Eduardo Hoornaert
A descoberta do caráter pentecostal das origens cristãs vem a postular a construção de narrativas próprias. Como sabemos que a mensagem cristã se propaga mais por meio de narrativas que de doutrinas, surge diante de nós a seguinte pergunta: quais as narrativas, entre muitas que tratam das origens do cristianismo, capazes de abarcar a multiplicidade de formas pentecostais em que o cristianismo se reveste hoje? Trato aqui especificamente de três narrativas das origens, uma primeira centrada em Nazaré, uma segunda em Jerusalém e uma terceira em Corinto. Prossigo chamando a atenção para a particularidade da expressão ‘Espírito Santo’ e para a necessidade de se estudar a ‘tradição’. Termino dizendo algo sobre ‘pentecostalidade’.
- Um Sopro ‘do Senhor’ em Nazaré.
O Evangelho de Lucas conta que Jesus, ao retornar à sua aldeia natal depois da experiência no Sul do país (na região do Jordão) com João Batista, vai, como de costume, à sinagoga no sábado. Como já é rabi, habilitado a ler e explicar a Bíblia, o servente lhe entrega um rolo que contém as profecias de Isaías. Ele escolhe dois trechos (Isaías 61, 1-2 e 58, 6):
Um Sopro do Senhor sobre mim.
Por Ele fiquei encarregado
De trazer uma boa mensagem aos pobres.
Ele me enviou, e por isso proclamo
liberdade aos presos, visão aos cegos, libertação aos oprimidos.
Proclamo publicamente um Ano de Favores (Lc 4, vv. 16-18).
Jesus entrega o rolo ao servente e se senta. Na sinagoga, todos os olhos o fixam. Ele começa: ‘como vocês veem, hoje essa Escritura se realiza’ (vv. 20-21). Eis a primeira manifestação do Sopro de Deus na vida de Jesus. Os aldeões se sentem atingidos, pois compreendem a alusão: ‘aqui – em Nazaré - não há boa mensagem para os pobres, nem liberdade para os presos, nem recuperação de visão para os cegos, nem libertação dos oprimidos, nem Ano de Favores’. ‘Vocês preferem seguir a Lei, não escutam o ‘vento’ que vem de Deus’. Para ainda agravar as coisas, Jesus dá dois exemplos de como a Escritura de Isaías se realiza: nos tempos de Elias, havia muitas viúvas em Israel e as pessoas passavam fome, por todo o país. Mesmo assim, não é para nenhuma (das viúvas de Israel) que Elias foi enviado, mas para uma viúva de Sarepta de Sidon (v. 25). Havia muitos leprosos em Israel. Mesmo assim, nenhum deles foi curado (por Eliseu), mas sim o sírio Naaman (v. 27). O sopro de Deus não considera um ‘povo eleito’ privilegiado.
É demais: todos na sinagoga se enchem de furor ao ouvir essas palavras (v. 28). Um violento sentimento de ódio se ampara da multidão, uma histeria coletiva. Eles o conduzem ao declive de uma colina sobre a qual a cidade está construída, para lançá-lo no precipício. Mas ele passa por meio deles e se afasta.
Jesus não é um ‘dos nossos’? ‘Então, que nos defenda, nos ampare, já que tem esses poderes todos’. Os aldeões vêm em Jesus um curandeiro milagreiro, como tantos outros que andam pelas aldeias da Galileia. Não percebem a ação do Sopro de Deus.
Na versão de Marcos se percebe a mesma perplexidade, por parte dos aldeões. Muitos dos que o escutam ficam confusos e dizem: ‘Donde ele tira tudo isso? Donde lhe vem essa sabedoria? E os gestos fortes (milagres, gestos de poder) operados por suas mãos? Ele não é o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Suas irmãs não vivem entre nós? Enfim, ficaram sem saber o que pensar (Mc 6, 1-6).
Mas, como na versão de Lucas, Jesus não recua. Ele vai em cima: um profeta só é desprezado em sua terra natal, em sua família, em sua casa. O Sopro de Deus nele provoca uma subversão dos valores que a aldeia cultiva: a família, a ordem, a convivência silenciosa com os que não conseguem se enquadrar na sociedade: doentes, mendigos, cegos, surdos, doidos. Jesus sente repulsa com o comportamento de seus antigos companheiros na aldeia: não pôde fazer aí nenhum milagre. E Marcos conclui: Jesus estranha a desconfiança dos aldeões.
Aparece aqui um homem que se distancia de seus ex-vizinhos aldeões. Para ele, o fato de provir de uma aldeia esquecida do mundo, dentro de uma família normal de camponeses, conhecido por serviços manuais, não lhe impede sentir o Sopro de Deus passando por sua vida. Pelo contrário, o ocultamento social demonstra quem é Deus e como Ele age no mundo.
- Um Sopro de Deus em Jerusalém.
