Alder Júlio Ferreira Calado
A exemplo de outros grupos de estudos das Teologias da Libertação, em três outros que acompanhamos de perto - o Kairós, “Direitos Iguais” e “Teologia da Libertação” - temos lido, com entusiasmo, o artigo de autoria da teóloga feminista Romeno Germânica e Elizabeth Schussler Fiorenza, acima mencionado. Entendemos relevante e oportuno também ajudar a difundi-lo. Com o propósito de estimular a leitura e a reflexão conjunta deste texto seminal, houvemos por bem propor algumas linhas sobre o mesmo. Tratamos, pois, de inicialmente sublinhar algumas de suas ideias mestras, e em seguida, de realçar aspectos desafiantes nele contidos.
O artigo postula um caminho alternativo à dominação sofrida pelas mulheres, na sociedade e nas igrejas sobretudo do mundo ocidental, pela dominação patriarcal, graças à aplicação de estratégias econômicas, políticas e culturais, concernentes ao colonialismo do Ocidente. Importa observar que a autora ao propor uma “Ekklesia de Mulheres”, não exclui a participação também de homens, mas defende a superação radical do estilo piramidal comum tanto aos espaços eclesiais, quanto aos espaços societais.
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“O ethos do Discipulado de iguais” na ekklesia de mulheres: sustenta a urgência do combate às estruturas seculares injustas que caracterizam as relações entre homens e mulheres, na sociedade e nas igrejas, buscando uma superação embasada em experiências anteriores e posteriores ao período constantiniano. Importa atentar para o fato de que não se trata de uma igreja exclusiva de mulheres, mas de respeitar os direitos de homens e mulheres, em pé de igualdade.
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O discipulado de Iguais postulado pela autora não propõe nem a exclusão nem a submissão entre homens e mulheres, nem reivindica a participação de mulheres na pirâmide hierárquica eclesiástica. Esta tese não acolhe, de bom grado, o pleito de ordenação de mulheres, mantendo a mesma estrutura hierárquica.
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A Autora, ao dispor-se a uma análise sistemática das relações de dominação e de subordinação das mulheres aos homens, na sociedade ocidental (euro- americana) e nas Igrejas Cristãs, foca 5 aspectos dessas relações, como fatores de dominação, critérios propostas por Íris Morang: exploração, marginalização, carência de poder, imperialismo cultural, violência sistemática, aos quais Elisabeth Schussler Fiorenza acrescenta o silenciamento das mulheres pela hierarquia e difamação e trivialização. A autora passa, então, a elaborar uma análise sistemática, a partir desses sete fatores de dominação patriarcal sobre as mulheres, tanto no âmbito societal, como ao interno das igrejas cristãs.
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Feitas estas anotações iniciais, vale a pena cavoucar diferentes aspectos direta ou indiretamente implicados na reflexão crítica desenvolvida pela autora, de modo a ressaltar relevantes aspectos contidos em suas teses .Com efeito, em se tratando de uma exímia pesquisadora com profundo conhecimento histórico e teológico, com notória acuidade analítica relativa às íntimas relações entre a Teologia e as ciências humanas e sociais, muitos aspectos enunciados em suas teses nem sempre restam evidentes, com uma leitura superficial de seus escritos. Eis por que tomamos a liberdade de trazer à tona aspectos relevantes aí contidos, mas nem sempre percebidos com facilidade.
Um primeiro aspecto a ressaltar, diz respeito ao prisma sob o qual a autora elabora suas teses: ela o faz como uma teóloga feminista crítica diante das diversas manifestações do domínio patriarcal sobre mulheres e homens, tanto no plano societal, quanto no âmbito eclesiástico. No primeiro plano, Fiorenza, reconhecendo as diversas posições feministas, trata de explicitar seu próprio conceito de feminismo, de modo a manifestar sua crítica também a uma corrente feminista identificada com uma perspectiva ocidental, liberal - democrática, assinalando os limites antropológicos e teológicos desta perspectiva.
