José Comblin
No cristianismo a teologia nasceu no século XIII, sob o impulso dos filósofos gregos, sobretudo Aristóteles. Então apareceu uma classe de teólogos profissionais. Nasceram as faculdades de teologia dentro do estilo universitário que estava nascendo. Essa teologia imitou o modo de proceder dos filósofos gregos. A teologia foi uma exposição de conceitos de modo sistemático, em forma de pensamento logicamente organizado. Até hoje a teologia conserva essa forma. Por isso tem o seu lugar nas universidades, especialmente no meio das ciências ditas humanas.
Essa teologia elaborou os seus conceitos a partir da filosofia aplicada à Bíblia. Pretendeu expressar por meio dos conceitos abstratos da filosofia e de raciocínios lógicos usados pela filosofia os conteúdos da Bíblia. Porém, a Bíblia não se expressa em forma de conceitos abstratos mas geralmenteem forma de metáforas ou de parábolas, em forma de narrações. Quando os profetas, o próprio Jesus ou os apóstolos falam, não enunciam doutrinas universais, mas dirigem-se a pessoas particulares que vivem num contexto bem particular e a propósito de casos especiais determinados pelo contexto histórico. Assuas palavras querem uma mudança numa vida particular, a vida de tal individuo ou tal grupo humano bem contextualizado. São atos que fazem história, a historia de Israel, de Jesus, da Igreja primitiva, como os gestos que mudam as coisas.
Os teólogos acharam que o seu trabalho consistiria em tornar mais compreensível o conteúdo da Bíblia, em expressar mais claramente o essencial dos conhecimentos fornecidos por ela. A teologia teria a vantagem da precisão dos conceitos. De escritos de literatura popular, a Bíblia, ela faria uma elaboração cientifica, tirando dessa literatura o conhecimento real que ela envolve. Faria isso por meio de conceitos porque os conceitos fornecem o verdadeiro conhecimento da realidade. A teologiaatingiria a realidade daquilo que a Bíblia quer expressar, mas não consegue porque escrita de uma maneira vulgar, não científica.
Os filósofos tem a pretensão de atingir a realidade a partir de conceitos abstratos e de raciocínios lógicos. Porém, a sua realidade é uma realidade fictícia, uma realidade criada pelo espírito humano, não a realidade criada por Deus na complexidade da história humana. Os conceitos simplificam e endurecem e deixam de lado a vida vivida no desenrolar da história
A conseqüência da metodologia adotada é que os teólogos, como os filósofos gregos, tendem a formar um mundo fechado. Somente outros teólogos podem entender o que ensina um teólogo. Os discursos dos teólogos dirigem-se a outros teólogos. Trata-se de um diálogo entre membros de umacorporação de iniciados. Os não iniciados sentem-se como perdidos nesse mundo, assim como acontece com as outras ciências. A teologia afasta os teólogos da humanidade comum. Para a humanidade comum, os teólogos são uma raça estranha, somente respeitada porque tem prestigio social. Lutaram durante séculos para conquistar esse prestigio. Inventaram títulos de doutores ou mestres para impressionar os não iniciados. Falam uma linguagem que os outros não entendem, mas dão a entender que esse linguajar secreto é um sinal de superioridade. Com a sua teologia supostamente eles sabem mais e melhor o que, para os outros, ainda é confuso e como infantil.
Nos tempos da cristandade o prestigio dos teólogos era ainda maior porque eles representavam um poder na sociedade. Típico foi o prestigio da Universidade de Paris, ou seja, da faculdade de teologia de Paris desde o século XIII até a Revolução francesa. Os teólogos detinham um verdadeiro poder social e político. Eram um dos poderes do Estado e da Igreja.
Hoje em dia, os teólogos perderam todo o poder na sociedade civil e quase todo na Igreja.Mas entre si, cultivam os restos do prestígio anterior e se felicitam mutuamente, como faz qualquercorporação. No meio do clero, ainda conservam certo respeito, ainda que poucos leiam os seus escritos. São respeitados não pelo seu pensamento, mas porque pertencem a uma categoria respeitável. O que serespeita, é o título de doutor que no mundo eclesiástico ainda conserva uma importância. Nisso estão em oposição total a Jesus que proibiu que se desse o título de doutor aos seus discípulos, que sempre são discípulos e nunca doutores, porque somente há um doutor. E Jesus passou todo o tempo do seu ministério brigando com os doutores. Isso dos teólogos é uma das inconseqüências que se encontram na Igreja.
O que faz a importância da teologia na Igreja, é que fornece ao magistério auxíliosapreciáveis. A teologia, com a aspereza dos seus conceitos, serve a definir claramente as heresias e a facilitar a sua condenação. O teólogo define a heresia. Tirando-a da multiplicidade de ditos e escritos dos hereges, chega a enunciar o conteúdo da heresia, e, assim, fornece o instrumento necessário para que o magistério possa condenar. Não se pode condenar o que não está bem definido. Assim fizeram com a teologia da libertação. O padre R. Vekemans definiu claramente a heresia, e, com isso, o magistério pôde condenar. É um grande serviço que se presta ao magistério. Nos Concílios até oVaticano I os teólogos tiveram um papel indispensável. Em Vaticano II João XXIII pediu que não houvesse condenações, e, por isso houve teólogos que elaboraram a nova orientação da Igreja que os Papas da época quiseram. Os teólogos acostumados a buscar heresias tiveram que limitar-se à tarefa derestringir as novas doutrinas, como se fosse heresias ocultas, o que ainda vários acreditam nos nossos tempos.