A segunda história é mais traumatizante. Mais decisiva também. Ela começa com os versículos 46 a 50 do capítulo 14 do Evangelho de Marcos: Quando os emissários do Grande Sacerdote puseram as mãos sobre Jesus e o prenderam, todos os seus discípulos o abandonaram e fugiram (Mc 14, 46-50). Todos abandonam Jesus naquela fatídica semana que antecede a tradicional Festa da Páscoa judaica, por volta do ano 30, e que culmina com sua morte. Os discípulos deixam Jesus morrer só. Ele morre como um criminoso, executado segundo as leis estabelecidas. Seu corpo é jogado numa fossa comum. O Evangelho de João conta que o próprio Jesus previu esse desenlace: Vocês se dispersarão, cada um de seu lado, e me deixarão só (Jo 16, 32). Simão Pedro, que ainda teima em acompanhar de longe o drama, não aguenta nem umas palavras de suspeita por parte de uma servente do Grande Sacerdote: Não o conheço, não sei de que você está falando (Mc 14, 68). E acaba fugindo também. Retorna à região do lago de Genesaré, na companhia de alguns companheiros pescadores, igualmente ex-discípulos de Jesus. Ali resolve voltar à pescaria: ‘eu vou à pesca’. ‘Vamos como você’ dizem os outros (Jo 21, 3).
Mas nenhum deles consegue esquecer Jesus. Nem Simão, nem seu irmão André, nem Tiago e João, os filhos de Zebedeu. Mas o projeto acabou. Foi bonito, mas acabou. O que eles, pescadores iletrados, vão argumentar diante das mais altas autoridades, que tinham declarado que Jesus era um criminoso? Contudo, a memória persiste, inesquecível, fascinante. A figura de Jesus não os deixa em paz. A memória dele é alimentada a cada sábado por leituras feitas na sinagoga: leituras de Isaías, dos Salmos, dos Profetas, que falam em ‘servo sofridor’, ‘servo de Ihwh’, ‘elevado por Deus’, ‘feito Senhor’. Será Jesus um eleito de Deus enviado ao mundo? Martela a cabeça de Simão a palavra de Jesus, três vezes repetida: Simão, filho de João, se me amas, apascenta minhas ovelhas (Jo 21, 15-17). A situação angustiante dura meses, talvez mais de um ano. Voltar a Jerusalém? Nem pensar.
Até que aparece, no ano litúrgico judeu, uma festa tradicional, celebrada em outubro, que até supera a festa da Páscoa em termos de popularidade: o Sukkôt (que significa: tendas, cabanas), em que se misturam as mais variadas memórias: a colheita dos frutos do campo, a vida em tendas dos hebreus fugitivos do Egito, a chegada ao Monte Sinai após ‘cinquenta dias’ de caminhada após a escapada, ocasião em que Moisés recebe a Torá (Ex 15, 1).
No Sukkôt, Jerusalém se enche de peregrinos, muitos vindos de longe. O grupo dos apóstolos galileus pondera: ‘podemos nos aventurar, pois ficaremos despercebidos no meio de tanta gente. Aí podemos visitar os irmãos de Jerusalém’. Irmãos que ficaram na cidade hostil e se recolhem numa casa particular, com medo dos ‘judeus’.
Então acontece a famosa virada, descrita por Lucas em seus ‘Atos dos Apóstolos’, escritos por volta do ano 120 dC: Estavam todos reunidos no mesmo lugar, quando, de repente, um estrondo. Parecia a passagem de um vento violento a invadir a casa onde se encontravam. Eles viram uma espécie de línguas de fogo se repartir e se pousar sobre cada um. Nesse momento, todos, cheios do Sopro Santo, falavam o que o Sopro lhes dava a dizer, em línguas estrangeiras (Atos 2, 1-4).
Muita gente, ao ouvir o estrondo, corre ao local. Gente proveniente da diáspora judaica, falando línguas diferentes (todas de raiz semita), enquanto os apóstolos só falam o aramaico. Abre-se a porta, os apóstolos comentam o ocorrido, e todos entendem o que eles dizem. ’Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, nós os ouvimos apregoar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus’. (Atos 2, 8-11). No versículo 14 se conta que Pedro se levantou com os onze e, com voz firme, se dirigiu à multidão presente. Uma fala contundente, acusadora mesmo: Esse mesmo Jesus, que vocês crucificaram, Deus, ele mesmo, o fez Senhor e Cristo (o termo, em aramaico, significa: ‘ungido’) (v. 36). E termina perguntando: O que fazer? Ele mesmo responde: Pensar de outro modo (em grego: metanoein, daí metanoia) (v. 37). Mais adiante, em 3, 19, Lucas escreve que precisa também agir de outro modo (em grego: epistrefein). Um pensar e um agir ‘diferente’.
O resultado é excepcional: dos 120 aderentes ao novo movimento, assinalados em Atos 1, 15, se pula de vez para 3 mil depois do discurso de Pedro em Pentecostes (2, 41) e para 5 mil logo depois (4, 4). Aderiram, no Senhor, multidões de homens e mulheres (5, 14); A multidão dos crentes era um só coração e uma só alma (4, 32); O número dos discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém (6, 7). Sabemos que Lucas gosta de exagerar, mas, mesmo assim, se trata de uma considerável multidão (11, 24), que passa a ser chamada igreja, uma palavra grega equivalente a ‘sinagoga’ ou ‘assembleia’: As igrejas cresciam em número, de dia em dia (16, 5).
