Eduardo Hoornaert
A Declaração Pública de Pedro Casaldáliga.
No dia 10 de outubro de 1971, o missionário espanhol Pedro Casaldáliga, Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, publica um texto que ele mesmo denomina ‘Declaração Pública’. O exemplar que possuo não tem indicação de impressora nem de editora. Há um texto anterior, escrito em setembro 1970, intitulado ‘Feudalismo e escravidão no Norte do Mato Grosso’, escrito quando Pedro ainda não era bispo.
A Declaração de 1971 não tem as características de uma Carta Pastoral tradicional. Não é dirigida a ‘fiéis’, a linguagem não é eclesiástica, o temário é igualmente ‘leigo’, não pressupõe conhecimentos ‘catequéticos’. Cada pessoa é capaz de compreender o texto e de se interessar pelo tema, sem ser cristão. Enfim, é um texto de cunho humanista. Nas primeiras trinta páginas (entre as páginas 6 e 36 de meu exemplar), depois de descrever brevemente a ‘situação geográfica’ (pp. 5-6) e o panorama social do Norte de Mato Grosso (pp. 6-11), com especial realce para ‘o latifúndio’ (pp. 12-14), o Bispo descreve longamente três categorias sociais que encontrou na região: os posseiros (pp. 15-21), os índios (pp 22-25) e os peões (pp. 26-28). Depois, ele parte para ‘juízos de valor’ acerca da administração pública em Mato Grosso: ‘injustiça na política local’ (pp. 29-30), ‘falta de assistência básica’ (pp. 31-34), ‘má distribuição administrativa’ (pp. 35-36). Finalmente conta, no item ‘nossa atuação’ (pp. 37-41), a inserção do grupo missionário, da qual faz parte, nessa realidade, expõe os planos da equipe missionária, com realce especial dado ao conflito que ‘estourou’ entre tal equipe e os poderes constituídos. Daí o último item dessa primeira parte: ‘o grito dessa igreja’ (pp. 42-45).
Uma segunda parte comporta um Documentário de 74 páginas, redigido com a intenção de confirmar as declarações feitas na primeira parte por trazer estatísticas, declarações oficiais incontestáveis e correspondências com autoridades. Trata-se, repito, de sustentar a veracidade de determinadas afirmações feitas na primeira parte. Prevendo críticas, discordâncias e calúnias, o Bispo se arma de documentos incontestáveis.
Como o título da declaração deixa claro, o Bispo trata dos condicionamentos que causaram um ‘conflito aberto’ entre a Prelazia e o latifúndio. Um conflito que, nas próprias palavras do Bispo, ‘estoura’ em 1970, no momento em que a pequena equipe de sacerdotes estrangeiros que atuam na imensidão do Norte de Mato Grosso (quatro espanhóis e dois franceses) resolve sair da rotina de uma sacramentalização sumária e decide ir fundo em questões humanitárias. O texto ainda acrescenta que esse conflito ‘não é só com latifundiários e outros poderes, mas também com algum setor eclesiástico, que não compartilha a nossa atitude e deve favores aos grandes’ (p. 40).
O termo ‘Prelazia’, no texto do bispo, diz respeito a uma equipe de sete sacerdotes ‘estrangeiros’, à qual se juntam algumas religiosas, como a Irmã Irene Franceschini, da congregação de Irmãs de São José (de Chambéry), que em 1971 vem de São Paulo e, durante mais de 35 anos, é o ‘fac totum’ (‘faz tudo’) na Casa da Prelazia em São Félix, secretária do Ginásio Estadual do Araguaia, organizadora de movimentos femininos na região, fundadora da ANSA (Associação Nossa Senhora Auxiliadora) e cuidadora do Arquivo da Prelazia, que com o tempo chega a reunir 300 mil documentos e é hoje um dos arquivos mais importantes do país em referência à história do Brasil e da América latina. Em 1977 ou 1978 (não me lembro exatamente a data), pude conhecer esse arquivo e verificar a riqueza de uma documentação sob diversos aspectos única. A Irmã Irene, chamada ‘tia’ pelo povo, faleceu em 2008, com 91 anos. Com o tempo, de modo estável ou intermitente, a equipe em torno do Bispo Pedro é enriquecida por leigos/as vindos de fora, atraídos pelo potente espirito evangélico que emana da humilde casa em São Félix do Araguaia, um povoado de 1.800 habitantes, ancorado ao imenso Rio Araguaia, que constitui o grande meio de comunicação entre terras que vão até Conceição do Araguaia, no norte, ao Planalto de Cuiabá no sul.
