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DOM OSCAR ROMERO: EXEMPLO DE CRISTÃO (PARTE 2)

Genildo Santana

Em artigo anterior expus fatos sobre a vida de Dom Oscar Romero, seu processo de conversão e as consequências advindas desse fato. Contextualizei seu martírio, dentro da luta política de El Salvador, enfocando a perseguição sofrida por Dom Oscar Romero antes, durante e depois da sua morte.

Nessa reflexão de agora, faço uma leitura breve, a partir dos dados antes focados, limitada, do Ser Cristão que ele foi e de como pode ser modelo, exemplo para nós, cristãos de agora.

 

1 – O ser humano.

 

Quando no seminário, antes dele e mesmo depois, sempre ouvi, nos encontros vocacionais, a máxima de que nossa primeira vocação é para ser gente. Ser padre, ministro, esposo, político, são vocações secundárias. Primeiro ser gente. Ser um bom ser humano. O mais vem como consequência desse ser gente.

Pois bem! Dom Oscar Romero foi gente. Em sua missão, ele soube focar em assuntos e temas humanos, antes de tudo. Temas como liberdade, segurança, direitos humanos, liberdade de expressão, ele quando os abordava, não o fazia só para os católicos ou só para os cristãos. Pedia para todos. Independentemente de cor, gênero, etnia, religião. Assim, Dom Oscar Romero não se viu às voltas só com coisas da igreja, só com o Sagrado, apegado às liturgias e aos moralismos. Foi além. Foi além de sua responsabilidade de Arcebispo de San Salvador. Para sua casa acorriam todo tipo de gente, para receber conforto, alívio e proteção. Ele mesmo se encontrou com todos, inclusive com grupos de guerrilha salvadorenhos para mediar entre sequestros, raptos, o diálogo entre esses grupos e o governo.

Um exemplo de sua humanidade está no seu discurso, onde perdoa o assassino (sabia que seria assassinado), e une sua vida à dos pobres de El Salvador. Esse discurso se deu poucos dias antes de seu assassinato:

 

Fui frequentemente ameaçado de morte. Como cristão, não acredito na morte, mas na ressurreição. Se me matarem, ressuscitarei no povo salvadorenho. Digo isso com grande humildade, sem nenhuma vanglória. Como pastor, sou obrigado, por mandato divino, a dar minha vida por aqueles que amo, que são todos os salvadorenhos, inclusive aqueles que me assassinarem. Se chegarem a cumprir as ameaças, desde já ofereço a Deus o meu sangue pela redenção e ressurreição de El Salvador. O martírio é uma graça de Deus, que não julgo merecer. Se me matarem, perdoo e abençoo a quem o fizer. Contudo, estarão perdendo o seu tempo: um arcebispo morrerá, mas a Igreja de Deus, que é o povo, nunca perecerá!». (cnbb.org.br/oscar-romero-bispo-e-martir/).

 

Uniu ser um homem de Deus, da igreja a ser um homem do povo. Preocupava-se com o povo, tanto quanto com a liturgia. E cita o povo em suas palavras. Não disse que ressuscitaria em Roma, ou numa glória celestial ou ao lado dos poderosos da terra, mas no meio do povo. Povo que sofre, que luta, povo que é perseguido. Povo que é seu amigo. Povo de quem se fez amigo, pai, pastor, irmão. Sofredor com esse mesmo povo, sentindo suas dores e angústias, participando também de suas esperanças.

Ele deu um exemplo de um bispo, um cristão, um homem que não põe os sacramentos, os ritos, as liturgias, a moral acima de tudo. Após sua conversão, como citamos em artigo anterior, o povo pobre passou a ser o seu critério de compromisso de cristão.

A Criação é Ato Primeiro e a Religião é Ato Segundo. O que equivale a dizer, na linguagem kantiana, que A PRIORI temos a Criação de Deus e A POSTERIORI, é que vem a Religião. Na Linguagem teológica tradicional, os teólogos falaram em uma Revelação Natural. Definiram a possibilidade de o homem chegar a Deus com o uso da Razão Natural.

Isso significa que Deus se revelou nas criaturas.

Essa Revelação possui um caráter Dual: é uma Auto-manifestação de Deus (Transcendência) na história humana (Imanência). Deus Se Revelou ao homem e para o homem.

Sendo a criação ao Ato Primeiro e a Religião, o Ato Segundo, a Religião está a serviço da criação e não o inverso. Há uma Primazia da Criação em relação à Religião. A Religião, e consequentemente as Igrejas, devem servir ao Humano. Nada mais fiel a Deus que deu Seu Filho único para salvar a Humanidade.

