Genildo Santana
Como falar de Deus
Depois de Auschwitz?
Vocês se perguntam,
Aí, do outro lado do mar, na abundância...
Como falar de Deus
Dentro de Auschwitz?
Se perguntam aqui os companheiros,
Carregados de razão, de pranto e de sangue,
Em meio à morte diária
De milhões...
Dom Pedro Casaldáliga.
Zygmunt Bauman conceituou a sociedade como Modernidade Líquida. O sociólogo polonês se refere a uma nova época, essa nossa, em que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. O conceito opõe-se claramente ao conceito de modernidade sólida, quando as relações eram solidamente estabelecidas, tendendo a serem mais fortes e duradouras.
Em excelente livro lançado em 2010, Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX perdeu espaço para uma nova forma de organização opressora e igualmente coercitiva: a violência neuronal. O que significa essa nova modalidade? Simples. As pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados, tornando elas mesmas vigilantes e carrascas de suas ações. Basta ver as metas a serem batidas nas empresas e a necessidade de se dar bem a qualquer custo.
Essa premissa imperativa do "eu consigo", e mais, sou obrigado a conseguir, e do "yes, we can" (pronunciada na posse de Barack Obama como Presidente dos E.U.A. e reproduzida como verdade universal) tem gerado um aumento significativo de doenças como depressão, transtornos de personalidade, síndromes as mais variadas.
Aliada a tantas outras sociedades (do consumo, do capital, por exemplo), vivemos a sociedade do linchamento. O que não se constitui uma novidade, uma vez que o linchamento, com outros nomes e práticas também várias, foi um recurso utilizado em todas as sociedades, gerando os excluídos, os párias, a ralé, os deserdados, os proscritos, os jogados ao Xeol.
A palavra Linchamento é comumente atribuída ou referenciada ao coronel Charles Lynch, que praticava o ato por volta de 1782, durante a guerra de independência dos Estados Unidos, ao tratar dos pró-britânicos. Os pró-britânicos eram enforcados. Mas é também atribuída ao capitão William Lynch (1742-1820), do condado de Pittsylvania, na Virgínia, que manteve criou um comitê da ordem durante a revolução, por volta de 1780.
Eram criados grupos de linchamento por toda parte. Eram chamados de Vigilantes, Reguladores, Posse (quando em perseguição) e praticavam, à revelia da lei, linchamentos. Entre muitos bandidos, foras-da-lei, outlaws, eram enforcados inocentes pelos mais variados motivos e/ou pretextos, geralmente de ordem econômica e política.
As redes sociais, paradoxalmente individualistas ou nada sociais, tem uma contribuição singular a esse novo modo de linchamento: Caiu na rede social, foi linchado. Linchado não só nas redes, mas na vizinhança, na família, no trabalho, no grupo de amigos, na igreja, no clube. É uma nova forma de linchamento.
O que está por trás dessa atitude linchatória nas redes sociais? Umas pistas: a infantilidade de se incomodar com tudo que se lê e se vê nas ditas redes. A arrogância de achar que se pode opinar sobre tudo e todos (na grande maioria, realidades que não dizem respeito ao navegante). A imaturidade, intelectiva e humana, de se considerar guardião de valores que o outro não cumpriu.
Essas atitudes e realidades nos provocam a um aceno ético e cristão.
Como cristãos, podemos nos perguntar? Como falar de Deus em uma sociedade assim? Como falar de Deus numa sociedade do julgamento? Como seguir a Cristo, que se absteve de julgar, nessa lógica da condenação? Como ser Cristão num mundo da competição e não da colaboração (co-laborar, trabalhar junto, construir junto)? Numa sociedade muito competitiva e pouco cooperativa, há espaço para Deus?
Temos um Auschwitz pandêmico e virtual. As vítimas tombam ante seus carrascos. Auschwitz simbolizou um período e um continente. Havia, em Auschwitz, a profanação do nome de Deus. A pergunta de Dom Pedro Casaldáliga é legítima. Como falar de Deus, depois ou dentro de Auschwitz?
Como falar de Deus no Brasil de hoje? Uma sociedade líquida, de relações e experiências frágeis. Onde nada dura, nem materialmente, nem sentimentalmente, nem religiosamente. Não é por acaso, uma sociedade cansada, nervosa, destruída por dentro, sem entusiasmo (sem Deus dentro).
A experiência de Deus não é líquida. Cansativa, consumista, capitalista, nem linchatória. É uma experiência radical, transformadora, humana, axiológica. Convém questionarmos se, de fato, a vivência religiosa nos dias atuais propicia essa experiência.
Para Jorge Larrosa, experiência é algo que me passa, não sendo o que acontece, mas algo que me acontece, que me toca.
A experiência supõe, em primeiro lugar, um acontecimento ou, dito de outro modo, o passar de algo que não sou eu. E “algo que não sou eu” significa também algo que não depende de mim, que não é uma projeção de mim mesmo, que não é resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de minhas representações, nem de meus sentimentos, nem de meus projetos, nem de minhas intenções, que não depende nem do meu saber, nem de meu poder, nem de minha vontade. “Que não sou eu” significa que é “outra coisa que eu”, outra coisa do que aquilo que eu digo, do que aquilo que eu sei, d o que aquilo que eu sinto, do que aquilo que eu penso, do que eu antecipo, do que eu posso, do que eu quero. (LARROSA, 2011. p. 05).
Remetendo á experiência religiosa, de conversão, convém nos perguntarmos se realmente está acontecendo essa experiência, essa conversão, num país considerado um dos mais cristãos do mundo.
Os linchadores se diziam cristãos, assim como cristãos se diziam e dizem ainda os membros da Kul-klux-can (inclusive utilizando uma cruz como símbolo dos linchamentos). Cristãos se diziam os nazistas, como dizem os capitalistas neoliberais dos tempos atuais. Cristãos se diziam os que queimavam os ditos hereges em tempos medievos, como cristãos se dizem os que apoiam políticas revanchistas, persecutórias. Cristãos se diziam os escravistas da modernidade, como se dizem os racistas de hoje. Cristãos se diziam os monarcas absolutistas que utilizavam o Direito Divino dos Rei, tal como se dizem os governantes de hoje.
Cristãos também nos dizemos. Dizemos. Entre Dizer e Ser há, como diz Jessier Quirino, um pulo de grilo. Como se apregoa que os fatos falam por si, quem é não precisa dizer. Não precisa se afirmar o óbvio.
Hemos que repensar o cristianismo. O levar Deus a sério. Levar a sério as palavras e os ensinamentos de Jesus. Brincar de e com religião é perigoso.
Tarefa de cada um e da Igreja enquanto instituição.
A sociedade cristã ou se assume como tal ou continuaremos a linchar, seja de que forma for, o Outro. O que na religião chamamos de irmão.
E, sem julgamentos, pergunto: Isso é Ser cristão?