A equipe chega à conclusão que não adianta continuar com uma pastoral por meio de missas e sacramentos sumariamente administrados, na linha da famosa ‘pastoral da desobriga’, lançada nos anos 1920 pelo Cardeal Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro e que caracterizou a pastoral católica em todo o Brasil antes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Sinal claro da novidade, em 1970, é o empenho, por parte da equipe missionária, no sentido de se interessar pela a educação na região, montar um Ginásio (ensino secundário) em São Félix e revitalizar diversos Grupos Escolares (ensino primário) espalhados pela região. Ao trocar a tradicional pastoral sacramental por esforços no campo da educação, os colaboradores e simpatizantes da Prelazia demonstram um novo espírito. Aparecem novas expressões: ‘a injustiça tem nome nesta terra: o latifúndio’; ‘o único nome certo do desenvolvimento aqui é reforma agrária’ (Declaração, p. 44); ‘o grito de uma igreja na Amazônia, em conflito com o latifúndio e sob a marginalização social, institucionalizada de fato’ (p. 45); ‘já passou a hora das palavras, temos de escutar o clamor abafado do povo’ (p. 43); ‘escrevo com amargura’ (p. 45). O bispo se faz poeta:
Maldito seja o latifúndio,
Exceto os olhos de suas vacas.
Louvado seja Deus,
E a guerrilha de sua Palavra.
Quero plantar nessa Amazônia
Meu livre grito humano,
Minha protestante fé libertadora,
A derramada tocha de meu sangue.
Aparece o tema do martírio, principalmente após o assassinato do Padre João Bosco Burnier. Dez anos depois, no local de sua morte, se erige o ‘Santuário dos Mártires da Caminhada’, onde se encontra uma lista aberta de mais de vinte nomes de ‘mártires da caminhada’: Padre Josimo, Padre João Bosco Burnier, Padre Rodolfo Lunkenbein, o índio bororo Simão, Irmã Dorothy Stang, Eldorado dos Carajás, Margarida Alves, Vladimir Herzog, Padre Ezequiel, Lúcia de Souza, Raimundo o Gringo. Juntam-se Monsenhor Romero de El Salvador, Padre Antônio Henrique Neto, de Recife, o bispo argentino Angelelli e, é claro, o mártir Jesus de Nazaré.
A declaração pública de Jesus de Nazaré.
Vale a pena comparar a declaração de Pedro Casaldáliga, que acabei de apresentar, com uma declaração feita por Jesus em Nazaré, dois mil anos atrás. Uma comparação capaz de esclarecer e aprofundar alguns pontos. Comparar Pedro a Jesus não é falta de respeito para com Jesus, como nos ensina o livro ‘Imitação de Cristo’, do século XIV (o livro mais lido no seio do cristianismo depois da Bíblia), que mostra que donas de casa, operários, empregados e empregadas, casados e solteiros, ricos e pobres, enfim, todos e todas, somos chamados a imitar Jesus, comparar nossa vida com a de Jesus.
Vou me deter pois, por uns instantes, com o que aconteceu com Jesus em Nazaré, mantendo uma janela aberta para que se possa ver o que aconteceu com Pedro em São Félix do Araguaia. Como num Live de You Tube, com diversas janelas. Um ‘enquadramento’ que daria espaço para que entrem outros/outras protagonistas, outras experiências. Embora não seja o caso de abrir aqui um leque tão amplo.
Um rabi itinerante na Galileia.
Marcos, bem no início de seu Evangelho, deixa entender as razões pelas quais Jesus, após sua decisão de abandonar os trabalhos com João Batista, no Jordão, não volta para Nazaré, sua aldeia natal, mas estabelece seu centro de operações em Cafarnaum, uma cidade pesqueira de bastante trânsito comercial, onde até se usa a língua grega na comercialização de pescado. Há como conjeturar que Jesus escolha esse lugar por ser mais aberto ao ‘mundo grande’ que o interior camponês da Galileia. Entrosado no mundo de Cafarnaum, em pouco tempo, ele é reconhecido como ‘rabi’ na redondeza.
