Genildo Santana
Assim se expressou Dom Pedro Casaldáliga, Bispo emérito de São Félix do Araguaia, no Estado do Mato Grosso, apud João Batista Libâneo, no livro Deus e os homens: os seus caminhos:
Queria lembrar-vos também, com muita emoção, que deveis recuperar a memória dos mártires, dos mortos, dos desaparecidos. Por amor de deus, não esqueçamos os nossos mártires. Um povo, uma igreja que esquece seus mártires, não merece sobreviver. (CASALDÁLIGA apud LIBÂNEO, 1994, p. 81-82).
A igreja católica e o próprio cristianismo nasceram com o sangue dos mártires. Os três primeiros séculos da era cristã, quando a igreja estava em seu nascedouro, contam milhares de mártires. O sangue jorrado dos que morreram regou a fé dos que ficaram. Eram martirizados todos aqueles que não se tornaram apóstatas, ou seja, não renegavam a fé em cristo.
Dado inquestionável na história da fé é que essa fé foi erguida sobre o sangue dos mártires. De Santo Estevão a Joana D’arc, de Savonarolla a Ignácio Ellacuria, a história da igreja é uma história de mártires. Mártires feitos também pela própria igreja, como foi o caso de Savonarolla. Mártires eclesiásticos como Dom Oscar Romero e mártires leigos como Arturo Bernal, do Paraguai, morto em 08 de julho de 1976.
A profecia é uma atividade que está intimamente ligada ao martírio. Os profetas, na sua maioria, foram e são perseguidos, caluniados, torturados e houve – não raro – os que foram assassinados.
Assim também é com a igreja profética. A igreja vê a perseguição como uma confirmação real de sua encarnação na vida dos pobres, com suas lutas e suas esperanças. A igreja que não se encarna na vida dos pobres não sofre perseguição. Tampouco pode se dizer fiel ao projeto de Jesus Cristo, que já o sabemos, é implantar o Reino de Deus. Essa igreja aproxima-se mais dos palácios do que das catacumbas, é mais do templo do que da barca de Pedro.
É por isso que os ministros desse tipo de igreja – que não é único - gostam de elites, de almoçar na casa do empresário, do prefeito, aparecem nos jornais ao lado do governador ou do presidente. Ficam com pregações abstratas, homilias vazias de conteúdo, para não se “complicar” com os poderosos da sua paróquia ou diocese, do seu feudo. Não aprofundam críticas, não fazem análises de conjuntura, não apontam culpados, não denunciam as forças do anti-Reino. Outros preferem ficar cantando canções, também vazias de conteúdos. Outros preferem – o que é pior – fazer “milagres”, “curar” doentes com missas e/ou cultos de cura e libertação. Nem curam, nem libertam ninguém. Muito pelo contrário, aprisionam as pessoas numa histeria religiosa que afirma que Deus só existe se me curar de câncer.
Esse modelo de igreja vale a pena? É fiel ao projeto de Cristo?
Preferem centrar-se na liturgia e nos sacramentos e resumem o ser cristão à vivência litúrgica e/ou dos sacramentos. Há uma ideia corrente de que o que importa é ir à missa, afinal, “um Domingo sem missa é uma semana sem deus”. E essa vivência litúrgico – sacramental é desprovida de implicações na vida diária. Por isso que se vai à Missa e se explora um funcionário sem peso de consciência ou se apoia uma política cruel, desumana e se vai à missa tranquilamente.
Estes não se enquadram no perfil de uma igreja profética. Logo, também não cristianizam. Catolicizam ou protestantizam. Ludibriam os fieis. Tratam-nos como imaturos, infantes que não podem pensar por si mesmos, crianças que precisam de um guia. Não dão a formação – intelectual mesmo – necessária para que seus fieis tenham uma compreensão melhor e mais bela do tesouro que é o cristianismo.
A igreja latino-americana é uma igreja de mártires.
Na América Latina houve um martírio estrutural, anônimo, coletivo e cristão-ocidental, na segunda metade do século XX, quando as ditaduras davam as cartas nessa parte do continente. A perseguição que se instalou não foi fruto só da loucura de alguns generais, comandantes ou de grupos desequilibrados. Foi uma resposta de uma sociedade, de um estilo de vida que se sentiu ameaçado pelos cristãos e que, para defender seus privilégios, foi radicalmente violenta.