Não dá para negar o impulso do momento e a inquietação que o movimento, desde Pentecostes, provoca no seio do judaísmo ortodoxo. Aparece algo diferente da religião dos burocratas do templo, dos fariseus e saduceus, dos letrados e dos sacerdotes. Um Sopro Santo passa por camponeses, pescadores e publicanos, mulheres e crianças, ignorantes e pecadores. E isso inquieta os judeus bem pensantes.
No dia de Pentecostes, um Sopro Santo desce em ‘línguas de fogo’, confere força aos apóstolos no sentido de afirmar em praça pública a novidade de Jesus, um novo jeito de viver, fraternidade, acolhimento, atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo, entusiasmo entre as camadas mais pobres, nas cidades e nos campos por onde o movimento se espalha. Pentecostes é irrupção avassaladora de Deus na vida. Não se trata de doutrina, código moral ou celebração ritual. Trata-se de um impacto contagiante que conduz a uma nova experiência de vida.
Hoje dizemos: a espiritualidade cristã é fundamentalmente pentecostal. Por meio dela, o movimento de Jesus aparece como experiência de vida, não como doutrina, rito ou pura liturgia. Os exageros de Lucas na apresentação do número de aderentes ao movimento de Jesus, que lemos nos Atos dos Apóstolos, são sintomáticos da exaltação com que os próprios militantes devem ter contado sua experiência. A mesma exaltação que percebemos em certos episódios dos Atos, como a narrativa do naufrágio de Paulo e dos diversos discursos que o acompanham (At 27, 13-44), a conversão às portas de Damasco (At 9, 1-22) e o discurso de Paulo no Areópago ateniense (At 17, 19-34). Tudo isso vem a significar: o judaísmo formal, hipócrita, sacerdotal e legalista não tem mais nada a oferecer. Nós somos o Novo Israel! (Pedro nos Atos 2, 14-36).
O judaísmo oficial rejeita o pentecostalismo, não consegue compreender o momento. Isso leva a um infeliz confronto entre as comunidades de seguidores de Jesus e o judaísmo oficial: as primeiras não se sentem mais ao abrigo nas instituições do rabinismo judaico tradicional e criam um novo rabinismo, expondo-se à eventualidade de uma intervenção por parte de lideranças organizadas dispostas a ‘pôr ordem na casa’.
Pentecostes é uma experiência de ordem mística. Mas não num sentido neo-platônico. A admiração que sentem os que se deixam atrair pelo movimento não se deve atribuir unicamente a pretensos fenômenos extraordinários (com os relatados em Atos, capítulo 2), mas também ao fato que as pessoas percebem, nos seguidores de Jesus, um novo jeito de se viver, um clima de fraternidade e acolhimento, uma atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo. Lucas focaliza isso em diversos momentos. Isso deixa profunda impressão entre as camadas mais pobres da sociedade judaica, nas cidades e nos campos. Esse é o grande sinal do Sopro de Deus. Elenco aqui, de passagem, alguns desses sinais, colhidos em textos do Novo Testamento e da Tradição do segundo século: a atenção especial dada aos que sofrem e são rejeitados (1 Pedro 4, 12-13 e mais tarde a Carta a Diogneto), sobretudo os peregrinos e forasteiros (1 Pedro 2, 11), que são numerosos na periferia do sistema romano, a regra Entre vocês tem que ser diferente, quem quiser ser o maior se faça o menor (Lc 22, 26), a opção pelos pobres (Tiago, 2, 1-9), um ‘lar’ para quem não tem casa (as Cartas de Pedro), a elaboração de uma teologia de eleição dos excluídos nos planos de Deus (1 Pedro 2, 4-10; Tiago, 2, 5), a recusa de uma aliança com o pensamento filosófico da época (Justino, Ireneu), o martírio (Policarpo, Inácio de Antioquia), o amor e perdão ao inimigo, a não-violência ativa, a fé na ressurreição da carne como resposta à petulância das autoridades judaicas (At 2, 22-36), um novo relacionamento entre homem e mulher, a introdução do conceito de ‘adultério masculino’, desconhecido na cultura do império romano e mesmo no judaísmo (O Pastor de Hermas), a recusa do serviço militar como sendo contrário à ideia da única soberania de Deus (Tertuliano); a recusa do aborto e do abandono de crianças recém-nascidas, em nome do imperativo do respeito pela vida pessoal (Carta a Diogneto), a não-participação em jogos de circo e teatros (onde a dignidade do corpo humano é tripudiada), a comunidade eclesial de base (Paulo); etc.