O termo hebraico ‘rabi’ significa: ‘aquele que ensina’, o ‘mestre’, o ‘sábio’ (Jo 1, 38). Ao que tudo indica, alguém pode ser chamado de rabi, na Galileia de Jesus, sem procedimentos legais ou rituais. Um rabi costuma vir acompanhado de discípulos e, nos sábados, eventualmente assume o ofício de ‘ensinar’ nas sinagogas. Parece que a própria comunidade aponte o ‘rabi’ ao chamar alguém de ‘sábio’. Não é um ‘líder’, pois não detém nenhum ‘poder’ além do poder da palavra que interpreta. Não recebe pagamento por seu ensino, pois a palavra de Deus é gratuita. Além da função de rabi, parece que Jesus exerce alguma profissão para se sustentar, pois ele, a rigor, permanece um ‘leigo’, não é pago por seus serviços nem detém maiores poderes do que os demais participantes do grupo. O elo entre rabi e a sinagoga-comunidade é de outra ordem que o atualmente existente entre o sacerdote católico e sua paróquia, por exemplo. O rabi fala livremente nas sinagogas, não está preso a alguma instituição. É o homem da fala, da leitura dos rolos bíblicos, da palavra. Por vezes chamado ‘profeta’, ele forma em torno de si uma agregação de tipo profético, e anda pelos caminhos a divulgar um novo modo de se viver. Isso baseia-se numa antiga sabedoria: ninguém consegue viver uma nova mensagem, em contraste com modos tradicionais de se viver, se permanecer só. Ninguém consegue seguir as profecias bíblicas sem seguir um mestre, um ‘sábio’, um profeta, um conhecedor das Escrituras, um orientador. Repetidos ‘slogans’ dos primeiríssimos tempos do cristianismo, dos anos 40 a 60 (antes da redação dos Evangelhos), falam da urgência e da importância de falar e de se comunicar, e, do outro lado, de se ouvir, de ficar atento. ‘Quem tem ouvidos ouça’; ‘olhos, ouvidos e mentes’, ‘amém, amém, eu digo’. O discípulo precisa, pois, em primeiro lugar, saber seguir e escutar seu mestre, seu rabi. Depois, ele volta à complexidade da vida local, não permanece para sempre no grupo em torno do rabi. Pois o mestre não é um propagandista, ele não faz proselitismo. Nisso, Jesus se mostra tipicamente rabínico: ele demonstra repulsa em relação ao proselitismo, evita a concentração de massas, não gosta de aparecer, permanece fora, em lugares desertos (Mc 1, 45), se refugia sozinho na montanha (Jo 6, 15), evita o ‘culto da personalidade’.
Para os apóstolos de Jesus, não é fácil. Eles lidam com uma pessoa inquieta, que não vê a hora chegar para que apareça gente que demonstre captar a novidade que ele vem trazer. Pois é tempo de agir, de tomar iniciativas: ‘Eu não sou um oráculo, não obrigo ninguém a me seguir. O que quero é que se bote fogo nesse mundo, que se mergulhe esse mundo num batismo para valer, que finalmente os familiares discutam entre si e não temam em tomar posição: três contra dois e dois contra três, pai contra filho, mãe contra filha, sogra contra nora. Quero um movimento em que as pessoas tomem decisões sem depender de ninguém, sem se comportar em rebanho. Basta de seguidores. Quero ‘gente que faz’, toma iniciativa própria e leva adiante a mensagem’.
Jesus, decididamente, não quer seguidores. Ele quer apóstolos, gente que assuma responsabilidades. Ele se incomoda com aglomerações em seu entorno. Em Cafarnaum, em pouco tempo, não consegue mais atender a tanta gente que o procura. Ele foge à montanha, mas não adianta. Logo aparece Simão, que diz: todos esperam por você (Mc 1, 28 e 35). Então, volta à cidade, só para ver que as pessoas estão lá, de novo, e se comprimem em frente à sua casa. Jesus se emociona, atende sem cessar, cura, conforta, expulsa demônios, ressuscita uma menina de doze anos. E o povo correndo atrás dele. Em pouco tempo, seu renome ultrapassa a Galileia: uma massa, proveniente da Galileia, da Judeia, de Jerusalém, da Idumeia (180 km ao sul), do Além Jordão, das redondezas de Tiro e Sidon, o persegue onde vai (Mc 3, 8). Muitos caem em cima dele, para que os doentes o toquem (Mc 3, 9). Sopros imundos, à sua vista, lançam-se a seus pés e gritam: você é o Filho de Deus. Não é isso que Jesus quer. Ele sobe num barco e atravessa o Mar da Galileia, para evitar que as massas o sufoquem (o mesmo versículo). Não tem jeito: por toda parte, vilarejos, cidades, sítios do campo, as pessoas suplicam que ele permita tocar pelo menos a franja do manto. E todos que o tocam ficam curados (Mc 6, 55-56). Pode ser que Marcos carregue nas cores, pois está interessado em apresentar uma figura que de certo modo condiz com o que seus ouvintes (provavelmente emigrantes judeus em Roma, por volta do ano 70) se imaginam acerca de um Jesus em contínuo combate com ‘sopros malvados’ ou ‘sujos’, demônios, forças do inferno etc., que atormentam as pessoas, causam doenças e sofrimentos. Se Jesus aparece, em Marcos, como um bem-sucedido exorcista e milagreiro, é dentro de um enquadramento cultural que deve ser descrito com a máxima precisão possível.