Uma característica dessa perseguição é que ela foi realizada por “cristãos” que se consideravam defensores da “civilização ocidental”. Ainda hoje há esses “cristãos” nas naves das nossas igrejas. Piedosos, carismáticos, sorridentes, de voz mansa, de terço na mão, prontos a jogar na “fogueira” o primeiro que questionar seu político, seu comércio, sua exploração, seu partido, a sociedade capitalista, seu vigário, SEU PRESIDENTE..
Estavam – e estão – em jogo, visões diferentes do Evangelho, de modelos eclesiais, de cristologias. A repressão que aconteceu aos cristãos da América Latina foi de ordem econômica, política, militar e...teológica.
Após o concílio Vaticano II, a igreja latino-americana atualizou as ideias do concílio em duas Conferências Episcopais: Medellin, em 1968 e Puebla, em 1979. Em Medellin, na Colômbia, os bispos denunciaram as estruturas de pecado e fizeram uma Opção Preferencial pelos Pobres. Em Puebla, no México, confirmaram Medellin e fizeram uma reflexão a partir da fome e da situação de prostração em que viviam os pobres.
Padres e Bispos, frades e freiras, catequistas leigos foram assumindo compromissos com o povo pobre da América Latina, a Pátria Grande. Pátria Grande é um termo que designa toda a América Latina. Em 2007 foi publicada uma Enciclopédia Latino – Americana, feita especialmente para os brasileiros, visto que não nos sentimos Latino – Americanos. Esse compromisso levou-os a denunciar as injustiças cometidas pelos governantes, empresários, pelas ditaduras militares. Essa denúncia, seguida do anúncio do Reino de Deus, fez surgir uma perseguição estrutural em toda a América Latina. A igreja latino-americana tornou-se uma igreja de mártires, como só se tinha visto no início do cristianismo. Proliferaram testemunhos de homens e mulheres, católicos e protestantes, que deram sua vida, literalmente, pela causa do Reino de Deus. Muitos desses testemunhos foram coletados e compõem hoje o Martirológio latino-americano.
Na celebração pelos 03 anos de martírio de Dom Oscar Romero, em Santa Maria do Transtevere, em Roma, o ex-secretário do bispo-mártir assim se pronunciou: “Venho como missionário de uma igreja viva, à igreja em missão de Roma. Venho de uma igreja-mártir, hoje, à igreja dos mártires de ontem.”
Esse compromisso com cristo e com os pobres levou o padre Camilo Torres, na Colômbia a ir pra luta armada, em favor dos pobres. Levou os Dominicanos – Frei Betto, Frei Tito, Frei Ivo Lesbaupan e Frei Fernando de Brito – a apoiarem a luta armada de Carlos Marighella, no Brasil, em finais dos anos 60. Levou Dom Pedro Casaldáliga a defender os índios do Mato Grosso. Levou Dom Oscar Romero – um bispo tido como conservador, de bibliotecas – a assumir a luta em prol dos pobres de El Salvador. Levou Dom Samuel Ruiz, Bispo do Estado de Chiapas, no México, a lutar em defesa dos pobres, apoiando, inclusive, o EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) do Subcomandante Marcos. Levou Dom Leônidas Proaño, no Equador, a defender os indígenas. Assim como levou padre Ezequiel Ramim a defender os agricultores da exploração e perseguição do agro-negócio e da UDR (União Democrática Ruralista), na diocese de Jí-Paraná, no episcopado de Dom Antônio Possamai, em Rondônia. Foi nessa ótica de compromisso profético com os pobres, que padre Jósimo Morais Tavares, defendeu os agricultores no conflitivo bico do papagaio, em Imperatriz, no Maranhão. Foi nessa visão e nessa espiritualidade que o Bispo da diocese de Afogados da Ingazeira, em interiores de Pernambuco, Dom Francisco A. de Mesquita Filho, defendeu os saques que os sertanejos faziam nas feiras. E defendeu em rede nacional de televisão.
