Alder Júlio Ferreira Calado
O mundo ocidental, desde a antiguidade clássica (greco-latina), segue sendo o palco privilegiado da Cristandade, responsável por transmitir, ainda hoje, uma concepção distorcida da Tradição de Jesus, inclusive por força de uma ideologização do significado de “Espiritualidade”. Notadamente, desde a era constantiniana (século IV), também em função da Tradução e do sentido emprestados à palavra “Ruah”, a Cristandade, distanciando-se do Movimento de Jesus, tem difundido uma concepção hegemônica de “Espírito” e de “Espiritualidade” como se fosse algo puramente abstrato, etéreo, oposto à matéria, a realidade, assim desfigurando e até invertendo o sentido bíblico (e de outras tradições religiosas), uma vez que o termo “Ruah” expressa sopro vital, energia vivificante, vento impetuoso, ação, movimento, de tal modo que é esta Espiritualidade que nos move, nos impulsiona, conferindo sentido a própria vida.
Assim entendida e assumida, é esta Espiritualidade que nos move ao seguimento de Jesus, especialmente no meio dos pobres, a quem se destina a Boa Nova do Reino de Deus, anunciada, inaugurada e testemunhada por Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4, 18-19). Eis o núcleo da Missão à qual Jesus se entregou, como Enviado do Pai, e da qual fez o sentido de sua vinda. Este trecho de Lucas traduz, com fidelidade, o Programa anunciado por Jesus.
Na perspectiva do Movimento de Jesus, com efeito, é a Espiritualidade Reino Cêntrica que dá sentido ao agir dos seus seguidores e seguidoras, assumindo um dinamismo especial, tornando-nos protagonistas da construção de um novo mundo, a serviço de toda a humanidade, em comunhão com o Planeta e os demais viventes, a partir das necessidades e aspirações dos mais vulneráveis. Para tanto, contudo, resta imperativo recuperar o sentido original de “Espiritualidade”. Nessa toada, vale a pena revisitarmos autores, estudiosos do tema, entre os quais José Comblin, Pedro Casaldáliga, José Vigile, entre outros e outras teólogas.
José Comblin, por exemplo, ainda em 1978, em seu livro “O Espírito no Mundo”, no qual anuncia 5 palavras-chave (“Ação”, “Palavra”, “Liberdade”, “Povo de Deus”, e “Vida”), que constituirão, na forma de livros (“O Tempo da Ação”, 1982; Força da Palavra”, 1986; “Vocação para a Liberdade”, 1998; “Povo de Deus”, 2002; “Vida em Busca da Liberdade”, 2007 nas décadas seguintes o eixo de sua obra pneumatológica, rememora com propriedade o sentido original de “Ruah” ainda no início do livro. Por sua vez, recorrendo a uma longa citação desses autores, eis o que nos dizem Pedro Casaldáliga e José Vigile, em seu livro “Espiritualidade Libertadora” (Petrópolis: Vozes, 1993):
”A palavra espiritualidade deriva de "Espírito". E, na mentalidade mais comum, o espírito se opõe à matéria. Os "espíritos" são seres imateriais, sem corpo, muito diferentes de nós. Nesse sentido, será espiritual o que não é material, o que não tem corpo. E se dirá que uma pessoa é "espiritual" ou "muito espiritual" se vive sem se preocupar com o material, nem sequer com seu próprio corpo, procurando viver unicamente de realidades espirituais. Estes conceitos de espírito e espiritualidade como realidades opostas ao material e ao corporal provêm da cultura grega. Dela passaram para o castelhano, para o português, para o francês, para o italiano e até para o inglês e o alemão... Quer dizer, quase tudo o que pode ser chamado de "cultura ocidental" está como que infectado por este conceito grego do espiritual. O mesmo não acontece, por exemplo, na língua quíchua, ou guarani ou aimara. Também o idioma ancestral da Bíblia, a língua hebraica, o mundo cultural semítico, não entendem assim o espiritual. Para a Bíblia, espírito não se opõe à matéria, nem ao corpo, nem à maldade (destruição); opõe-se à carne, à morte (a fragilidade do que está destinado à morte); e opõe-se à lei (a imposição, o medo, o castigo). Neste contexto semântico, espírito significa vida, construção, força, ação, liberdade. O espírito não é algo que está fora da matéria, fora do corpo ou fora da realidade real, mas algo que está dentro, que habita a matéria, o corpo, a realidade, e lhes dá vida, os faz ser o que são; enche-os de força, move-os, os impele; lança-os ao crescimento e à criatividade num ímpeto de liberdade. Em hebraico a palavra espírito, ruah, significa vento, respiração, hálito. O espírito é, como o vento, ligeiro, potente, envolvente, impredizível. É, como o alento, o vento corporal que faz com que a pessoa respire e se oxigene, para poder continuar viva. É como o hálito da respiração: quem respira está vivo; quem não respira, está morto. O espírito não é outra coisa senão o melhor da vida, o que faz com que ela seja o que é, dando-lhe caridade e vigor, sustentando-a e impulsionando-a. Diremos que algo é espiritual por causa da presença que em si tem de espírito. Nós, já desde agora, abandonamos o sentido grego do termo espírito e procuraremos nos aproximar do sentido bíblico, indígena, afro, menos dicotomicamente "ocidental" (pp. 21-22).
