maranhão, só para citar alguns. Dia 16 de Novembro de 1989, a Igreja Latino Americana, viu, aterrorizada, o assassinato dos seis jesuítas da UCA (Universidade Centro América) e as duas mulheres em El Salvador. Foram assassinados: Ignácio Ellacuria, Segundo Montes, Ignácio Martin Baró, Juan Ramom Moreno, Armando Lopes, Joaquim López y Lópes, todos Jesuítas e teólogos comprometidos com os pobres de El Salvador. Além dos Jesuítas, foram assassinadas Julia Elba Ramos e sua filha Celina Ramos. Foram mortos porque, além de católicos, foram cristãos. Assumiram um compromisso real com o povo. Incomodaram capitalistas, egoístas, impérios, falsos cristãos, desses que vão à missa e depois vão apoiar políticas corruptas. Os Jesuítas hoje fazem parte do martirológio latino-americano. Servem de exemplo pra nós. Essa história foi contada em outro livro de Jon Sobriño, intitulado Os Seis Jesuítas Mártires de El Salvador, lançado duas semanas após os assassinatos.
Responsável pela Diocese de Afogados da Ingazeira, Dom Francisco A. de Mesquita Filho, defendeu, em Rede Nacional de Televisão, na Tv Bandeirantes, os saques praticados pelos sertanejos nos períodos de seca. Dizia dom Francisco, que era também advogado: “Conheço a Lei de Deus e a Lei dos Homens e a Lei de Deus está acima da Lei dos Homens. Pior crime é morrer de fome.” (Para a diocese, hoje, nem parece que existiu um homem como Dom Francisco). Foi nesta mentalidade que padres da Nicarágua apoiaram a revolução sandinista, que os frades dominicanos apoiaram a luta armada de Carlos Marighella contra a ditadura militar brasileira.
Muitos cristãos e setores conservadores da Igreja Católica tem dificuldade em entender estas posturas. Esquecem que somos seguidores de um rebelde, um contestador da ordem social imposta pelos Romanos, de um preso político, como sempre diz Frei Betto. Os movimentos reivindicatórios, ONG’S, ESTUDANTES, MST, GREENPEACE são tachados de violentos e criticados todos os dias pelas emissoras que compactuam com a violência institucionalizada, gerante, primária do Estado.
Falam até em dis-criminalização (tornar crime) dos movimentos estudantis e sociais. As campanhas eleitorais que temos a cada dois anos são das maiores violências praticadas contra o povo. Sejam eleições federais, estaduais ou municipais. O povo é, literalmente, violentado pelo Estado e pelo poder econômico. Como tem ares constitucionais, é comum não tratarem–nas como violências.
Há uma cegueira comum que não permite fazer a conexão entre o discurso do Presidente dos E.U.A. e o choro de uma criança com fome na África, entre uma garrafa de coca-cola vendida no Brasil e a morte de inocentes no Afeganistão, entre os banquetes presidenciais e os desabamentos de morros no Rio de Janeiro. Findamos por banalizar a violência e tratá-la como comum.
Atribuímos à fatalidade, ao destino. O mundo capitalista violentou as nossas consciências e os nossos sentimentos. Anestesia a nossa indignação com a política do Pão e Circo, com shows e com jogos de futebol e nos diz que é pra nos preocuparmos mais com a vinda ou não de Neymar da Europa do que com a sociedade. Somos conduzidos a uma apatia e aqueles que não se encaixam nessa mentalidade estão deixando de viver, não estão aproveitando a vida. Lembro o ensinamento de Cristo reverberado por Frei Betto e Chê Guevara: “-É melhor morrer do que perder a vida.”
Nunca a humanidade foi tão tecnológica e tão primitiva. Vivemos o que se chama de Barbárie Intelectualizada. Leonardo Boff chamou de Homo demens. Progredimos na técnica e na riqueza, mas não evoluímos enquanto seres humanos. Fomos e somos capazes de atos sublimes de solidariedade, no entanto, em sentido inverso, nossa capacidade de autodestruição parece não conhecer limites.
O século que conheceu Mahatma Gandhi também conheceu Josef Mengele. O país que aplaudiu e venerou Dom Helder sofreu no sadismo do delegado Fleury. Herdamos do século XX os relatos de duas Guerras Mundiais. A Argentina cantou com Mercedes Soza e chorou com Pinochet. Falar de paz em meio a tanta violência é quase uma afronta: QUASE!
Atualmente, a violência gerante, institucionalizada atinge os brasileiros. Até quando? Quando viremos irromper as violências geradas, que também causam mal, apesar da sua legitimidade?
A igreja Católica não pode perder a Profecia. O profetismo é marca da Igreja Latino-americana. O profeta anuncia e denuncia. Anuncia as maravilhas do Reino de Deus e denuncia as forças do Anti-Reino. Os profetas da América Latina nos ensinaram o caminho para a América Latina.
Vale, nesse momento, aquele lembrete de Jon Sobriño, comentando a morte de Dom Oscar Romero, no livro Oscar Romero: Profeta e Mártir da Libertação: “O profeta e Bispo Romero levantou com sua morte, as duas mais sérias questões para a Igreja:
1 – A Igreja crê em Deus?
2 – Em qual Deus acredita a Igreja?”