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A Profecia como traço comum entre crentes e ateus: o caso de Ezequiel (622-570 a.C.) e Friederich Engels (1820-1895)

 

 

Alder Júlio Ferreira Calado 

 

Pode haver algo em comum entre crentes e ateus? De que decorre a percepção corrente de uma incompatibilidade insolúvel entre fé e ateísmo? Que avanços têm sido feitos, inclusive no âmbito das pesquisas teológicas, quanto à posições ateístas e agnósticas? Que avanços, ainda, têm sido feitos no campo dos estudos bíblicos, com o emprego da chamada hermenêutica reversa? É com base em tais questionamentos, que cuidamos de buscar alguns elementos de resposta às nossas indagações. Iniciamos por uma breve notícia biográfica sobre cada um dos personagens acima mencionados; em seguida, buscamos encontrar traços comuns entre os mesmos; ao final, tratamos de destacar consequências políticas e pastorais para os nossos dias.

 

Ezequiel, em seu contexto histórico 

 

Ezequiel viveu em uma terra e em um tempo bastante longínquos e, por isso mesmo, de difícil precisão histórica. Com efeito, por mais avanços que as ciências sobre a Antiguidade venham tendo, prevalecem muitas lacunas, principalmente em se tratando do conhecimento relativo a um longo período que alcança até seis séculos antes de Cristo. Tendo vivido na Palestina, circundada por povos de antigos impérios - em especial, o Império da Babilônia - , sua terra e sua gente eram alvo constantes de cobiça, ameaças e invasões. 

 

Ezequiel nascera de família privilegiada, de estirpe sacerdotal, educado e instruído para tornar-se também um sacerdote. Daí seus argumentos rebuscados, seu preparo intelectual. Ainda jovem, sentiu-se impactado pela Palavra de Javé, convocando-o ao exercício da Profecia, em terra estrangeira, vocação à qual, por razões compreensíveis, resiste por certo tempo, após o que, acaba acolhendo. A exemplo de outras figuras da elite política e religiosa de sua terra, Ezequiel sente-se compelido a deixar sua terra e sua gente e parte, como exilado, para a Babilônia, enquanto sua terra e sua gente viam-se invadidas e governadas por chefes do Império da Babilônia.

 

É, por tanto, no amargo exílio, que Ezequiel é chamado a profetizar. Disto dá testemunho o longo relato do livro a ele atribuído - o livro da Profecia de Ezequiel -, composto por 48 capítulos, ao longo dos quais, Ezequiel, recorrendo a uma linguagem apocalíptica, hermética - por vezes, parecendo delirar -, vai alternando visões ameaçadoras e punitivas contra as elites de sua terra, cobrando-lhes responsabilidade pela invasão dos inimigos: “veio a mim a palavra do SENHOR, dizendo: Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetiza, e diz aos pastores: Assim diz o Senhor DEUS: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar as ovelhas? Comeis a gordura, e vos vestis da lã; matais o cevado; mas não apascentam as ovelhas. As fracas não fortalecestes, e a doente não curastes, e a quebrada não ligastes, e a desgarrada não tornastes a trazer, e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com rigor e dureza” (Ez 34, 1-4).


Ao mesmo tempo, já ao final do seu livro, empenha-se em alimentar a esperança libertadora para o seu povo. A título de  ilustração, vale a pena destacar um pequeno trecho do capítulo 37 deste livro: “Dize-lhes pois: Assim diz o Senhor DEUS: Eis que eu tomarei os filhos de Israel dentre os gentios, para onde eles foram, e os congregarei de todas as partes, e os levarei à sua terra” (...) “E nunca mais se contaminaram com os seus ídolos, nem com as suas abominações” (Ez 37, 21).

Recorrendo à hermenêutica reversa, historicamente contextualizada, somos instados a não tomar as palavras, ao pé da letra, considerando a necessidade de uma interpretação adequada dos textos sagrados. Por exemplo, os crentes de hoje interpretam “Israel”, não como o atual Estado de Israel, mas como o “Novo Israel”, isto é, todo o conjunto de pessoas e povos oprimidos, em todo o mundo. Neste sentido, as palavras proféticas de Ezequiel constituem um bálsamo de esperança de libertação para todos os oprimidos da Terra, em luta pela libertação de todos os grilhões que afligem os pobres em sua enorme diversidade (A Mãe Terra, as mulheres vítimas de feminicídio e de toda sorte de violência, os povos originários, os afro-americanos e brasileiros, os camponeses, os operários, as vítimas de homofobia, os migrantes e refugiados, as pessoas com deficiência, as crianças, os jovens, os anciãos…).

 

Breve notícia biográfica de Friedrich Engels 

 

Friedrich Engels nasceu em Barmen, na Renânia, na Prússia, em 1820. Filho de uma rica família de industriais, com prósperos negócios na Inglaterra (Manchester), para onde foi enviado pelo pai, com a tarefa de supervisionar os negócios da família. Engels tinha, então, 22 anos. Ao perceber as precárias condições de vida e de trabalho dos operários ingleses, sentiu-se tomado de grande indignação, passando a buscar as raízes mais profundas daquela miséria. 