Podemos alargar ainda mais o horizonte e enxergar paralelos entre essa experiência pentecostal judaica e o que acontece em diversas religiões pelo mundo afora. Por isso se pode dizer que o pentecostalismo, de certo modo, excede o cristianismo e se relaciona com momentos de inspiração, reavivamento (revival), reanimação, experiências extraordinárias de entusiasmo e de fé que encontramos em muitas religiões. Voltarei a esse ponto. De modo que não é tanto o caso concreto do Pentecostes judaico que retém nossa atenção, mas sim sua redundância histórica.
Conhecemos o resto da história. Depois de Pentecostes, o movimento de Jesus se espalha rapidamente pelo mundo. A perda do templo e da cidade de Jerusalém, por sucessivos golpes políticos, entre 70 dC e 135 dC, é um desastre para os judeus ortodoxos, mas não para o jovem movimento. Com a eliminação de Jerusalém enquanto centro religioso, as famílias sacerdotais hereditárias e a alta classe judaica se arruínam definitivamente. Mas ao mesmo tempo surge, entre 70 e 200 dC, um judaísmo rabínico que existe até hoje e que oferece sustento ao jovem movimento. O rabino toma o lugar do sacerdote. Em vez de ser o homem do templo, ele é o homem ‘do livro’, o ‘mestre’ (rav), conhecedor das letras da Torá e mais tarde do Talmud, o ‘sábio’ (chacham) da comunidade. Não é ‘líder’, nem detém poder além do poder da palavra que interpreta. Pois, na sinagoga, a Palavra de Deus reina soberana. O rabino não recebe pagamento por seu ensinamento, pois a palavra de Deus é gratuita. Ele tem de arranjar uma profissão para se sustentar. Enfim, o rabino é o homem do raciocínio, da palavra, não do rito. Não corresponde ao clérigo no cristianismo. É um leigo, sem maiores poderes do que os demais participantes da sinagoga.
É nesse novo modelo que o cristianismo nascente (do século II) se inspira, como verificamos em figuras como Hermas, Marcião, Valentino e Justino. Um cristianismo de mestres e discípulos, não de sacerdotes e fieis.
Com a destruição de Jerusalém como centro religioso, o movimento de Jesus mergulha, por assim dizer, no anonimato. Doravante aparecem textos menores, provenientes do mundo anônimo das comunidades como cartas, evangelhos apócrifos, atos dos apóstolos (igualmente apócrifos), apocalipses, visões, enfim, uma vasta literatura até hoje pouco conhecida. Essa literatura revela um movimento ligado à vida nas famílias, onde se aprende a falar menos e escutar mais, lutar para ganhar o pão de cada dia, preparar os alimentos, suportar o incômodo da convivência em ter familiares, respeitar a liberdade do outro (da outra), educar os filhos, socorrer o irmão necessitado. O movimento fica mais pragmático e procura harmonizar as exigências radicais de Jesus com a cotidianidade da vida. Repetitivos e lentos, os textos que nos chegam desse período não contêm grandes novidades, mas traduzem a seu modo a novidade cristã.
É desse modo que o pentecostalismo cristão entra na história.
- Um Sopro de Deus em Corinto.
Há uma terceira narrativa que conta a irrupção do Sopro de Deus nos inícios do movimento cristão. Trata-se, inclusive, da primeira narrativa em termos cronológicos, pois é anterior aos evangelhos de Marcos (dos anos 70), de Lucas (dos anos 80-90) e dos Atos dos Apóstolos (dos anos 120), que acabamos de ler. Escrita apenas 20 anos após a morte de Jesus, no início dos anos 50, essa narrativa, escrita por Paulo Apóstolo, nos introduz numa reunião típica dos inícios do movimento de Jesus (1Cor 14), na cidade grega de Corinto. Ali nos surpreende o ambiente barulhento e agitado. Há pessoas que ‘falam em línguas’, emitem sons sem sentido aparente, que - mesmo assim - são acolhidos com exaltação. Os participantes parecem convencidos que esses sons expressam uma língua misteriosa de contato direto com Deus. Alguns entram em transe, outros gritam e gesticulam.
Em diversos tópicos de suas cartas, Paulo utiliza o termo ‘grito’ e, diante da importância por ele atribuída a esse vocábulo, vale a pena se perguntar o que pode significar um grito que emerge de um ambiente extático. O sacerdote psicólogo alemão Eugen Drewerman explica que gritos extáticos não são falsificações, mas formas naturais de transmissão de grandes temas e de verdades permanentes presentes nas camadas profundas da psique humana (Drewermann, E., Psychanalyse et Exégèse, 2, Seuil, Paris, 2001, p. 18).
