Genildo Santana
ão poderia me furtar de escrever algo sobre um livro que foi, em minha vida pessoal e em minhas pesquisas, um divisor de águas: Batismo de Sangue, de Frei Betto, lançado em 1983. Ao título acompanha um subtítulo: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighela.
Neste ano de 2023, em meio ao turbilhão político, religioso, epistêmico, humano no qual estamos passando, creio ser providente falar sobre esse que foi um dos primeiros relatos, depoimentos sobre a Ditadura civil-militar de 1964, que tanto mal causou aos brasileiros, em todos os sentidos. Desde sua primeira publicação, Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighela teve sucessivas reedições no Brasil e no exterior.
Li-o, pela primeira vez, em 1994, quando seminarista, em João Pessoa, na Paraíba. Como lembro do impacto que a leitura me causou por tudo que contava sobre a ditadura, as torturas, a luta armada e os nomes que desfilaram em minha vida pela primeira vez. Relato denso, forte, impactante, feito com a inteligência e a Alma de um homem que viveu, viu o que escreveu.
O livro surgiu como um libelo aos dominicanos – Frei Tito de Alencar, Frei Osvaldo, Frei Fernando de Brito, Frei Ivo Lesbaupan, Frei Betto – sobre seu envolvimento com Carlos Marighela e a ALN (Ação Libertadora Nacional), grupo armado que lutava contra a Ditadura. Os dominicanos foram acusados de serem os responsáveis pela morte de Marighela, uma vez que nas torturas feitas pelo delegado Fleury e sua equipe os dominicanos participaram involuntariamente de todo esquema da emboscada que vitimou o guerrilheiro, no dia 04 de Novembro de 1969. Depois, ainda amargaram quatro anos de prisão.
Livro dividido em 06 capítulos, relata o envolvimento dos dominicanos, especificamente Frei Betto com Carlos Marighela e o esquema criado para proteger, esconder e tirar do país pessoas perseguidas pela ditadura, todos acusados de comunistas e terroristas. O sexto capítulo se constitui todo em um relato sobre a incrível história de Frei Tito, intitulado Tito, a paixão.
Feita essa preliminar, vamos, como diz o próprio Frei Betto, “igual Jack, o estripador: por partes.”
1 – BATISMO DE SANGUE...
O próprio título do livro é crível: fala de um batismo. Não por água, como fazia João Batista, o primo de Jesus. Não pelo Espírito Santo, como faz toda a tradição da igreja. É um batismo no sangue. Sangue dos que morreram pela fé, sangue dos torturados no Dops, no Doi-Codi, no Cenimar, na Oban, principais centros de tortura do período ditatorial. Quem é batizado no sangue possui um quê qualquer de diferente, pela experiência que passou. O batismo no sangue dos que deram a vida pelo evangelho e pelos valores cristãos. Batismo no sangue dos mártires. Vale lembrar sempre aquela afirmação do padre Luiz Espinal que diz:
O povo não tem vocação de mártir. Quando o povo cai em combate, ele simplesmente o faz...não é necessário dar a vida morrendo, mas trabalhando...se um dia lhes toca dar a vida, eles o farão com a simplicidade de quem cumpre uma tarefa a mais. (Espinal apud Codina in: Para Compreender a Eclesiologia a partir da América Latina, paulinas, São Paulo, 1993, pg. 84).
Padre Luiz Espinal foi assassinado, na Bolívia, aos 21 de Março de 1980, pouco depois de escrever essas linhas.
O batismo de sangue marcou a igreja primitiva, na perseguição romana dos primeiros séculos da era cristã assim como marcou a igreja da América Latina na segunda metade do século XX, perseguida pelas ditaduras, pelos próprios cristãos que apoiavam as ditaduras, pela política, pela economia. Nada mudou de lá pra cá, não é?
Pois bem, Frei Betto fala em seu livro de cristãos que foram batizados no sangue. Sangue jorrado em torturas – das mais variadas e conhecidas formas -, no calabouço das prisões, nas “veias latino-americanas”, para lembrar Eduardo Galeano.
