Alder Júlio Ferreira Calado
No próximo sábado, dia 22 de Março de 2025 – Dia Mundial da Água -, a data natalícia de José Comblin alcança 102 anos, mais um motivo para prestar-lhe nossa homenagem, pelos bons frutos por ele semeados, como ser humano, como discípulo de Jesus e como testemunha da boa nova do Reino de Deus. Certa vez, um dos membros do nosso Grupo Kairós. José Brendan, um Nova-Iorquino naturalizado brasileiro, disse sobre José Comblin que ele forma parte de um conjunto de teólogos e teólogas que vai ser lido no próximo milênio. De nossa parte, tendemos a avaliar seu legado profético, como estando próximo da comparação evangélica, em que Jesus diz acerca de todo discípulo da Boa Nova: “E ele disse-lhes: Por isso, todo o escriba instruído acerca do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”. (Mt 13-52).
Tal sentimento também experimentamos, ao revisitarmos seu livro “A Liberdade Cristã”. Petrópolis: Vozes, 1977, que nosso Grupo Kairós vem refletindo. As décadas mais recentes têm dado prova de uma impactante involução, seja ao interno de nossas sociedades, seja ao interno das Igrejas Cristãs, no que diz respeito aos fundamentos da Boa Nova do Movimento de Jesus, inclusive no tocante à Liberdade, na perspectiva do Evangelho e dos demais textos neotestamentários. Diferentemente de reconhecidos avanços deste tema, observáveis, por exemplo, nos anos 1970, quando apareceu este livro, constatamos um enorme retrocesso, dentro e fora das Igrejas cristãs.
O contexto sócio-eclesial em que o livro foi escrito, apresentava múltiplos sinais de esperança. Vivíamos, então, os esplendores da experiência do Concílio Vaticano II - ainda que precocemente já combatido pelas forças reacionárias, dentro e fora da Igreja Católica - sinais alvissareiros da Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín (1968); as CEBs prosperavam, no Brasil e na América-latina; a Teologia da Libertação se fazia vigorosa, por todo o nosso continente.
É preciso, todavia, reconhecer o espanto crescente que as conclusões do Documento final da conferência de Medellín suscitaram nas forças reacionárias internacionais, dentro e fora da Igreja Católica, o que pode ser atestado, por exemplo, pelo famigerado Relatório Rockefeller, de 1969 contendo sérias inquietações e estranhamentos diante do compromisso da Igreja latino-americana, com sua “opção pelos pobres”, inquietação e estranhamento que logo se converteriam em ameaça explícita à Igreja na Base e à Teologia da Libertação, que se constatam, nos inícios dos anos 80, nos Documentos de Santa Fé I e Santa Fé II durante o Governo Reagan, dos Estados Unidos. Ameaças que, direta ou indiretamente repercutiram na eleição do Papa João Paulo II, cujo longo pontificado (1979-2005), seguido pelo de Bento XVI (2005-2013), resultaram em longo período regressivo, de perseguições e punições a bispos progressistas e a teólogos da Libertação, a exemplo de Leonardo Boff e outros.
É neste contexto de avanços das perspectivas da opção pelos pobres, que se situa o livro de José Comblin (1977), no qual sustenta que a liberdade constitui o Cerne da Boa Nova anunciada, inaugurada e testemunhada por Jesus. Este anúncio dava sequência, e em novo estilo, à longa tradição de libertação, desde a antiga tradição do Povo de Deus, como referida, por exemplo, no livro do Êxodo (3,7ss). Liberdade também implica Libertação, operada pelos oprimidos, pela força do Deus Libertador.
Sempre ancorado nos Evangelhos Sinóticos e no Evangelho de João, e nos demais textos Neotestamentários, especialmente nas cartas paulinas autênticas o autor vai percorrendo e conferindo, passo a passo, o tratamento do tema Liberdade, sempre em busca, de identificar os seus traços mais fortes, na perspectiva do Movimento de Jesus. É assim que José Comblin passa a realçar os aspectos centrais - o significado, o sentido e o alcance da Liberdade Cristã. Um aspecto por ele destacado, nos remete à compreensão de que, para além do chamamento pessoal, a Liberdade implica uma resposta ao chamamento de todo um povo, a humanidade. No Projeto de Jesus, não faz sentido uma liberdade estritamente individual: eu não sou livre se o meu povo também não o é. Liberdade, no Projeto de Jesus, deve alcançar os seres humanos, em sua inteireza, e todos os seres humanos. Ainda que alguns se recusem a acolher sua proposta - porque o espírito do ressuscitado jamais impõe a liberdade, mas antes a propõe -, todos somos a ela vocacionados. Este aspecto, aliás, se acha também presente, em seu livro “Vocação para a Liberdade” (São Paulo: Paulus, 1998). Em um contexto marcado pelo retrocesso e pelo obscurantismo, dentro e fora dos espaços eclesiais, faz-se urgente retomar a dimensão comunitária da liberdade. Este aspecto é examinado pelo autor, sobretudo na última parte do livro.