De qualquer modo, o sucesso incomoda Jesus. Não só porque grandes aglomerações atraem a atenção das autoridades, mas principalmente porque atrapalham o que ele mais deseja fazer: propor um programa de vida, despertar responsabilidades. Em última instância, a inquietude e até impaciência de Jesus, que os apóstolos nele observam, provém de uma consciência que habita sua mente e que os que entram em contato com ele vão percebendo aos poucos, e mesmo assim de modo frequentemente deficiente. Podemos apontar alguns pontos, ao longo dos evangelhos, que circunscrevem essa consciência: Jesus está convencido que o Reino de Deus, já estabelecido no céu, está prestes de vir à terra (Lc 11, 20; Lc 10, 18; Mc 3, 27). Ele se sente engajado na chegada desse novo Reino e isso o motiva (Lc 12: ‘vim botar fogo na terra’). Ele percebe sinais que anunciam a chegada desse Reino (Lc 7, 22) e isso lhe causa imensa alegria (Mc 2, 19 sqq, Lc 14, 16; Lc 15, 24: a alegria do evangelho). Daí o tom positivo de sua mensagem, a alegria em comer e beber em companhia das pessoas, um sinal do Reino. Os sinais da chegada do Reino, que o povo, em seu modo de pensar, interpreta como sendo milagres, são, para Jesus, manifestações do poder (dunamis) de Deus. Com alegria, Jesus reconhece em seus apóstolos os ‘doze patriarcas de um novo Israel’ (Mc 3, 14; Lc 22, 30). Eles anunciam o Reino que cresce. Um momento alto vem com uma declaração pública e explícita de seus propósitos em Nazaré, a aldeia natal. Uma declaração que, de certo modo, torna as coisas mais complexas, pois mostra que a proclamação da chegada do Reino suscita oposições.
A declaração segundo o Evangelho de Marcos.
Existem dois relatos acerca da declaração pública de Jesus em Nazaré, um no Evangelho de Marcos, outro no de Lucas.
Marcos começa relatando os sucessos iniciais de Jesus, que já assinalei acima: falava-se a seu respeito um pouco por toda parte, nas redondezas (Mc 1, 14). Sempre de modo positivo, ao que parece. A coisa toma um novo rumo quando Jesus resolve passar, com seus apóstolos, pela sua aldeia natal. Marcos conta a história nos seis primeiros versículos do capítulo seis de seu Evangelho. Chegado o sábado, ele se põe a ensinar na sinagoga. Estranhamente, sua fala é recebida com reticência. Muitos dos que o escutam estranham suas palavras e dizem: ‘Donde ele tira tudo isso? Donde lhe vem essa sabedoria? E os poderes (em plural) operados por suas mãos? Ele não é o carpinteiro (‘obreiro’, ‘trabalhador’), o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Suas irmãs não vivem entre nós? Enfim, não gostaram (literalmente: ficaram escandalizados: vv. 2-3).
Será que Jesus aparece a seus conterrâneos como um cara que vem subverter os valores que eles costumam cultivar: a família acima de tudo, gente boa por toda parte, doentes, mendigos, cegos, pobres abandonados, à beira do caminho a suplicar uma esmola? Será que ele, com a autoridade que ganhou em Cafarnaum, vem perturbar a normalidade na vida da aldeia honrada? Afinal, por que deixou a aldeia algum tempo atrás? Ele nos despreza? Enfim, Jesus não é bem acolhido em seu país natal. Significativamente, o texto de Marcos acrescenta que Jesus não conseguiu fazer (em Nazaré) nenhum gesto de poder, nada que se equiparasse com o que ele fazia nas redondezas de Cafarnaum (v. 5). Jesus encontra resistência na sua própria aldeia natal. É como Marcos escreve, finalizando: Jesus estranhou a desconfiança dos aldeões (v. 6).