Outro aspecto que merece especial atenção tem a ver com seu compromisso de analista ao focar as dimensões interrelacionadas de classe, gênero, raça, nacionalidade, ao longo de seu trabalho. Ainda outro aspecto a merecer destaque, prende-se à qualidade do referencial teórico-metodológico trabalhado pela autora. Trata-se de alguém que aplica, em seus escritos, critérios analíticos pouco frequentes em estudos teológicos. Por exemplo ao lidar com temas teológicos, ela tem sempre o cuidado de vincular a teologia a um contexto Histórico-Social, afinal de contas, como todo saber humano, também a Teologia se produz concretamente sob a influência das idéias e dos valores em determinado lugar e em determinado tempo: Ou seja toda Teologia é contextual. Nesta perspectiva a autora se coloca como uma teologa feminista critica, a medida que deixa claros os nexos dos estudos Teológicos com as influências dominantes sobre os teólogos e as teologas, de acordo com sua condição de homens ou de mulheres, sendo que, em una Igreja cujas decisões são tomadas apenas pela hierarquia formada exclusivamente por homens, vão beneficiar apenas os interesses masculinos, restando as mulheres se subordinarem ao comando masculino.
A autora sustenta que as aspirações por um discipulado de iguais tem profundas raízes no Movimento de Jesus, desde as primeiras comunidades. E podem ser situadas em diferentes momentos da história ainda que experiências proféticas em meio a uma hegemonia androcêntrica, a exemplo do que sucedeu com movimentos tais como o das Beguinas, na baixa Idade Média. Mais recentemente, com o despontar dos movimentos feministas, em meados do século passado, tornamos a acompanhar a ressurgência deste Projeto de um Discipulado de iguais, pronto a identificar e a combater as diferentes formas e manifestações das relações patriarcais dominantes tanto nas sociedades como ao interno das igrejas. Embora constituam a maioria dos frequentadores dessas igrejas, as mulheres são excluídas das decisões, cabendo-lhes apenas cumprir as ordens emanadas exclusivamente de homens - Papas, Bispos, Padres, e Pastores…
Quando se faz uma leitura contextualizada dos textos bíblicos, constata-se, em diversos relatos vétero e neotestamentários, a participação ativa e mesmo de liderança de várias mulheres, oque foi se alterando com a crescente influência da cultura grega na formação de comunidades cristãs cada vez mais sob o controle do clero, principalmente após Constantino. Desde então, tem-se implantado uma série de leis e de normas excluindo as mulheres e os demais leigos das demais decisões eclesiásticas, sob mais diferentes pretextos, inclusive atribuindo-se às mulheres características psicológicas de “feminilidade” exclusivas, tais como a docilidade, a submissão, a afabilidade, traços que tendiam a reduzir as mulheres aos afazeres domésticos e privados, enquanto os espaços públicos passariam a ser exclusivo dos homens. Também, no plano da produção teológica, passou-se a inventar pretextos para afastar as mulheres da tomada de decisões, a começar pela própria vedação às mulheres, de serem ordenadas de diaconisas, presbíteras, bispas e qualquer outro ministério ordenado.
A produção teológica, de leis, de documentos oficiais se mantém como exclusividade masculina, além de tarefas exercidas pelos hierarcas de tal modo que as mulheres, inclusive as freiras, seguem mantidas, salvo exceções meras destinatários passivas dos documentos oficiais, das encíclicas, da elaboração teológica regular, da liturgia, em suma, reduzidas a meras “clientes” obedientes aos desígnios masculinos. Ainda que já não mais se trate de uma reivindicação das mulheres - elas entendem que tal concessão contribuiria para coonestar o regime piramidal de organização eclesiástica -, o reconhecimento da legitimidade de sua vocação ministerial a qualquer dos ministérios ordenados lhes tem sido sistematicamente negado.
Um outro ponto a ser realçado - explicitamente ou não - nas teses da autora, aponta para pistas de superação deste impasse, a médio e longo prazos, prende-se ao exercício de resistência, tanto ao interno das Igrejas cristãs quanto no âmbito societal, consistindo na continuidade de seu combate a todas as formas de opressão, exploração, imperialismo cultural, estratégias de silenciamento e domesticação bem como a vivência de uma espiritualidade libertadora, para além dos códigos eclesiásticos que frequentemente negam fundamentos explicitamente presentes nos textos bíblicos e na Tradição de Jesus.
João Pessoa, 01 de agosto de 2025