Paulo faz questão de afirmar, sem constrangimento, que ele também ‘fala em línguas’, e mesmo melhor que qualquer um: Eu falo em línguas mais que qualquer um de vocês (1Cor 14, 18). Mas há um limite. Ele repete, o tempo todo, que o êxtase - por bom e louvável que seja - tem de obedecer ao regulamento superior da profecia (vv. 22-26) e que, sem profecia, não há encontro cristão. O que isso significa? Em meio à exaltação não se pode esquecer que os participantes têm o direito de entender o que se quer dizer. Não basta gritar e gesticular. Falar ‘em línguas’ é bom, argumenta Paulo, mas que tudo seja acompanhado de palavras que encorajem as pessoas (v. 31), fortaleçam o grupo (v. 12), ajudem os outros. Na assembleia, prefiro dizer cinco palavras inteligíveis para instruir os outros, que dez mil palavras em línguas (v. 19). Os momentos privilegiados do êxtase postulam uma adequada explicação. Se Deus se revela numa fala em línguas de uma forma que nem o próprio falante, nem os demais participantes entendam ao certo o significado, é preciso que alguém do grupo diga alguma palavra ‘inteligível’. Se todos começam a falar sem que haja quem explique (no texto original: ‘se comporte em profeta’), os de fora vão pensar que os cristãos são malucos (v. 23). A ‘profecia’ faz com que o êxtase se torne capaz de convencer os de fora: Imaginem que todos profetizam (explicam ‘línguas’). Entra então uma pessoa de fora. Ela é logo questionada por todos e o que seu coração oculta se torna patente. Então ela cai com a face na terra e adora Deus, gritando: ‘Sim, é verdade, Deus está no meio de vocês’ (1Cor 14, 24-25). Tudo que acontece durante o encontro, seja canto, ensino, revelação, fala ou gesto (v. 26), merece ser devidamente explicado: todos podem se expressar, mas um por um, para instruir a todos e encorajar a todos (v. 31). Pois Deus não é um Deus da desordem, mas da paz (v. 33). A insistência de Paulo no sentido que tudo se faça em ordem (v. 40) e que a êxtase seja acompanhada de uma palavra explicativa (exortativa, profética) assegura aos os grupos paulinos - a médio e longo prazo - a sobrevivência em comparação a outros grupos, liderados por apóstolos talvez mais entusiasmados, mais eloquentes, mais versados na oratória ou mais extasiados, mas que não têm o devido cuidado em controlar os possíveis excessos extáticos.
O clima extático, no capítulo 14 da Carta aos Coríntios, revela algo que não se encontra nos evangelhos: o modo ‘entusiasta’ em que a mensagem de Jesus é recebida no mundo mais amplo da diáspora judaica, fora da Palestina. O fariseu ‘encantado’ de Tarso (Atos 9, 1-9), arrasta consigo os ouvintes/leitores para o universo extático que ele mesmo vive. Daí gritos como ‘Jesus ressuscitou!’, Ele subiu ao céu!’, ‘Ele está sentado ao lado de Deus Pai!’, ‘nós vamos ressuscitar com ele!’. Um encantamento que faz com que esses grupos extáticos tomem distância diante dos preceitos da Lei, lutem pela abertura do movimento de Jesus a não-judeus e nunca percam a esperança no Reino de Deus que já cresce - qual planta selecionada, adubada, capinada e cuidadosamente cultivada - no seio de pequenos grupos espalhados pelo mundo.
- O Espírito Santo.
O que dizer da expressão ‘Espírito Santo’, que hoje substitui o ‘Sopro Santo’ dos textos semitas? Sabemos que traduções sempre correm o perigo de se tornar ‘traições’. Sabemos que o leitor de um texto traduzido sempre tem de prestar atenção a possíveis armadilhas nele contidas, capazes de deturpar o sentido de uma expressão, ou pelo menos dificultar sua compreensão. Quando o ruah hebraico passa ao pneuma grego e quando esse, por sua vez, passa para o spiritus latim e nosso espírito português, anda-se a passos tão largos que a deturpação do sentido original é quase inevitável. Com a passagem de ‘ruah’ para ‘pneuma’, operada pelos ‘Setenta’ de Alexandria no século III aC, abandona-se o universo semita e penetra-se num universo de significados gregos. O termo perde em vigor, abandona os desertos do Levante e as finezas das expressões semitas e ganha ares mediterrâneos, helenísticos, mais suaves. E quando esse ‘pneuma’, por sua vez, passa para ‘spiritus’, na tradução latina feita por São Jerônimo no século IV dC (a ‘Vulgata’), modos romanos de se praticar a religião invadem a leitura das Escrituras e trazem um forte ingrediente de espiritualismo neo-platônico.
Pois o ruah dos primeiros textos bíblicos é forte, impetuoso e repentino. Deus age no mundo ‘soprando’. Em Gênesis 2, 7, o sopro de Deus insufla uma vida tão poderosa nas inertes narinas do Adão, que este se espalha rapidamente pela terra inteira, como relatam os primeiros capítulos do livro Gênesis com manifesta satisfação. Uma vida tão potente que os primeiros patriarcas alcançam idades incríveis. Matusalém chega aos 969 anos (Gn 5, 27) em meio de filhos, netos e bisnetos a não saber mais o número. O Adão é ao mesmo tempo ‘inspirado’ e frágil. É respirando que ele demonstra estar vivo, mas, de outro lado, ele não é mais que um sopro que passa e não volta mais (Sl 78, 39).