José Comblin, pela sua longa e profunda formação teológica, se revela como um exímio especialista da figura do Apóstolo Paulo, sobre o qual consagra o livro Paulo Apóstolo de Jesus Cristo (Petrópolis, Vozes. 1993). Com efeito mantendo-se sempre atento a outros autores bíblicos e a outras fontes e teólogos, o autor ressalta a relevância das Cartas Paulinas autênticas, - Romanos, Coríntios, Tessalonicenses, Filémon entre outras -, delas fazendo questão de inserir importantes citações sobre o tema da Liberdade. Aí, cuida bem de destacar a distinção entre a Liberdade, que é dom do Espírito Santo da Lei que se insere no plano das religiões, nem sempre dóceis aos apelos do Espírito Santo, na Lei prevalecem as obras humanas frequentemente descoladas dos apelos da Divina Ruah, enquanto a Liberdade, sendo operada pelos seres humanos, o é pela força do Espírito do Ressuscitado: “Onde há o Espírito, aí está a Liberdade” (“Ubi Spiritus, ibi Libertas”).
Ao discorrer historicamente sobre as experiências humanas e do povo de Deus, do ponto de vista da Liberdade da Boa Nova do Reino de Deus e sua justiça, o autor expõe a posição paulina sobre a Liberdade, após o que traz à tona o sentido da liberdade, na perspectiva joanina. A terceira parte do livro reflete a dimensão comunitária da liberdade que o povo de Deus é chamado a testemunhar.
Antes de tecermos algumas considerações acerca das implicações e dos desafios dos tempos atuais diante da concepção e da prática da Liberdade, ocorre-nos assinalar a profunda coerência da linha argumentativa de José Comblin, aplicada também em diversos outros textos seus, a exemplo do que faz em “Vocação para Liberdade” (Paulus, 1998), “O caminho: Ensaio Sobre O Seguimento de Jesus” (Paulus, 2005), “A Profecia na Igreja” (Paulus, 2009). Todos estes se acham dinamicamente conectados com o exercício da Liberdade, na perspectiva e na dinâmica do Movimento de Jesus. No caso específico do livro “A Profecia na Igreja”, vale a pena rememorar, de passagem, alguns aspectos. Constatamos que o conceito de “Profecia” (tanto no plano bíblico, quanto na experiência histórica de outros povos), indicando-nos passagens luminosas dos antigos profetas - Isaías, Jeremias, Amós, Miquéias, Oseias, Joel e outros, cuidando, em seguida, de percorrer a trajetória profética de Jesus de Nazaré, das primeiras comunidades cristãs, das experiências proféticas dos movimentos pauperísticos da Idade Média das experiências da modernidade e dos séculos mais recentes. Digno de nota é também o apanhado que faz, ao final desta obra (“A profecia na Igreja”) do legado profético de uma dezena de bispos latino-americanos, a quem ele chama, no capítulo 8, de “Os Santos Padres da América Latina”.
Retomando nossa visitação do livro “A Liberdade Cristã”, damos prosseguimento a outros destaques. O autor sublinha bem, ao longo do texto, a figura de Jesus como um homem livre em palavras e gestos, percorrendo, inclusive, os autores sinóticos, rememora-nos, especialmente por meio das parábolas, as marcas de Liberdade que delas extraímos.
A última parte do livro ressalta a dimensão comunitária da Liberdade testemunhada por Jesus: “Jesus nunca fala para pessoas individuais, mas para as almas. Tudo o que ele diz e faz tem um alcance social.” (p. 111). Mais adiante, referindo-se agora à distinção essencial entre a Liberdade anunciada por Jesus, de um lado, e a Lei, mais afeita a projetos políticos de salvaguarda de privilégios, o autor nos remete à passagem: ”Finalmente, a lei serve para impor um jugo insuportável aos pobres. Amarram pesados fardos e os colocam nas costas dos homens, mas eles próprios não os querem mover nem com o dedo (Mt, 23,4)” (p.122).
Prestar homenagem a figuras como José Comblin implica, sobretudo, buscar seguir as trilhas do Movimento de Jesus – compromisso profundamente exigente em tempos de retrocesso e obscurantismo, tanto no atual contexto da conjuntura internacional, quanto ao interno das Igrejas Cristãs, cada vez mais voltadas para os seus próprios interesses, distanciando-se de uma espiritualidade reinocêntrica. Consola-nos, no entanto, perceber que, a exemplo do que sucedia em outras épocas (por exemplo, junto aos movimentos pauperistas da Idade Média), graças à atuação profética daquelas “minoria abraâmicas”, também hoje nos conforta os exemplos de grupos e pessoas, dentro e fora dos espaços eclesiais, que testemunham a Boa Nova do Movimento de Jesus, apostando incansavelmente na força revolucionária das ações moleculares.
João Pessoa, 20 de março de 2025