Marcos, de sua parte, entende que um impetuoso Espírito se apoderou de Jesus e fez com que ele abandonasse a terra natal e se tornasse uma pessoa estranha ao voltar de passagem. Um Espírito que o ‘arrastou’ para novos horizontes (como o arrastou ao deserto nos primeiros versículos do Evangelho).
Lucas pensa mais ou menos o mesmo, só que ele descreve a hostilidade entre Jesus e seus conterrâneos de modo mais detalhado e mais premente.
A declaração segundo o Evangelho de Lucas.
No versículo 14 do quarto capítulo do Evangelho de Lucas se inicia uma narrativa que vai até o versículo 30. Ele começa escrevendo que Jesus voltou à Galileia (depois da experiência com João Batista) no poder do Sopro. Por toda parte se falava a seu respeito. Ele ensinava nas sinagogas e era honrado por todos (v. 15). Isso em relação a seus primeiros trabalhos nas redondezas de Cafarnaum, que Marcos também assinala. Mas em Nazaré as coisas se passam de modo diferente. Ali também, ele vai à sinagoga no dia de sábado, como de costume. O servente lhe entrega um rolo que contém as profecias de Isaías. Jesus escolhe cuidadosamente dois trechos, Isaías 61, 1-2 e 58, 6, e pronuncia as palavras de seu jeito (não cita literalmente):
Um Sopro do Senhor sobre mim.
Por Ele fiquei encarregado
De trazer uma boa mensagem aos pobres.
Ele me enviou,
e por isso proclamo
liberdade aos presos,
visão aos cegos,
libertação aos oprimidos.
Proclamo um Ano Feliz (Lc, 4, 16-18).
Um detalhe importante, que revela muito acerca de Jesus: ele faz uma leitura seletiva do texto do profeta Isaías, ou seja, omite a segunda parte da última frase Isaías 61, 1-2, que reza:
Proclamo um Ano Feliz,
Um dia de vingança de nosso Deus.
Jesus omite falar num Deus vingativo, e isso é fundamental para entender a originalidade de sua mensagem. Ele abandona a ideia de um Deus que se vinga de seus inimigos, um Deus Tseva’ot (Deus dos exércitos), combativo lutador em prol de Israel, seu povo eleito. O Deus de Jesus não é nacionalista nem vingativo, é um Deus que envia seu ‘sopro’ (‘ruah’ em hebraico, ‘pneuma’ na tradução grega) seu Espírito Santo, por toda terra. No texto de Isaías, esse espírito, personificado, é comparado a um rei prestes a sair de carruagem, que manda um mensageiro na sua frente a gritar em alta voz a ‘boa mensagem’ da vinda do rei e pedir ao mesmo tempo que se lhe abra caminho. Finalmente, a proclamação de um Ano Feliz (ou sabático) significa que se trata de um rei bondoso, um pai de seu povo. Jesus fecha o rolo, o entrega a servente da sinagoga e se senta. Todos os olhares nele se concentram (v. 20). Silêncio. Ele começa dizendo: ‘hoje se realiza essa Escritura, como vocês ouviram’ (v. 21).
Eis a declaração pública de Jesus: Venho trazer uma boa mensagem aos pobres, proclamar liberdade aos presos, visão aos cegos, libertação aos oprimidos, instalar um Ano Feliz. Nada de vingança, nada de vitória de Deus sobre seus inimigos. Aparece um Deus diferente, que se interessa pelo que não costuma suscitar interesse. Difícil exagerar a importância dessa declaração, que significa nada menos que uma inversão total de valores. Enquanto, antes de Jesus, desde tempos imemoráveis, os grandes mandam nos pequenos e os líderes mais expressivos do mundo, como César, Augusto e Xerxes, assim como criadores de grandes impérios como o assírio, babilônico, egípcio, persa, grego e romano, trabalham o tempo todo para humilhar, submeter, escravizar e submeter povos, o rabi galileu proclama exatamente o contrário. Ele repete coisas básicas, que todos e todas entendem logo: somos, todos e todas, criaturas de Deus e, portanto, merecemos o respeito que deve reinar entre iguais. Eis uma ideia revolucionária, que não se encontra nem nas ordenanças gravadas na ‘stèlè’ de Hamurabi, nem em algum outro documento ou monumento que nos venha do Antigo Oriente Médio.