Mas não é só no Adão que o sopro de Deus se mostra poderoso. No princípio dos princípios, antes mesmo da luz, o sopro de Deus já movimenta o universo:
Terra vazia solidão
Escuridão sobre os abismos
Sopro de Deus
Movimentos sobre as águas (Gn 1, 2).
Movimentos também sobre os imensos desertos do Levante. Enfim, o ruah hebraico tem um amplo leque de significados, desde vento, ar respirado, fôlego de vida, até elementos mais psicológicos como ímpeto, dinamismo, ardor e vontade. Depois do dilúvio, recordando seu amigo Noé, Deus sopra sobre a terra e as águas um vento de paz (Gn 8, 1). O sopro de Deus apazigua as águas do dilúvio, abre passagem para os hebreus no Mar Vermelho, traz alimentos ao deserto, restaura ossos ressecados em povo vivo (Ez 37, 1-14). Um sopro de Ihwh deposita Ezequiel no meio de um vale repleto de ossos secos, e lhe manda dizer aos ossos: Vejam, eu lhes envio um Sopro. Vivam. Eu lhes dou nervos, carne e pele, eu lhes dou meu sopro. Vivam! (Ez 37, 6). E é esse mesmo Sopro Santo que nos traz Jesus: Um Sopro Santo virá sobre ti e uma força do Muito Alto te cobrirá com sua sombra (Lc 1, 35), diz o Anjo a Maria.
O Sopro de Deus anima os primeiros cristãos. Em meio a dificuldades, o Sopro se revela uma ‘força drástica’ (como escreve Paulo), ou seja, uma força que intervém nas horas do perigo. Ora, o perigo é a aliança dos líderes da igreja com os poderes deste mundo. Perigo grande aparece no século IV, quando o próprio Imperador Constantino convida os líderes cristãos a se reunir em Niceia, sua residência de verão, situada na Ásia Menor. Aí já dá para perceber o perigo. Os bispos começam a ter medo do Espírito Santo, como revela o Credo de Niceia, que evita pôr o Espírito em relevo e só lhe concede um lugar no fim do Credo. Nas entrelinhas desse Credo se esconde o receio de uma igreja por demais profética. Aliás, já no início do século III, Tertuliano tinha escrito com todas as letras que a igreja emergente expulsou os profetas, afugentou o Espírito (prophetiam expullit, Paracletum fugavit). A igreja católica herdou esse temor mal confessado do Espírito Santo e evitou se referir a ele ao longo de muitos séculos.
Mas, como sempre acontecem novidades na história, aparece uma defesa do Espírito Santo, muitos séculos após Niceia, onde menos se espera: na filosofia moderna, entre descrentes e críticos da religião. Diante da vitória da Revolução Francesa em Paris, o filósofo alemão Hegel elabora, na sua ‘Fenomenologia do Espírito’ (1807), uma teoria acerca da importância fundamental do que ele chama de ‘Espírito verdadeiro’, na construção da história humana. Outros filósofos da época, Kant e Diderot, o acompanham. Tomando emprestada de Diderot a imagem do tecelão, Hegel escreve que o Espírito ‘tece sua rede’ em silêncio, com paciência e perseverança. Diderot ainda usa outra imagem, a de um tecido totalmente impregnado por algum líquido. Quando um corpo social se encontra totalmente impregnado de ideias novas, a revolução factual é fácil. Ela pode até acontecer sem derramamento de sangue. Escrevo o termo ‘Espírito’ com maiúscula, pois se trata aqui deveras do Espírito Santo. O velho sistema cai por si mesmo, como um vestido que não serve mais. No silêncio de inúmeras ações inovadoras, realizadas no dia-a-dia da vida, o Espírito vai abrindo espaço para que - no momento apropriado - sua dinâmica se manifeste e provoque uma efetiva mudança na sociedade como um todo. Segundo Hegel, a revolução factual é uma decorrência natural da reforma espiritual. Kant diz mais ou menos o mesmo quando usa a imagem de um motor que unifica e propulsiona os mais diversos elementos que se encontram dispersos na realidade da vida. A pessoa ‘espiritualmente unificada’ não se deixa distrair, ela só se interessa pelo ‘Espírito’, ou seja, pelo que realmente importa.
Estamos aqui, no final do século XVIII, época da Revolução Francesa, diante de um inesperado reencontro entre a intelectualidade ocidental e o espírito profundo da Bíblia, que desde as narrativas patriarcais usa a imagem do espírito (ruah, sopro) para significar ações silenciosas, cotidianas, unificadoras e impulsionadoras, capazes de mudar o mundo. O âmago da revolução, portanto, não reside no movimento violento e estrondoso das armas (embora essas sejam por vezes indispensáveis para confirmar o processo), mas na ação silenciosa e tenaz do Espírito no íntimo das pessoas. O reencontro entre Bíblia e pensamento moderno, operado por Hegel e consortes, põe fim à leitura platônica da obra do espírito, que durante longos séculos predominou na literatura cristã. No pensamento platônico, como sabemos, a ‘espiritualidade’ não tem nada a ver com a vida dos corpos com seus problemas ‘materiais’. Mas, inesperadamente, filósofos modernos da envergadura de Hegel, Kant e Diderot fornecem aos cristãos de hoje uma senha de acesso aos documentos de sua própria tradição. O mesmo se diga de um filósofo do século XX, o marxista Ernst Bloch, que, em seu ‘Princípio Esperança’ (‘Das Prinzip Hoffnung‘, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1949) escreve que Jesus ‘incorpora’ o Espírito Santo, vive o ‘sonho diurno’ de um ‘mundo diferente’, e assim acumula energias em prol da mudança, em contraste com o conformismo inerente às religiões hierarquizadas.
