Eduardo Hoornaert
O Apocalipse é um texto tipicamente semita. A exuberância e extravagância das imagens mal combinam com as ideias claras e distintas de Descartes. Isso faz com que se corre o perigo de não perceber que o Apocalipse é o texto mais claro do Novo Testamento, quando se trata de demonstrar a radicalidade das opções e dos comportamentos de Jesus. Eis o que comento aqui brevemente.
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Para ler com proveito esse livro fascinante, é preciso observar que o verbo grego ‘apokaluptein’, que está na origem do substantivo ‘apokalupsis’ (apocalipse), pode ser entendido de dois modos. Pode significar ‘desnudar, revelar uma realidade oculta, descobrir, tornar conhecido’ ou ‘levantar o véu que cobre o futuro, prever o futuro’. Os primeiros vinte capítulos do Apocalipse ‘desnudam uma realidade oculta’ e, desse modo, oferecem a chave de uma interpretação profunda desse livro ardente e enigmático. Nesses vinte capítulos vai uma ‘revelação’ do sentido da história de Jesus. Só nos dois últimos capítulos (21 e 22), o Apocalipse pretende ‘levantar o véu que cobre o futuro’ (na visão da Nova Jerusalém que desce do céu), o que não deixa de ser futurologia.
Para ler o Apocalipse (no masculino) com proveito, é importante guardar em mente essa passagem entre dois sentidos do termo ‘apocalipse’ (no feminino) e não aplicar ao texto inteiro do livro Apocalipse um sentido que só aparece nos últimos dois capítulos do texto. Em outras palavras: neste texto breve, não comento os contornos brilhantes de uma Nova Jerusalém, que aparecem nos dois últimos capítulos, nem as alegrias incomparáveis do encontro entre Esposo e Esposa, nem a Revelação das revelações, nem o Eis que crio tudo de novo (21, 5), o Alfa e o Ômega, o Início e o Fim de toda a história (22, 13). São temas que não abordo aqui. Meu texto é de teor historiográfico-heurístico e não hermenêutico, não emite juízos de valor. Ou seja, abstenho-me de comentar os últimos capítulos do Apocalipse.
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Nos primeiros vinte capítulos, o visionário escritor do Apocalipse ‘desnuda’ o Império Romano. Entre todos os livros do Novo Testamento, o Apocalipse expressa com maior radicalidade o que significa, em última instância, o posicionamento de Jesus diante do poder político vigente: a terra está entregue ao poder do Grande Adversário de Deus, o Satanás, que cria divisão e vive de mentiras.
João, o visionário, irmão e companheiro na opressão (1, 9), está na ilha de Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus (1, 9). Condenado ao exílio e a trabalhos forçados numa pedreira explorada a mando do Imperador Domiciano, ele denuncia a loucura mortífera do poder totalitário.
Na época, as comunidades cristãs são largamente minoritárias e descriminadas. Nas cidades de Éfeso, Pérgamo, Esmirna e Laocideia, onde existem pequenas comunidades de discípulos/as de Jesus, o impressionante poder econômico do Império Romano se expressa em imponentes e esplêndidos templos, dedicados a Apolo, Artemis e Esculápio. Além do Templo da Deusa Roma, venerada por todo canto.
Nesse cenário, o Apocalipse, obra de furor e sangue, desvela Jesus com espantoso poder de imaginação. João levanta o véu e revela a trágica realidade da situação em que os cristãos se encontram. Ele enxerga a Besta que perverte o mundo, mas, ao mesmo tempo, se extasia diante da luz deslumbrante do Cristo ressuscitado. Um filho de homem (1, 13), um cordeiro que, degolado, fica em pé (5, 6), um cavaleiro vitorioso (19, 11).
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O simbolismo do Apocalipse já nutre o imaginário cristão ao longo de dois mil anos: afrescos, mosaicos, vitrais, miniaturas, tapeçarias, gravuras, pinturas, dramatizações, filmes, livros, poemas, textos eruditos, hoje vídeos e séries televisionadas. O filho de homem em meio a candelabros, uma espada na boca, tendo sete estrelas na mão direita, rodeado de quatro animais e oitenta anciões em seu redor. O cordeiro imolado, os 144 mil eleitos, os quatro cavaleiros, o cavaleiro branco.
Por meio de um turbilhão de imagens estranhas e provocativas, o Apocalipse vai ao âmago da questão: ser homem ou mulher, em qualquer época e dentro de qualquer cultura ou sociedade, é engajar-se numa luta sem tréguas contra o Grande Adversário de Deus, a Besta. Concretamente (no caso de João), contra o Império Romano. Transcorrendo pelos séculos, o texto se aplica a sucessivos Impérios. É a mesma Besta, que não cessa de organizar e reorganizar o mundo segundo seus interesses, considera a liberdade uma ilusão, domina as mentes dos seres humanos, elimina os oponentes. A mesma Besta, a mesma Babilônia, a mesma dominação.
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A lição definitiva do Apocalipse: viver é resistir, na esperança da vitória final do Reino de Deus. O último livro da Bíblia é um texto que capta com rara profundidade os intentos de Jesus e traça o caminho do cristianismo no decurso da história. Redigido no final do século I por um exilado político, não só retrata a situação das comunidades cristas da Ásia Menor no final do primeiro século, mas se abre a uma perspectiva universal. Crítico impiedoso da cena política do momento e das pretensões abusivas do Império Romano da época, o autor cria imagens impressionantes e impactantes que se aplicam a um sem-número de situações históricas. Culminância da Bíblia, de uma força poética impressionante e de uma resolução admirável, o texto não envelhece. Um texto repleto de imagens impactantes e insinuações inquietantes. Um texto para hoje e sempre.
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Uma última observação. Na tradição cristã, desde cedo, o livro Apocalipse suscitou desconfianças e reticências. Só a partir do século IX, apareceu, com certa regularidade, na listagem de textos do Novo Testamento permitidos para leitura nas comunidades. O que salvou o texto da pecha de ‘heresia’, reside no fato que ele, desde o início, circulou sob o nome de João apóstolo. Assim foi-nos guardado esse texto sem par, testemunho incomparável do movimento de Jesus em suas origens.