Nessa ótica de reflexão, urge que a Igreja que queira ser fiel a Jesus Cristo, cuide do homem concreto, histórico, social. Nesse aspecto, Dom Oscar Romero foi e continua sendo um exemplo de cristão

 

2 – Gloria Dei vivens pauper.

 

Dom Oscar Romero viu Deus nos pobres. Um Deus parcial. Um Deus que está do lado dos pobres, dos excluídos, dos perseguidos. Um Deus que ouve o clamor do seu povo. Ensina-nos hoje, essa prática. Viu os pobres como DESTINATÁRIOS DO REINO DE DEUS.

Segundo o Teólogo Juan Luiz Segundo, após sério estudo dos textos bíblicos, principalmente dos Sinóticos,

 

O REINO DE DEUS não é anunciado a todos. Não é proclamado a todos...O Reino está destinado a certos grupos. É deles, a eles pertence. Só para eles será causa de alegria. E, de acordo com Jesus, a linha divisória entre a alegria e a tristeza que o reino haverá de produzir passa entre pobres e ricos. (Segundo APUD Sobrino, 1996).

 

 

Aqui nos apoiamos na Teologia de Jon Sobriño que diz quem são estes Pobres aos quais o REINO DE DEUS é destinado.

Segundo o Teólogo salvadorenho, pobres são antes de tudo os materialmente pobres, ou seja, os econômica e sociologicamente pobres, as grandes maiorias do Terceiro Mundo. Ainda segundo Sobrino, pobres são ainda, os EMPOBRECIDOS, os OPRIMIDOS. Os despossuídos do fruto do seu trabalho.

Pobres são também os que realizaram uma tomada de consciência sobre o fato mesmo da pobreza material. O que leva a um espírito com que há de se viver a pobreza. E aqui lembro que essa espiritualidade não é um substantivo da materialidade, mas um coroamento da mesma. Não é ter “espírito de pobre”, ou “espírito de rico”. É antes, viver sua materialidade com gratuidade, com esperança, com misericórdia, com fortaleza na perseguição.

Assim, sendo os pobres os DESTINATÁRIOS DO REINO DE DEUS, e, sendo que este REINO DE DEUS ainda não chegou aos pobres, historicamente são os pobres o SUJEITO PRINCIPAL, os CONSTRUTORES do REINO DE DEUS. Eles constroem o REINO DE DEUS. A eles cabe o protagonismo Cristão de erguer o REINO DE DEUS.

Lembro que PREFERENCIAL difere de EXCLUDENTE. Não há, nem em Cristo, nem tampouco na teologia, uma EXCLUSÃO do rico, materialmente falando. O que se reflete e se coloca com ênfase e fundamentados em Cristo é que os pobres exercem, só pelo fato de pobres serem, um protagonismo no Ministério de Cristo. E se assim o é em Cristo, deve ser também para a Igreja que se diz fundamentada e seguidora do Homem de Nazaré.

Dom Oscar Romero, hoje, nos interpela a nós da igreja, mais ainda, enquanto instituição, a termos esse compromisso com os pobres, os empobrecidos. Segundo Jon Sobrino, no livro Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação, organizado por Victor Codina, disse dom Oscar Romero, na noite de Natal de 1978: “A Igreja prega a partir dos pobres, e não nos envergonhamos nunca de dizer a Igreja dos Pobres, porque entre os pobres Cristo quis pôr sua cátedra de redenção.” (CODINA, 2007)

Diz ainda o teólogo salvadorenho, que, por conta da sua intransigente defesa da Primazia do Pobre, recebeu, em 2006, uma Notificação da Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé: “Dom Romero conhecia a afirmação de santo Irineu: ‘Gloria Dei vivens homo’, e algumas semanas antes de seu assassinato formulou-a desta maneira: ‘Gloria Dei vivens pauper’”. (idem).

 

 

3 – Exemplo de Ecumenismo

 

O Ecumenismo é um fator digno de nota na fé cristã. Visando o que os distingue, separa, as igrejas cristãs nunca serão ecumênicas. Mas, enquanto olharem para o que as une, que é mais e mais importante do que o que as divide, o ecumenismo é fato concretável, realizável. Esse diálogo entre as igrejas cristãs é o micro ecumenismo. O macro ecumenismo se dá em níveis outros que se realiza no diálogo entre as religiões.