Jesus vai além: o débil pode se converter em poderoso. Com essa ideia, mata o ‘gen’ darwinista que existe no ser humano, a ideia que o forte destrói o fraco e desse modo melhora a espécie humana, como ensina certa ciência baseada na ‘evolução das espécies’. Jesus proclama o contrário: a espécie humana melhora quando o forte se curva diante do fraco, lhe dá a mão, o liberta, cuida dele, o cura, o liberta. Nas palavras: hoje se realiza essa Escritura (Lc 4, 21) não se fala em moral ou doutrina, liturgia ou confissão religiosa. Fala-se em princípios éticos. Eis o espírito do cristianismo.
Acontece que, como na narrativa de Marcos, os presentes na sinagoga de Nazaré, segundo o relato de Lucas, não aplaudem as palavras de Jesus, mas revelam sentimentos de hostilidade. Captam, no não dito de Jesus, um juízo condenatório: ‘vocês não realizam a profecia de Isaías. Entre vocês não se vê nem boa mensagem para os pobres, nem liberdade para os presos, nem recuperação de visão para os cegos, nem libertação dos oprimidos, nem Ano Feliz. Aqui tudo fica como sempre foi’. E, como no Evangelho de Marcos, eles reagem negativamente: ‘Como ele tem coragem de falar assim? Não é dos nossos? Não cresceu entre nós? Onde ele aprendeu a se mostrar superior a nós? Será que é maior que nossos patriarcas, profetas, juízes e reis ?’. Histéricos, eles o conduzem sobre o declive de uma colina sobre a qual a cidade está construída, para lançá-lo no precipício. Mas ele passa por meio deles e se afasta (vv. 29-30).
O espírito de Pedro Casaldáliga.
A história de Pedro Casaldáliga, comparada com a de Jesus de Nazaré, nos mostra que dois ‘estados de espírito’ atravessam a história humana. Ambos, Jesus e Pedro, encontram dificuldades em fazer valer sua opção pelos pobres. Enquanto Jesus se confronta com um espírito nacionalista enraizado, Pedro tem de lidar com um espírito empreendedor que se apresenta desenvolvimentista, progressista, patriótico, etc., embora encubra gritantes injustiças. Ambos se comportam em humanistas, ao ponto de se tornarem revolucionários. São humanistas revolucionários.
O espírito humanista.
A extraordinária repercussão causada pelo recente falecimento de Pedro Casaldáliga demonstra que sua vida toca em algo que sensibiliza as pessoas, além de credos e culturas, ideologias e opções políticas. Algo profundamente humano. Algo que diz respeito ao espírito humano no sentido mais profundo da expressão. Pedro se nos apresenta como um símbolo de humanidade, além de clausuras, fronteiras, ‘cercas’ e divisões: Malditas as cercas. É bispo católico, mas não se deixa cercar em âmbitos católicos. Respeita o papa, mas não hesita em dele discordar. Respeita as autoridades políticas e tenta dialogar com elas (como demonstra o Documentário da Declaração pública de 1971), mas, de novo, não aceita a ‘política das cercas’. A política do latifúndio. Respeita as normas da igreja católica, mas não se cerca com símbolos distintivos, como o colar romano, a cruz peitoral episcopal, a mitra, o báculo. Seu distintivo episcopal é um anel de tucum. Enfim, Pedro se insere na larga tradição cristã que parte de critérios humanistas igualitários. Não se distancia dos seres humanos comuns, não gosta de ser chamado ‘Dom’, cultiva as qualidades de um ser humano comum: franqueza, simplicidade, abertura ao outro. Quando esteve entrevistado na Roda Viva, programa da TV Educativa, em 1988, sua franqueza criou um ambiente de saudável descontração entre jornalistas que, por princípio, não lhe eram tão simpáticos.
