Eduardo Hoornaert.
A cada ano fica mais claro que as dimensões da figura de Helder Câmara ultrapassam as funções que ele ocupou na vida, especificamente a função de arcebispo católico de Olinda e Recife. A cada ano se ressalta mais seu valor universal, para além da diocese, da igreja do Brasil, do catolicismo e mesmo do cristianismo em geral.
Devolvam-nos Helder Câmara,
Ele nos pertence.
É o grito silencioso da bandeira do Movimento dos Sem Terra estendida sobre o caixão de Helder Câmara no dia de seu enterro.
Pode parecer um tanto ousado o que digo aqui, mas corresponde perfeitamente ao que nós, seus colaboradores, presenciamos diversas vezes no convívio com Helder Câmara. Pessoalmente trabalhei durante quase 17 anos com ele, desde sua posse em 1964 até a minha saída do clero em 1980. Sempre tive a impressão de que a igreja era para ele um trampolim para a sociedade. Um palanque, um microfone, uma tela de TV, uma difusora. Isso tanto é verdade que a publicidade foi seu maior escudo contra as ameaças de morte que recebia. Ele só não foi morto porque temia-se a repercussão da morte de um bispo famoso. Escapou pela publicidade em vez de fugir na clandestinidade.
Quero comentar com vocês que numa determinada ocasião ele realmente nos surpreendeu. Numa tarde, parece que foi nos inícios dos anos 1970 ou no final dos anos 1960, ele nos chama para o Palácio dos Manguinhos. Uns vinte padres, mais ou menos. Aí ele começa a dizer que a igreja católica não tem a projeção que merece: o mundo oriental tem Gandhi, os Estados Unidos têm Martin Luther King, mas a igreja católica não tem nenhuma figura que represente o que ela está realmente fazendo neste momento. Fiquei sem saber o que pensar dessas palavras, pois naquele tempo eu não tinha capacidade de perceber o real alcance delas. Pensei: ele está se comparando a Gandhi e Martin Luther King, isso é muito atrevimento. Só depois de sua morte em 1999, cheguei a compreender o real alcance da comparação daquela tarde nos Manguinhos. Hoje, entendo que Helder Câmara efetivamente figura como um símbolo universal, comparável a Gandhi, Martin Luther King e, para falar nos termos de hoje, Mandela. São personagens que por assim dizer delineiam figuras que representam o que há de mais humano no pensamento de uma época, cultura, continente, país, agrupamento humano. São figuras universais, já desligadas da trajetória concreta de suas vidas. Elas tornam-se símbolos universais: independência e verdade (a Satyagraha de Gandhi), superação do racismo (Mandela), opção pelo pobre (Helder Câmara). Hoje vejo claramente que, naquela tarde nos Manguinhos, Helder não estava afirmando sua personalidade, mas revelando uma profunda intuição política, uma visão do âmago das questões. Se, naquela época, a desenvoltura com que Helder falou de grandes figuras da história me causou certo espanto, era, no fundo, porque naquele tempo eu não tinha a maturidade para pensar em Helder Câmara. Só consegui pensar em Dom Helder. É foi isso, afinal, que me impediu de enxergar a grandeza de suas colocações.
Podemos avançar um pouco mais e dizer que Helder Câmara alçou uma bandeira mais difícil de segurar que as de Gandhi e Mandela. Em seu livro ´A espiral da violência’, de 1978, ele descreve três tipos de violência: a institucional, a revolucionária e a repressiva. A novidade está na descrição da primeira violência, geradora das demais: a instituição de sociedades baseadas na injustiça e, portanto, na violência. Aqui Helder vai além de Gandhi e de Mandela e ataca um problema que subjaz a todos os demais: a pobreza como consequência da violência institucional. O livro ‘A espiral da violência’ mostra que a opção pelo pobre é a grande novidade no cenário mundial dos anos 1970, algo mais profunda e mais complexa que a opção pela descolonização ou pela valorização da raça negra. É uma opção que exige uma análise continuada e sempre atualizada da sociedade.
Hoje muitas das ideias helderianas começam a se difundir no mundo e na igreja. O papa Francisco pode ser chamado de helderiano. Mas o programa traçado por Helder Câmara é muito exigente:
Quando dou uma esmola a um pobre, me chamam santo
Quando pergunto por que ele é pobre, me chamam comunista.
Essas duas linhas expressam uma exigência muito grande, melhor, um desafio para todos nós.
Não posso terminar sem esclarecer que não quero dizer que está errado quem continuar falando em Dom Helder, nosso querido Dom. Em minha fala só quis realçar que Helder não necessita do Dom para ser grande. Não se trata de desvalorizar ou ‘secularizar’ o querido Dom. À primeira vista, temos a impressão que dizer ‘Helder’ é diminuir ‘Dom Helder’. Mas isso é apenas uma impressão. O que importa é que a memória de Helder seja um espaço universalista no coração do mundo e lembre a vocação universalista que todos nós carregamos conosco. Para além da igreja, do cristianismo e mesmo das minorias abraâmicas, em direção às minorias de espírito abraâmico espalhadas pelo mundo