Dom Oscar Romero, católico que foi, não se apegou apenas a temas católicos, supervalorizando-os e dizendo-os melhores que outros ou mesmo únicos possíveis. Dialogou com todas as correntes. E sua dedicação aos pobres, tema universal, de todas as religiões e de todas as igrejas, o fez ecumênico, em vida e, mais ainda, ao se tornar mártir. Sendo mártir, seu exemplo não foi só para os católicos, mas antes, para todos que se empenham em causas como a extinção da pobreza, contra a perseguição, a exclusão. Tanto é que quem tão bem fala dele não são só os católicos.

Rowan Williams, ex-arcebispo de Canterbury, em palestra para a organização Romero Trust, um site que publica cartas, discursos de Dom Oscar Romero, intitulada Um santo para todo o povo de Deus: Oscar Romero e o futuro ecumênico, assim se refere:

 

Considero o Romero não só como um mestre e um mártir que testemunha a justiça junto aos pobres, mas como um mestre que tem algo fundamental, vital para nós sobre o que e quem somos enquanto Igreja, enquanto igrejas que buscam estar mais unidas. E a interrogação que ele nos põe é: se estaremos verdadeiramente unidos quando estivermos mais profundamente unidos com Cristo, então há um lugar simples para começarmos a nossa caminhada em direção à unidade, e este é aprender a estar unidos com o grito, a necessidade e a pauta daqueles que estão em risco, e onde for o caso de irmos e partilharmos deste risco. (In Considero o Romero não só como um mestre e um mártir que testemunha a justiça junto aos pobres, mas como um mestre que tem algo fundamental, vital para nós sobre o que e quem somos enquanto Igreja, enquanto igrejas que buscam estar mais unidas. E a interrogação que ele nos põe é: se estaremos verdadeiramente unidos quando estivermos mais profundamente unidos com Cristo, então há um lugar simples para começarmos a nossa caminhada em direção à unidade, e este é aprender a estar unidos com o grito, a necessidade e a pauta daqueles que estão em risco, e onde for o caso de irmos e partilharmos deste risco. (WILLIANS, 2013).

 

Outro exemplo da ecumenidade de Dom Oscar Romero está na Abadia de Westminster. Segundo Padre Dwight Longenecker:

 

Em 1998, o Decano da Abadia de Westminster encomendou uma série de esculturas para ocupar os nichos vazios na frente ocidental da abadia, para homenagear os mártires do século 20. A escolha dos mártires foi deliberadamente internacional, multi-racial, ecumênica, e conscientemente controversa. Assim, Martin Luther King ficou ao lado da Grã-Duquesa Elizabeth da Rússia. Ao lado deles, São Maximiliano Kolbe, o pastor luterano Dietrich Bonhoeffer e a missionária presbiteriana Elizabeth John. Os outros são um anglicano da Papua Nova Guiné, um evangélico chinês e dois arcebispos: o arcebispo anglicano Janani Luwum — assassinado sob o regime de Idi Amin — e o arcebispo Oscar Romero. (Longenecker, 2015).

 

 

Promovente de diálogo, Dom Oscar Romero olhou para o que unia e não para o que separava, segregava. E o que unia era a situação de pobreza, perseguição em El Salvador e em toda a América Latina.

 

 

4 – Fé Encarnada

 

Diz o Evangelho que o filho de Deus se fez carne e habitou entre nós. Encarnar-se é uma conditio sine qua non ao projeto salvífico de Deus. Sem encarnação, não há evangelização, cristianização.

Dom Oscar Romero é um exemplo de Bispo, cristão que encarnou-se na vida do povo. Não viveu dele distante, uma vez que, como ele mesmo disse “viu Deus no pobre”.

O que implica esse gesto, na prática? Implica se fazer povo com o povo. Assumir suas dores, sua vida, seus pecados, suas lutas, esperanças, vitórias e derrotas. Isso, Dom Oscar Romero fez, sem que para fazê-lo tivesse que deixar de ser Arcebispo. Descobriu o povo paulatinamente, devagar. Mas descobriu. Ele é um exemplo para a igreja que quer ser fiel a Jesus Cristo. Essa igreja, enquanto instituição, que quer ser fiel ao projeto salvífico de Deus, tem que ser uma igreja encarnada. Encarnada na vida do povo ao qual se propôs evangelizar, cuidar.