O humanismo de Pedro Casaldáliga tem como base sólida a convicção que o espírito de Deus se encontra no espírito do homem. Amar os homens é amar a Deus. Irmanado a posseiros, peões e índios (as três categorias que sempre voltam em suas falas), ele não pensa em trazê-los à igreja, mas em humanizar a sociedade e fazer com que latifundiários e peões, comerciantes e posseiros, ‘brancos’ e índios tentem conviver como pessoas humanas. Quando ele fala em dominação por parte do latifúndio, em dependência dos peões, em desalojamento dos posseiros, em marginalização dos índios, ele não intenta alimentar oposições, mas suscitar reciprocidade, sensibilizar um comum senso humano. Como humanista convicto, Pedro sabe que a verdade não desce de cima para baixo, da cátedra para os ouvintes, mas emerge da atenta e criteriosa atenção ao outro. No fundo, suas intervenções, na qualidade de Bispo de São Félix do Araguaia, atestam um ‘déficit de humanidade’ existente na região. Intervenções que visam tornar os homens mais humanos, capazes de superar estruturas desumanas, longamente cultivadas.
Foi nesse sentido humanista que acima comparei a declaração de Pedro Casaldáliga com a declaração de Jesus em Nazaré. Trata-se aqui de um humanismo evangélico, revolucionário, e por isso passo para um segundo ponto, em que teço considerações acerca do mui cristão espírito revolucionário.
O espírito revolucionário.
O termo ‘revolução’ não é costumeiro em círculos cristãos. Nas igrejas, não se costuma dizer que Jesus de Nazaré foi um revolucionário. Ao longo dos tempos, ele recebeu as mais diversas adjetivações, mas o termo ‘revolucionário’ está marcadamente ausente delas. Nem aparece nos Documentos do Concílio Vaticano II da igreja católica, celebrado em Roma entre 1962 e 1965. Só aparece, de passagem, numa Declaração emitida pelo Conselho Mundial das Igrejas de Genebra (um órgão ecumênico) em 1966, que fala em ‘teologia da revolução’. Isso demonstra que as igrejas cristãs mal conseguem expressar suas origens e se desvincular de uma longa tradição dogmática, moralista, litúrgica, hierárquica e devocional. Não foi Jesus que disse à samaritana:
‘Não será mais no Templo
Que se adorará a Deus,
Mas no Espírito
E na Verdade’ (Jo 4, 21-23)?
Movimentos revolucionários sempre existiram na história do cristianismo, sempre à margem da narrativa oficial. Na Idade Média proliferavam as chamadas heresias, no século XVI veio o protestantismo luterano, no século XVIII a Revolução Francesa, no século XIX a geração dos ‘mestres das suspeitas’ (Marx, Nietzsche, Freud). A partir dos anos 1950, uma insatisfação ‘revolucionária’ atinge setores sempre mais amplos do universo fielmente cristão. Muitos católicos se sentem mal em suas igrejas, gostam de ver surgir mudanças mais radicais, observam que essas mudanças são sempre proteladas e finalmente deixam de frequentar a missa e os sacramentos. Outros não querem ou não conseguem ver o que acontece.
É nesse contexto que surge um Pedro Casaldáliga nos confins de um mundo mal conhecido. Um bispo que não se mostra preocupado com questões religiosas, eclesiásticas, dogmáticas, litúrgicas ou morais, mas assume uma postura revolucionária, mesmo arriscando a vida. Autenticamente revolucionário é o grito ‘maldito o latifúndio’ acompanhado da negação em dizer ‘malditos os latifundiários’. Revolucionária uma decidida opção por posseiros, peões nas fazendas e índios’ acompanhada por uma não menos decidida opção em não condenar burgueses e os ricos. As sutis distinções que se praticam no texto de 1971 hão de ser observadas com cuidado, para que não se caia na interpretação feita pelas forças repressivas que dominaram o Brasil entre 1964 e 1984.
O radicalismo de Pedro, absolutamente evangélico, resulta em revitalização de um cristianismo evangélico. Há de se partir de uma primeira pergunta: ‘como está o mundo?’ e daí partir para uma segunda pergunta: ‘como ser cristão nesse mundo?’. As demais perguntas são subalternas.
O Espírito do cristianismo.
Desde os profetas de Israel, o espírito de Deus é personificado e se torna ‘Espirito’ com maiúscula, agente divino no mundo humano. Não para tratar de religião, doutrina, liturgia, hierarquia, moral, mas de vida, de modos de se viver. O Espírito traz, entre outras, uma mensagem absolutamente nova acerca dos modos de se viver:
Vocês escutaram: olho por olho, dente por dente.
Mas eu digo: não resistam ao mal.
Alguém lhe bate na face direita? Ofereça a outra.
Alguém lhe tira a túnica? Dê-lhe também o manto.