Sem deixar de cumprir as tarefas que a família lhe confiara, Engels, sobretudo com a ajuda de sua companheira Mary Burns, uma operária imigrante irlandesa, passa a visitar e a observa as condições subumanas de vida e de trabalho a que os operários ingleses estavam subjugados. Episódio que teve profunda consequência na vida de Engels, de modo a se consagrar à militância revolucionária, tanto prática quanto teórica, a partir de inúmeras leituras, registros e anotações sobre o modo de vida e de trabalho dos operários ingleses, o que resultou na publicação em 1845, do seu famoso livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, no qual Engels, com base em uma pesquisa multidisciplinar/interdisciplinar. Expõe, inicialmente, as condições históricas que determinaram a formação do proletariado, na Inglaterra, passando, em seguida, a descrever minuciosamente as condições sub-humanas dos operários ingleses e dos trabalhadores imigrantes irlandeses, ao mesmo em que descrevia e denunciava a raiz estrutural desta situação - a burguesia e seu respectivo modo de produção. 

Engels também se destaca por ter descoberto, antes mesmo de Marx, o potencial analítico da categoria “economia política”, sempre empregando o método do materialismo histórico-dialético, em que a dimensão da “Totalidade”, entre outras, se apresenta fecunda em suas análises, inclusive exercitando a multi/interdisciplinaridade, de modo a trabalhar heuristicamente diversos campos de saberes - da História à Antropologia; da Economia à Política; das Ciências Naturais à Educação; entre outras.

Em uma viagem à Alemanha, sua terra natal, Engels passa pela França, onde conheceu Karl Marx. Tornam-se amigos íntimos desde então, e, da parceria, brotam vários livros em coautoria. Ao mesmo tempo, tanto Marx quanto Engels escreveram diversos livros isoladamente. Mais do que Marx, Engels se dedicou a compreender a dimensão também contestatária da religião, razão pela qual passou a pesquisar e a perceber notáveis semelhanças entre o Cristianismo primitivo e o projeto socialista. Não foi por acaso que Engels também se empenhou na percuciente análise da “Guerra Camponesa da Alemanha”, cujo principal protagonista, o teólogo Thomas Muntzer, a quem Engels considera um modelo de revolucionário, líder de um movimento comunista que precede as lutas proletárias do século XIX. 

 

Na parceria com Marx, Engels não foi um mero coadjutor, mas também teve um reconhecido protagonismo - Florestan Fernandes, o reconhece como portador de luz própria. Engels sobrevive ao passamento de Marx (1883), vindo a partir quase aos 75 anos, em 1895, tendo conseguido pesquisar e publicar diversos escritos de Marx, inclusive o Livro II e o Livro III de “O Capital”.

 

O que há em comum entre eles?

 

Sem ignorar enormes diferenças entre ambos - históricas, geográficas, ideológicas, entre outras -, atenhamo-nos a alguns traços comuns de suas trajetórias. Um primeiro traço em comum tem a ver com sua origem de classe: ambos vêm da classe dominante. Por razões distintas, cada qual rompe com sua classe original, passando a denunciar as opressões cometidas sobre as classes populares, em seu tempo. Ambos, por alguma razão, tornaram-se migrantes, condição que os ajuda a compreender melhor o sofrimento dos “De Baixo”, e com eles solidarizar-se.  

 

Ao mesmo tempo em que se mantiveram firmes nas denúncias, cuidaram de alimentar a esperança libertadora de sua gente. Denunciar e anunciar constituem as principais marcas dos profetas, de ontem e de hoje. Cada qual a seu modo, ambos se revestem de uma força especial, de uma energia transformadora, de uma fidelidade à causa libertadora  de sua gente. Eram alimentados por uma espiritualidade reinocêntrica , uma mística revolucionária.

 

Que ensinamentos podemos colher do seu legado?

 

Retomando e reagindo quanto às questões inicialmente levantadas, pelo que acima escrevemos, observamos que, para além das evidentes diferenças entre os personagens-alvo de nossa reflexão - Ezequiel, movido pela sua vocação profética; Engels, tocado pela indignação e pela solidariedade com os oprimidos -, são capazes de romper com sua classe de origem, denunciando sua dominação e sua exploração, passando a solidarizar-se com as vítimas do sistema. Com isto aprendemos que não devemos confundir “Origem de Classe” e “Posição de Classe”. Também aprendemos que não há contradição insuperável ou insolúvel entre uma atitude de fé e o compromisso revolucionário. A este propósito, as pesquisas mais recentes desenvolvidas, por exemplo por teólogos e teólogas da Libertação, mostram seu esforço de ressignificar a categoria “Pobre”, nela percebendo para além da dimensão estritamente econômica, diversas outras, tais como a dimensão planetária (a Mãe-Terra sendo tratada não como objeto mas como sujeito de direitos); a dimensão de sujeitos dos povos originários, do Povo Negro, a dimensão feminista, a dimensão das vítimas da homofobia, a dimensão de sujeitos das pessoas com deficiências, entre outras, o que se tem tornado possível pelo exercício de uma espiritualidade reinocêntrica.

Outro aprendizado que podemos extrair desta reflexão nos remete aos Movimentos Populares: não é nada confortável a letargia de que vários deles se acham acometidos, diante de uma conjuntura desafiante, em que, no caso do Brasil, observamos certa omissão de vários Movimentos Populares, que, por vezes, parecem à espera de que as mudanças desejadas, se produzam de cima para baixo, haja vista os atuais conflitos em torno do orçamento da Nação, em que a enorme maioria do Congresso se mostra irredutível quanto a sua ação deliberada de usurpar o poder de gestão do Executivo. Sem a ação dos Movimentos Populares, não há saída à vista.

 

João Pessoa 16 de Agosto de 2024   

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