Grande e renovado desafio temos pela frente: o de testemunhar, precisamente nestes tempos distópicos - fora e ao interno das Igrejas cristãs - o discipulado e a missão de Jesus, pela força da Divina Ruah, Programa tão bem evidenciado neste trecho do Evangelho segundo Lucas, acima mencionado. Nesta direção, múltiplas experiências e iniciativas suscitadas pelo Espírito do Ressuscitado, se fazem presentes entre nós, pelo mundo afora, especialmente vivenciadas no cotidiano das “minorias abraâmicas”, que somos chamados a seguir e reforçar.
Apenas a título de ilustração tomamos a liberdade de mencionar de passagem, algumas dessas experiências que estão em curso perto de nós. Uma delas nos remete ao fecundo trabalho desenvolvido, no Brasil - estendendo-se a outros países, na América Latina e alhures - pelo CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), desde 1979, cuja contribuição mais densa se caracteriza pelo estudos comunitários/popular da leitura bíblica por meio de uma metodologia profundamente heurística, historicamente contextualizada e tomando em consideração relevantes aportes de atualização das ciências bíblicas, para o que têm sido de grande valia as contribuições dadas por figuras tais como Carlos Mesters, Agostinha Vieira de Melo, Francisco Orofino, para mencionar apenas 3 exemplos de Teólogos Católicos. Importa destacar que o CEBI tem contado, desde suas origens, com densa contribuição do trabalho Ecumênico de diversas Igrejas Protestantes, das quais, desde pelo menos os anos 1950, faziam parte várias figuras proféticas, a exemplo de Richard Shaull, Rubem Alves, Waldo César, Joaquim Beato, João Araújo Dias, Jether Pereira Ramalho, Zwinglio Mota Dias, Julio de Santa Ana entre outros, que através do Setor Social de suas respectivas Igrejas, muito contribuíram para despertar uma consciência e um compromisso social com a causa de libertação dos pobres, no Brasil e na América Latina, seja por meio de seus escritos circulantes na Revista “Iglesia y Sociedad”, seja por meio da organização de conferências sobre a realidade social do Brasil e com compromisso dos cristãos das quais se tornou exemplar a “Conferência do Nordeste” (cf. https://archive.org/details/conferenciadonor02conf/page/120/mode/2up) realizada em Recife-PE, de 22 a 29/07/1962, cujo o tema trabalhado durante aquela semana foi “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”. Convém acrescentar que várias figuras Protestantes de homens e de mulheres - principalmente por meio do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) estiveram e continuam atuantes nos trabalhos do CEBI. Recomendamos vivamente o conhecimento e aproximação desses estudos, seja pelo acesso ao “site” do CEBI: https://cebi.org.br/ , seja sobretudo associando-se ao CEBI, em seu Estado, em sua região. Uma das marcas mais frutuosas do CEBI tem sido a qualidade de suas publicações, combinadas com estudos comunitários (presenciais e virtuais de temas candentes, inclusive acerca da teologia eco-feminista.
Nesta mesma linha temática vale a pena ainda destacar os valiosos frutos colhidos por outra experiência formativa, que já dura décadas: o Departamento Ecuménico de Investigación (DEI) - um centro de investigação e formação com visão ecumênica e latino-americana, em diálogo com movimentos sociais e eclesiais da região, territórios e academia, que visa fornecer, no intercâmbio de saberes (do pensamento social crítico, das teologias da libertação, das espiritualidades libertadoras e da educação popular), elementos de análise crítica da realidade possibilitando as ações transformadoras necessárias para a construção de uma sociedade justa em reciprocidade com a teia da vida. (para mais informações, consultar o “site” https://deicr.org ).
Uma terceira experiência - dentre tantas - se faz presente por meio de diversas iniciativas recentes e menos recentes, espalhadas pelo Brasil, pela América Latina e pelo mundo, graças também a figuras proféticas dos nossos tempos, a exemplo do trabalho desenvolvido, desde os anos 1960/1970, pelas teólogas feministas, a exemplo de Elizabeth Schussler Fiorenza e Ivone Gebara. Para mencionar apenas dois trabalhos de autoria destas teólogas, destacamos: de autoria de Elizabeth Schussler Fiorenza “Discipulado de Iguais: Ekklesia-Feminista Crítica da Liberdade”; Petrópoles: Vozes, 1995; Ivone Gebara. “Teologia Ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião”. São Paulo, Olho d'água, 1997.
As iniciativas inspiradas pela Encíclica “Laudato si”, de autoria do Papa Francisco, que tem alimentado pelo mundo afora fecundas experiências comunitárias de cuidado de nossa “Casa Comum”.
A medida que formos capazes de reabilitar este entendimento de “Espiritualidade”, vamos compreendendo as graves consequências do progressivo distanciamento que a Cristandade produziu, na era pós-constantiniana até os nossos dias, de tal sorte que o próprio núcleo do Evangelho resta fortemente distorcido, nas práticas cotidianas das próprias Igrejas cristãs, com raras exceções. Com efeito, lideranças políticas e religiosas na atualidade têm usado e abusado da crença popular como meio de doutrinação política de extrema-Direita, em nome do Evangelho. Lideranças que fazem questão de se proclamar cristãs, chegando a reduzir o coração do Evangelho a atitudes violentas, belicosas, sentindo-se “os eleitos” do Senhor dos Exércitos, chegando inclusive a justificar o genocidio contra o Povo Palestino, praticado pelo Estado de Israel, do qual é cúmplice o Governo dos Estados Unidos arrastando consigo milhões de pessoas enganadas em sua boa fé.
João Pessoa, 16 de julho de 2025.