- A tradição.
Essas pinceladas apelam para a seguinte reflexão: ao longo desses dois mil anos de história cristã, o Pentecostes foi vivido nos mais variados contextos e teve nomes e protagonistas diferentes. Isso nos traz a seguinte reflexão: ao querer falar do pentecostalismo, não se pula direto do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos aos nossos dias. Há de se passar pela ‘tradição’. Uma tradição nos deu um Paulo de Tarso, um Bento de Núrsia, um Joaquim di Fiori, um Francisco de Assis, um Lutero, um Calvino, um Zwingli, um Inácio de Loyola, um Domingos de Guzmán, um Armínio, um John Wesley, uma Hildegarde de Bingen, um Mestre Eckhart, uma Teresa de Ávila, um João da Cruz, um Antônio Conselheiro. Uma tradição tão diversificada que o estudioso pentecostal Samuel Pereira Valério, numa entrevista que captei na Internet, declara: existem profundas diferenças entre os grupos que se dizem pentecostais. No que se costuma chamar ‘pentecostalismo’ (em singular) atuam na realidade complexos e diferenciados cruzamentos entre arminianos, calvinistas, batistas, presbiterianos, metodistas, quakers. Há como detectar mesmo mútuas influências entre grupos pentecostais e participantes de movimentos carismáticos católicos.
Ao escrever estas linhas, sinto-me de repente como navegando numa imensidão oceânica. Enxergo no horizonte longínquo a imagem da ‘Iluminação’ de Buda, recordo a Visita do Anjo Gabriel a Maomé, relembro o Livro dos Aforismos de Confúcio, entrevejo a Satyagraha de Gandhi. Imagens e mais imagens da atuação de ‘Sopros de Deus’ sobre a vastidão do mundo. Aí me volta a frase de Jesus: O vento sopra onde quer, você entende sua voz sem saber donde vem nem para onde vai. Assim vai todo homem nascido do Sopro (Jo 3, 8). Um Sopro de Deus em Nazaré, Jerusalém e Corinto, mas também em Nepal, em Meca, na China, no Brasil.
Não posso deixar de dizer aqui, dentro do tema ‘tradição’, umas palavras sobre o catolicismo, religião em que nasci e me criei. Durante longos séculos, o catolicismo foi a instituição mais poderosa das sociedades ocidentais, com seu papado no topo, suas dioceses espalhadas pelo mundo, suas paróquias a marcar as horas, os dias, as semanas, os anos e os momentos das vidas das pessoas, ou seja, a acompanhá-las do nascimento à morte, por meio de ritos, pregações, sacramentos, regras de conduta, principalmente pela criação de um impressionante imaginário. Igrejas no centro das aldeias, e no meio das cidades a catedral. Mitras, batinas, estolas. A época gloriosa do catolicismo se situa na Idade Média, quando - ao lado de retumbantes sucessos - se cometeram erros gigantescos. A hierárquica eclesiástica da época incorreu no erro fatal de construir uma cristandade sem praticamente nenhuma referência à irrupção do Espírito de Deus no mundo. Um impressionante imaginário de poder e glória ocultou a ação do Espírito.
Esse desvio gigantesco deixa hoje não poucos católicos perplexos. Cresce o número dos que se dão conta que resgatar o sentido original do cristianismo é coisa difícil para os católicos. Difícil abandonar a postura psicológica, a mentalidade de quem foi educado dentro da ideia de uma instituição eclesiástica eterna e imutável, na ilusão de uma sociedade ‘cristã’ transmitida por ‘osmose’, pela simples transmissão da cultura na sucessão das gerações.
Esse catolicismo ‘sem Espírito’ facilitou o surgimento da atual religião, mundial e exclusivista, do mercado. Se, durante séculos, se disse: ‘extra ecclesiam nulla salus’ (fora da igreja não há salvação), agora se diz ‘there is no alternative’ à religião do mercado. O mercado regula tudo, como um Deus. Distribui, equilibra, põe ordem nas coisas. Na realidade cria ricos extremamente ricos e pobres extremamente pobres. Por causa do background católico absolutista, foi relativamente fácil, para os pregadores da religião do mercado, convencer as pessoas do poder absoluto do mercado. Na vida cotidiana, as regras não sofreram muita alteração e muitos nem sentiram a transição.