2 - ...os dominicanos e a morte de Carlos Marighela.
Os dominicanos, especificamente os que Frei Betto fala no livro, Tito, Fernando, Osvaldo, Ivo e outros, viram na luta de Marighela um meio legítimo de lutar contra a opressão mantida pelo Estado ditatorial brasileiro. Assim, se encontraram com Marighela e aceitaram dar um apoio logístico, com a condição de não pegarem em armas. A tarefa que lhes coube foi a de esconder guerrilheiros, transportar pessoas perseguidas e, principalmente Frei Betto, tirá-los do Brasil, para não morrerem, pelo que ficou conhecida como “a passagem pelo Sul” que era a saída pela Argentina e Uruguai, a partir do Rio Grande Do Sul, onde Frei Betto foi residir. Enquanto cursava Teologia, sob a proteção do seu primo, também teólogo, João Batista Libâneo, Frei Betto tirou do Brasil muitos perseguidos pela ditadura. Essa era a participação dos dominicanos na luta contra a ditadura. Levados pelo evangelho, numa equação dita pelo próprio Frei Betto, de Santo Tomás de Aquino: “Havendo um tirano em situação prolongada, e não havendo outro meio de tirá-lo do poder, a luta armada é legítima desde que garantidas as chances de vitória e não cause mal maior que o próprio tirano.” Semelhantes ao padre Camilo Torres da Colômbia, ao padre Camilo Cienfuegos, em Cuba, os dominicanos apoiaram as lutas de libertação por mandamento evangélico.
Descobertos, os freis Fernando e Ivo foram presos. Torturados, relataram como agiam. Frei Tito foi preso, Marighela morto numa emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo e, posteriormente, Frei Betto também foi preso. Foram quatro anos de prisão, indo de 1969 até 1972.
O delegado Fleury espalhou que Marighela fora morto com a ajuda dos dominicanos. Foi para defendê-los dessa afirmativa que Frei Betto escreveu o livro Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighela. Os dominicanos ficaram “marcados” como os traidores de Marighela. Defende Frei Betto, com farta documentação, que os dominicanos foram usados pelo delegado Fleury, além de que eles foram obrigados a atraírem Marighela à emboscada na Alameda Casa Branca.
3 – CARLOS MARIGHELA
Filho de baianos, com ascendência italiana, nascido em 1911, poeta, militante do PC (Partido Comunista), preso pelo Estado Novo de Vargas, deputado na Redemocratização (1945-1964), clandestino em 1964, quando levou um tiro da polícia no cinema, o que o ensejou a escrever Porque resisti à prisão, Carlos Marighela é personagem principal do livro Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighela. Ele, então, um dos maiores inimigos da ditadura civil-militar. O mais procurado, o mais visado. Com alguns livros publicados, Marighela rompeu com o seu partido e foi pra luta armada:
Na conclusão de que ‘a ditadura deve ser derrotada’, Marighela admite que ‘o único meio para a reconquista da democracia em consonância com a realidade econômica e social brasileira, é a luta de massas com as forças populares e nacionalistas à frente. (BETTO, 1983, p. 19).
Tendo participação no sequestro do embaixador dos Estados Unidos da América, Charles Elbrick, história contada no livro O que é isso, companheiro? De Fernando Gabeira, Marighela passou a ser o procurado número 1 da ditadura. As forças militares queriam, a todo custo, a cabeça de Marighela. Batismo de Sangue: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighela nos mostra um Marighela republicano, democrático, poeta, fiel às suas próprias ideias e firme em suas convicções, que lutou pela liberdade do povo brasileiro e assim o fazendo, foi às últimas consequências. Ligado aos dominicanos, Marighela foi emboscado e morto pelo delegado Fleury, aos 04 de Novembro de 1969. O que lemos no livro é a vida e a história de um brasileiro que lutou contra as forças reacionárias e que deu a vida pela liberdade.