Nas belas palavras do Papa Francisco, em mensagem a peregrinos salvadorenhos, em Roma,

 

São Oscar Romero soube encarnar, com perfeição, a imagem do Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas. Por isso, agora e, sobretudo, desde a sua canonização, vocês podem encontrar nele ‘exemplo e estímulo’ no ministério que lhes foi confiado: exemplo de predileção, para os mais necessitados da misericórdia de Deus; estímulo para testemunhar o amor de Cristo e a solicitude pela Igreja. Que o santo Bispo Romero os ajude a ser, para todos, sinais da unidade na pluralidade, que caracteriza o santo povo de Deus.(IN: Vatican News)

 

 

Dom Oscar Romero interpela, nos dias atuais, a sermos igreja encarnada. Uma igreja que não se encarna, não viabiliza o projeto salvífico de Deus.

 

 

5 – Dom Oscar Romero para El Salvador

 

 

Salvaguardando as proporções devidas, Dom Oscar Romero está para El Salvador assim como Dom Leônidas Proaño está para o Equador, como Dom Enrique Angelelli está para a Argentina ou Dom Samuel Ruiz está para o México, mais precisamente para o Estado de Chiapas. Dom Oscar Romero é a grande referência da igreja, da luta, dos direitos humanos em El Salvador. Não por acaso, a preferência dos salvadorenhos por colocar em seus filhos o nome de Oscar.

Importante para os salvadorenhos Dom Oscar Romero ter sido canonizado. Porém, antes de ser santo para a igreja, Dom Oscar Romero já o era para os salvadorenhos. Seus detratores se perderam no poço da história, fossem eles homens da igreja ou não.

Apropriado por todos que lutam por direitos humanos e por liberdade, contra ditaduras e ditadores, Dom Oscar Romero foi apropriado também pela esquerda política mundial. O que travou em anos sua canonização. No entanto, é bom lembrar sempre que sua atuação, sua palavra, sua crítica, sua postura não foram motivadas por fatores políticos, mas sim, cristãos. Ele não agiu a partir de Marx ou Lenin ou Fidel Castro (nada contra quem age por mesmos princípios e ideais), mas agiu a partir de princípios evangélicos. Agiu por conta da Fé que assim pede.

Lembro o testemunho de padre Jósimo Morais Tavares proferido no dia 27 de Abril de 1986, numa reunião do clero, poucos dias antes de ser assassinado, aos 10 de Maio de 1986, disse:

 

Agora, quero que vocês entendam o seguinte: tudo o que está acontecendo comigo é uma consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e na defesa pelos pobres, em prol do Evangelho, que me levou a assumir até às últimas consequências. (CPT,1986).

 

E não custa lembrar o que disse o Padre boliviano, também mártir, Luis Espinal:

 

O povo não tem vocação de mártir. Quando o povo cai em combate, ele o faz simplesmente...não é necessário dar a vida morrendo, mas trabalhando...se um dia lhes toca dar a vida, eles o farão com a simplicidade de quem cumpre mais uma tarefa e sem gestos melodramáticos. (Gutierrez, 1983).

 

E, para findar essa segunda parte sobre Dom Oscar Romero, cumpre lembrar com Dom Pedro Casaldáliga:

 

Queria lembrar-vos também, com muita emoção, que deveis recuperar a memória dos mártires, dos mortos, dos desaparecidos. Por amor de Deus, não esqueçamos os nossos mártires. Um povo, uma Igreja que esquece seus mártires, não merece sobreviver. (Libânio, 1994).

 

 

 

Referências:

 

Codina, Victor. Para compreender a Eclesiologia a partir da América Latina. Ed. Paulinas, São Paulo. 1993.

 

Libânio, J. B. Deus e os homens: os seus caminhos, Ed. Vozes, Petrópolis, 2ª Edição, 1994

Marins, José. Trevisam, Teolide M. e Chavona, Carolee. MARTÍRIO: Memória Perigosa na América Latina, Ed. Paulinas, São Paulo, 1984.

 

Romero, Oscar. O Profeta dos Oprimidos da América Latina. Diário de Dom Oscar Romero. Ed. Paulinas. São Paulo, 1997.

 

Santana, Genildo. Profecia. Ed. Asa Branca, Tabira, 2007.

 

 

Sobrino, Jon. Jesus, o Libertador, Ed. Vozes, Petrópolis. 2ªdição. 1996.

 

______, Jon. Oscar Romero, Profeta e Mártir da Libertação. Ed. Loyola. São Paulo, 1988.

 

 

______, Jon. Os Seis Jesuítas Mártires de El Salvador. Ed. Loyola. São Paulo, 1990.

 

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