- A ‘pentecostalidade’.
Como tencionei mostrar neste texto, a atual apropriação política do pentecostalismo não esgota nem de longe as potencialidades desse modo de se confessar o cristianismo. Existe, no pentecostalismo, muita riqueza que escapa a essa apropriação.
Eis o ponto que chamou a atenção de alguns dos bispos católicos que participaram do Concílio Vaticano II, realizado em Roma entre 1962 e 1965. Ali despontou, embora de modo velado, sem nome nem qualificação, o tema do pentecostalismo. Aliás, foi no contexto desse despertar que nasceu o neologismo ‘pentecostalidade’.
Isso se deu por ocasião de uma discussão, na Aula Conciliar, sobre o ‘carisma’ (veja o verbete ‘Carisma’ no ‘Dicionário do Concílio Vaticano II’, editado por Paulinas e Paulus, São Paulo, 2015 [cuja coordenação coube, em parte, a Wagner Sanchez Lopes], pp. 78-80). Apresentaram-se duas posturas frente ao ‘carisma, dom do Espírito Santo’. Uma, defendida pelo Cardeal italiano Rufini, representou a doutrina clássica: o carisma é um dom ‘extraordinário’, a ser exercido em submissão à autoridade eclesiástica. Outra, representada pelo Cardeal belga Suenens, sustentou que o carisma é um dom ‘ordinário’ do Espírito Santo, ou seja, livre e independente de ordenamentos eclesiásticos, embora sempre ‘ordenado ao bem da comunidade’. Enfim, uma adaptação da frase de São Paulo que já comentei acima: A cada qual se concede a manifestação do Espírito, sempre ordenado ao bem da comunidade (1Cor 12, 7). A Assembleia se posicionou do lado de Suenens e o tema da liberdade no Espírito apareceu em dois documentos conciliares: ‘Lumen Gentium’ (4, 7 e 12) e ‘De Ecclesia’. Mas, pelo resto, houve pouco interesse. O assunto passou quase despercebido, sem comentários. Como já escrevi, o termo ‘pentecostalismo’ nem chegou a ser mencionado. Acontece que o frade dominicano Yves Congar, um dos melhores teólogos participantes do Concílio, demonstrou interesse pelo tema e chegou a lançar o termo pentecostalidade (Dicionário, p. 80). Isso em diversos comentários seus, que aparecem no verbete acima mencionado do Dicionário do Concílio Vaticano II e particularmente no livro ‘A Palavra e o Espírito’, traduzido em português e editado pela Loyola, São Paulo, em 1989. A tese de Congar: uma pentecostalidade permeia toda a tradição cristã. O Espírito de Deus, que se revelou em Jerusalém a discípulos amedrontados, continua se revelando. Ele toma sempre a iniciativa, mas não segura o discípulo pela mão, não obriga, não dirige. Respeita nossa liberdade. Ele ‘sopra’.
Para terminar escrevo algumas orientações de leitura que me parecem condizer com uma compreensão ‘pentecostal’ do cristianismo:
* Aprender a ler a Bíblia segundo o modo em que os antigos judeus a leram, ou seja, seguir o modo ‘midrash’ dos antigos rabinos: contar as histórias com forte ingrediente imaginativo.
* Abandonar uma leitura exclusivamente linear dos textos a favor de uma leitura mais condizente com as circunstâncias concretas da vida vivida. Isso implica em ver nos textos disponíveis peças de um ‘quebra-cabeça’ a ser montado pelo leitor atual. Operação delicada, decerto, que consiste, por exemplo, em retirar o tema pascal do foco e focar o tema pentecostal, ou seja, relacionar a narrativa sobre a ressurreição de Jesus ao evento pentecostal e não ao evento pascal. Pois a ‘semana santa’ é a semana da derrota (aparente) do movimento. Ela termina com o abandono dos discípulos, que deixam Jesus só. Pentecostes, pelo contrário, realça a recuperação da coragem por parte desses discípulos, após meses (ou anos? quem sabe?) de insegurança, abatimento e vontade de abandonar o projeto de Jesus.
* Recolocar narrativas esparsas, como se fossem peças do um quebra-cabeça, numa grande narrativa de recuperação do movimento de Jesus após o trauma da crucifixão, como fiz na apresentação do item 2 deste texto, ao ler a narrativa da paixão de Jesus e do abandono dos discípulos numa perspectiva pentecostal. Quer me parecer que essa narrativa esteja mais próxima do realmente vivido. Mas, claro, é assunto para discussão.
* Termino com o versículo 46 do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos:
(após Pentecostes) cada dia, com constância e unanimidade, eles se dirigiam ao Templo, dividiam o pão em suas casas e se alimentavam com alegria e de coração simples. O povo inteiro os olhava com simpatia. Não importa que o templo seja budista ou umbandista, católico ou pentecostal. O que importa é que se divida o pão com os que não o têm.
- Recomendo a leitura do artigo ‘Hermenêutica Bíblica: refazendo caminhos’, de José Ademar Kaefer (
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