Quando preso pelo Estado Novo, fez Marighella, no Presídio Especial em São Paulo, em 1939, um soneto intitulado Liberdade que é o resumo de sua visão de mundo, de sua luta, de seu sentimento. Ei-lo:
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome”.
Frei Betto nos mostra em Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella que a morte de Marighella foi o início do fim da luta armada no Brasil, uma vez que ele encarnara como ninguém o espírito da luta armada e foi a inspiração dos que lutavam contra a ditadura civil-militar.
4 – FREI TITO
Frei Tito é outro personagem do livro Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. No último capítulo Tito, a paixão, Frei Betto nos dá a biografia e a psicologia do seu confrade. Psicologia afetada pelas torturas sofridas na Oban (Operação Bandeirantes), pelo Capitão Albernaz, aquele que “deixava o coração em casa” quando ia trabalhar e “tinha horror a padre”.
Cearense, estudante de Filosofia e Dominicano, Frei Tito de Alencar Lima nos é apresentado por Frei Betto como um jovem poeta, apaixonado pela vida, que tocava violão e que amava o povo brasileiro. Também Frei Tito apoia Carlos Marighella e também ele é perseguido, sendo preso pela ditadura.
Torturado, Frei Tito ficou com sequelas físicas e psicológicas. O documento que relata sua tortura, escrito por Frei Betto a partir do seu relato na cadeia, foi publicado no exterior, o que aumentou o furor dos militares contra ele. Exilado do Brasil, quando foi um dos que foram trocados pelo embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, em 1970, Frei Tito vagou por vários conventos da Europa. Via o delegado Fleury em todos os lugares, em todos os quartos. Quando comungava vinha-lhe à lembrança os choques elétricos na língua. Frei Tito ficou internamente destruído. Cometeu suicídio aos 10 de agosto de 1974, em Éveux, na França. Seu suicídio deve ser visto sob uma ótica diversa. Ao cometer suicídio, Frei Tito liberta, em seu pensamento, o Brasil de torturadores como o capitão Albernaz e o delegado Fleury. Em um dos depoimentos, diz Frei Fernando de Brito:
Dentro da imaginação dele estão todos os torturadores, mas também todas as pessoas queridas que são perseguidas. Frei Tito não vê outra solução. No momento que ele morre, ele mata o torturador que habitava sua cabeça e liberta aquelas pessoas queridas que estavam sendo torturadas e que habitavam sua cabeça. É de uma....Eu não conheço coisa mais dramática...eu não conheço. (In: Documentário ditadura militar: parte 2. https://www.youtube.com/watch?v=f7robb02Fx0 acessado em 15 de janeiro de 2023).
Anos depois da sua morte, os dominicanos fizeram o traslado dos restos mortais de Frei Tito da França para o Brasil e os sepultaram em Fortaleza.
5 – O FILME
Em 2007, o cineasta Helvécio Ratton, irmão de Frei Ratton, levou ao cinema o filme Batismo de Sangue, inspirado no livro de Frei Betto. Fidedigno ao livro, o filme traz os sonhos dos dominicanos de reestabelecer a democracia, do fim da ditadura, de uma vida melhor para todos. Traz às telas as cenas de torturas, bem como todo o drama vivido por Frei Tito. Para tanto, Helvécio Ratton reuniu por dois dias em São Paulo Frei Betto, Frei Osvaldo, Frei Fernando e Ivo Lespbaupan, não mais frade. Os depoimentos deles serviram para a construção do filme e dos personagens por parte dos atores.
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Publicado há 40 anos, Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella continua sendo um livro imprescindível, capaz de suscitar indignação nas almas mais sensíveis. Uma leitura que martela a Alma, que enriquece a mente. Uma releitura que elucida muito do que hoje está acontecendo, seja em nível político, seja em nível eclesiológico.
Respondendo a um leitor que indagara que a leitura fora difícil, que doía, disse Frei Betto:
“- Se foi difícil pra você ler, imagine o que foi pra mim, escrever...”