Todos esses - e muitos mais – sofreram as perseguições perpetradas pelas forças do anti-Reino: empresários, políticos, ditadores e até “cristãos”. Sofreram perseguições também no próprio seio da igreja católica, se constituindo nesse caso, também ela, em força do anti-Reino.
Essa igreja encarnada, profética e, por isso, cristã, foi uma igreja martirizada. O martirológio latino-americano possui uma lista imensa de testemunhos de bispos, padres, catequistas, ministras da eucaristia, animadores de comunidades, dirigentes de Cebs (Comunidades Eclesiais de Base), que foram presos, torturados, perseguidos, exilados e mortos.
Vale salientar que não fazemos uma apologia da morte. Não! Não é esse o nosso propósito, nem tampouco a meta da igreja latino-americana. A realidade é que a igreja profética, verdadeiramente cristã, traz essa dimensão martirial, necessariamente. A perseguição foi sempre sinal evidente de uma fidelidade a Jesus Cristo e ao seu evangelho. A marca da Fé em cristo tem no martírio sua realidade.
O martírio é algo que se encontra, mas que não se busca. Eis a afirmação do padre Luiz Espinal:
O povo não tem vocação de mártir. Quando o povo cai em combate, ele o faz simplesmente...não é necessário dar a vida morrendo, mas trabalhando...se um dia lhes toca dar a vida, eles o farão com a simplicidade de quem cumpre mais uma tarefa e sem gestos melodramáticos. (ESPINAL apud GUTIERREZ, 1983, p. 175).
O padre Luiz Espinal foi assassinado pouco depois de escrever estas linhas, aos 21 de Março de 1980, em La Paz, Bolívia.
Quando da morte por assassinato do padre Jósimo Morais Tavares, em Imperatriz, no Maranhão, aos 10 de maio de 1986, o monge e teólogo Marcelo Barros assim se pronunciou:
O objetivo com o qual os cristãos, desde os primeiros tempos da igreja, salientaram o martírio (testemunho) dos seus irmãos mortos ou feridos foi e é o de fortalecer a resistência dos que permanecem lutando, e chamá-los à radicalidade na caminhada, animados pelo testemunho do irmão que os antecedeu na luta. Um ponto importante e básico dessa herança, desse testemunho deixado pelos irmãos que, como Jósimo, morreram para que o povo possa viver, é realmente a defesa, o cuidado e a máxima segurança com a vida. O martírio de uns deve nos levar a fazer tudo para que outros não morram. (CPT, 1986, p. 92).
A igreja profética e, por isso, mártir, logo, também cristã, é ciente do seu destino. Ela não compactua com exploradores, ditadores, corruptos, políticos inescrupulosos, porque estes e tantos mais fazem parte das forças do anti-Reino, uma vez que essas realidades não são cristãs. Ela encara a perseguição como sendo prova da sua fidelidade a Jesus Cristo, à palavra que lhe foi confiada e que não foi calada por temores mundanos ou espertezas mundanas. Essa igreja vê, ainda, a perseguição como uma consequência lógica da sua pregação e da sua missão. Essa perseguição não é por causa das pessoas, das personalidades dessa igreja. Não significa que esses mártires sejam piores ou melhores. Significa tão só que foram fieis ao projeto de Jesus Cristo que é, digo uma vez mais, a implantação do Reino de Deus.
Significativo é o testemunho do padre-mártir, Jósimo Morais Tavares, proferido no dia 27 de abril de 1986.
Agora, quero que vocês entendam o seguinte: tudo o que está acontecendo comigo é uma consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e na defesa pelos pobres, em prol do evangelho, que me levou a assumir até às últimas consequências. (CPT, 1986, p. 18).
Caso ímpar de perseguição se deu com os Jesuítas da UCA (Universidade Centro-americana) em El Salvador. Como diz Jon Sobrino, o único que escapou da chacina, no livro Os Seis Jesuítas Mártires de El Salvador, escrito logo após a chacina da UCA:
E, além das ameaças verbais, os ataques físicos. Desde 06 de janeiro de 1976, quando explodiu a primeira bomba em nossa universidade, puseram bombas outras quinze vezes na tipografia, no centro de computação, na biblioteca, no edifício da administração. A última explodiu em 22 de julho de 1989, destruindo parcialmente a tipografia. Em nossa própria casa, a polícia entrou quatro vezes, e da última vez ali permaneceu por onze horas. em fevereiro de 1980, a casa foi fortemente metralhada à noite e em outubro desse mesmo ano foi dinamitada duas vezes. em 1983, uma nova bomba explodiu em nossa casa, dessa vez por defender o diálogo como solução mais humana e cristã para o país. (SOBRINO, 1990, p. 18).