Alguém o obriga a carregar suas fardas ao longo de uma légua?
(alusão a tropas romanas caminhando para Antioquia da Síria, que atravessavam a Galileia e obrigavam os habitantes a carregar suas fardas)
Carregue-as duas léguas.
Vocês ouviram: ame seu próximo e odeie seu inimigo.
Mas eu digo: ame seu inimigo, reze por quem o persegue.
Assim você será filho do Pai que está nos céus.
Que mérito há em amar os que nos amam?
É assim que amam os fiscais de impostos.
Ajam como devem agir, assim como age seu Pai nos céus (Mt 5, 38-48).
Orientação difícil de ser seguida no Norte do Mato Grosso em tempos de ditadura militar. O Bispo Pedro percebe que a nova visão do mundo a partir do poder do Espírito, a boa notícia aos pobres, marginalizados e rejeitados da terra, o evangelho (a boa mensagem), o perdão setenta vezes sete vezes, que tudo isso não passa facilmente a seus ouvintes. As ideias novas, que se gestam em sua mente, não são compartilhadas por todos os fieis, e isso faz dele uma pessoa inquieta. Como Jesus de Nazaré se inquietava com a lentidão dos apóstolos. É a mesma decisão em enfrentar os poderes do mal, a mesma disposição, a mesma inquietação, a mesma tristeza em ver que as pessoas não se decidem facilmente e se deixam iludir, enfim, a mesma dolorida fé no poder do Espírito Santo. Se Pedro não classifica mais, não divide mais o mundo entre ‘os que estão do nosso lado’ e ‘os que estão do outro lado’, se ele compreende que o Espírito sopra nos Xavantes e igualmente nos que colaboram com o latifúndio, enfim, que esse Espirito questiona relações humanas desde muito estabelecidas e universalmente aceitas, ele se sente isolado. Enfrenta, de um lado, o espírito de um empreendorismo desvairado, da acumulação do dinheiro, o espírito do latifúndio e, do outro lado, a lentidão dos fieis em compreender o mundo e a vida de um modo novo. O governo acha que Mato Grosso vai ficar melhor quando todos trabalham (como peões) nas fazendas, e Pedro discorda. Ele põe os pés no chão, enxerga a realidade de modo bem mais racional, mais ético. Ele vê que existem os posseiros, existem os índios, existem as mulheres servidoras, ele enxerga o sofrimento dos peões e conclui: essas mulheres e esses homens têm de ser respeitados em seus projetos de vida. Mas essa racionalidade básica não passa facilmente para os fieis que Pedro encontra nas igrejas e nas capelas. Aqui, Pedro sente a interferência da religião e se lembra que o cristianismo, embora tenha virado bem cedo uma religião, em seu núcleo gerador não é uma religião. É uma proclamação pública, como aquela que Jesus fez na sinagoga de Nazaré ou nas Bem-aventuranças, como aquela que ele mesmo fez em 1971.
Se situarmos a vida de Pedro Casaldáliga diante de um amplo painel histórico, veremos que o paralelismo entre Jesus de Nazaré e Pedro Casaldáliga não é único. O posicionamento de Jesus encontra eco em cada geração. Jesus é modelo em cada geração. Cada geração, nas mais diversas circunstâncias, tem seus santos, os que praticam de modo radical, ou seja, revolucionário, a ‘imitação de Cristo’. Em cada geração aparecem movimentos, agrupamentos de pessoas que não se mostram interessadas em ‘adaptar’ a mensagem de Jesus à sociedade existente, mas vão resolutamente em busca de uma ‘outra’ sociedade, que enxergam as situações presentes em termos de angústia, crise, injustiça, mal, corrupção e rapina, pauperismo e fome, poder dos privilegiados e carência dos humilhados. Mas em cada geração aparecem igualmente movimentos contrários à veracidade evangélica. Sem duvidar da relevância do cristianismo no mundo, há como duvidar, isso sim, da relevância de determinados modos historicamente usados para propagar o cristianismo. Se a revolução que bate na porta carrega consigo a superação da leitura autoritativa, dogmática, moralista ou puramente rotineira (litúrgica) do evangelho, sua realização depende fundamentalmente do modo em que os cristãos na base vivem e divulgam o evangelho.
Sonhar o sonho impossível,
lutar quando é fácil ceder,
vencer o inimigo invencível,
negar quando a regra é vender (Chico Buarque e Ruy Guerra).