Em El Salvador, a ditadura foi cruel. Chegou a espalhar, nos anos 80, um anúncio a toda a nação com os dizeres: “SALVE A PÁTRIA, MATE UM PADRE!”. Um dos primeiros Padres mortos foi Rutílio Grande, em 12 de Março de 1977. Isso se deu por conta da atuação da Igreja de El salvador – especialmente Dom Oscar Romero – em favor dos pobres. Era uma Igreja encarnada na vida dos pobres, logo, profética, por isso Cristã e, consequentemente, perseguida.
Os Jesuítas foram assassinados pela polícia de El Salvador. Foram assassinados: Ignácio Ellacuria, Segundo Montes, Ignácio Martin Baró, Juan Ramom Moreno, Armando Lopes, Joaquim López y Lópes, todos Jesuítas e teólogos comprometidos com os pobres de El Salvador. Além dos Jesuítas, foram assassinadas Julia Elba Ramos e sua filha Celina Ramos. Jon Sobrino só não morreu porque estava em Hua Hin, na Tailândia, ministrando um curso de cristologia. Por que mataram os jesuítas? Porque questionavam a ditadura e a política de el salvador e porque defendiam os pobres, os milhões de pobres que viviam em condições de miséria e de assassinatos diários. Diz Jon Sobrino, no mesmo livro, que mataram os jesuítas porque eles “tocaram no ídolo, ao dizer a verdade da realidade, ao analisar suas causas e propor as melhores soluções”.
A perseguição é uma nota característica da verdadeira igreja fiel ao projeto de Jesus Cristo. Não há verdadeiro anúncio do evangelho se esse mesmo evangelho não provoca a realidade. Ao provocar a realidade, ele atrai, necessariamente, sobre si, a fúria dos que tem medo de se comprometer e se converter a Jesus Cristo.
Se a realidade do anti-Reino não reage, é porque as bases do Reino de Deus não foram erguidas e se não foram erguidas é porque não houve uma verdadeira evangelização e/ou cristianização.
Mas, não basta ser só perseguido para se dizer fiel ao reino de deus. Não! Tem que saber quais são as causas da perseguição. No Sermão da Montanha, Jesus diz a causa da verdadeira perseguição: “Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem, e mentindo, disserem todo o mal contra vós, por causa de mim” (Mt 5,11).
A perseguição vem, não pela igreja profeta em si, ou pelo que ela diz, simplesmente. A perseguição vem porque a igreja profética, diz a verdade que Deus quer que seja dita, a verdade de cristo. Essa igreja profética faz o anúncio do Reino de Deus que derruba, necessariamente, as pilastras do anti-Reino. E o anti-Reino reage com violência.
Por isso, vale o alerta de Dom Pedro Casaldáliga:
“Por amor de deus, não esqueçamos os nossos mártires: um povo, uma igreja que esquece seus mártires, não merece sobreviver”.
REFERÊNCIAS:
CPT. Padre Jósimo: A Velha Violência da Nova República, 1986.
GUTIERREZ, Gustavo. Beber em Su Próprio Pozo, Lima, 1983.
LIBÂNIO, João Batista. Deus e os homens: os seus caminhos, Petrópolis, Ed. Vozes, 2ª edição, 1994.
MARINS, josé. Trevisam, Teolide M. e Chavona, Carolee. Martírio: memória perigosa na América Latina, São Paulo, Ed. Paulinas, 1984.
MESTERS, Carlos. A Missão do Povo que Sofre. Petrópolis, Ed. Vozes, 3ª edição, 1994.
ROMERO, Oscar. O Profeta dos Oprimidos da América Latina. Diário de Dom Oscar Romero. São Paulo, Ed. Paulinas. 1997.
SOBRINO, Jon. Os seis Jesuitas mártires de el salvador. São Paulo, Ed. Loyola 1990.