Claro está que os próprios teólogos podem também criar heresias, o que as torna mais perigosas porque são ensinadas por pessoas prestigiadas. Por isso, o magistério exerce sobre os teólogos uma vigilância que agora nunca se deixa surpreender. Centenas de teólogos foram condenados e, ainda hoje, embora o controle seja um pouco mais permissivo, ainda há condenações frequentes. Nos últimos tempos as heresias condenadas foram todas produtos de teólogos.
Outra ajuda que a teologia presta a hierarquia eclesiástica, é a formação intelectual do clero. Um dos objetivos principais do Concílio de Trento foi a reforma do clero. Durante toda a idade media houve queixas sobre a ignorância do clero. Naquele tempo não havia nenhuma preparação. O pároco escolhia um jovem para ser o seu sucessor. Muitas vezes escolhia um sobrinho para que o benefício da paróquia ficasse na família. Pois, uma paróquia era um beneficio, um conjunto de propriedades e de direitos financeiros que asseguravam a subsistência do padre e, muitas vezes, também da família do padre, quando era mais importante.
Na véspera da ordenação o pároco apresentava o seu candidato, que as vezes. mal sabia ler, acompanhado pelos padrinhos que davam testemunho do valor desse candidato ao bispo, e o bispo ordenava. Havia sacerdotes cheios de zelo e de boa vontade, que procuravam aprender, mas havia muitos que só se preocupavam pelos bens da paróquia e mal sabiam administrar os sacramentos. Ainda no século XVII, se recomendava as damas da boa sociedade que, quando fossem se confessar, entregassem ao confessor a formula da absolvição, porque às vezes acontecia que não a conhecia. Então o Concílio de Trento decidiu fundar seminários. A aplicação do decreto foi lenta. Na França os primeiros seminários abriram ao redor de 1650, ou seja, 80 anos depois do decreto de Trento.
Mas, uma vez fundado o seminário, o que fazer nesse seminário? Claro, em primeiro lugar os exercícios de piedade e as normas de administração dos sacramentos. Mas, além disso, era preciso também dar uma formação intelectual. Aí estava a teologia. A teologia foi o ensino que se deu aos seminaristas. Assim é até hoje. Estavam convencidos de que a teologia seria a melhor maneira depreparar os futuros sacerdotes para o seu ministério, principalmente para o ministério da palavra. Podeter sido porque não havia alternativa. Ainda hoje as autoridades eclesiásticas pensam assim, o fazem de conta de que pensam assim. Em todo caso, ainda hoje, a teologia é a ocupação principal nos seminários.
Hoje em dia, aparecem sérias dúvidas. A teologia seria realmente a melhor preparação para o ministério da palavra? A teologia é uma ciência que somente entendem os teólogos. Porque não a entendem, os leigos não estão interessados, salvo alguns letrados com formação muito especial. Se o sacerdote ensina a teologia que aprendeu no seminário, ninguém se interessa, ninguém entende, nem vê que relação há entre essa ciência, que o sacerdote ensina, e a sua vida que realmente deve viver. A teologia forma teólogos, não forma evangelizadores. Forma muitas vezes teólogos de segunda categoria que assimilaram mais ou menos a teologia que se lhes ensinou, e muitas vezes já se esqueceram dela,porque não lhe descobrem nenhuma utilidade.
Por isso, os melhores sacerdotes recorrem a associações de espiritualidade sacerdotal como “Jesus-Caritas” da espiritualidade de Carlos de Foucauld, ou do “Prado” do pe. Chevrier e outras numerosas associações. Ou então entram em associações de espiritualidade leiga como os focolarinos e outros. Ali encontram o que não encontram na teologia e descobrem o que devem expressar no seu ministério da palavra. Muitos sacerdotes quase que não exercem o ministério da palavra a não ser porhomilias sem conteúdo, sem mensagem, justamente porque ficaram só com a teologia do seminário e essa não prepara para o ministério. Por isso há pouca formação de leigos : são os sacerdotes que se sentem inseguros ou mal preparados para orientar cursos ou retiros ou outros métodos de formação dos leigos.
A teologia é muito importante para o próprio teólogo, ela enriquece a personalidade como faz qualquer ciência. Mas ela não torna mais cristão ou mais santo. Ela é uma atividade humana que enriquece a personalidade humana de quem a pratica. Não santifica. Houve teólogos santos como Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura e outros. Mas não foi a teologia que os fez santos. Assim mesmo, sempre haverá teólogos como sempre haverá filósofos, artistas, inventores.
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Depois destas considerações sobre a teologia. Voltemos às origens do cristianismo. Deus falou. A sua palavra foi Jesus. Antes, Deus falou aos profetas, disse palavras que os profetas repetiram. Agora Deus falou pela vida de Jesus, não por meio de palavras, mas por meio de uma vida. A vida de Jesus, as suas andanças, os seus gestos, as suas atitudes, os seus relacionamentos, as suas palavras que nunca são discursos abstratos mas sempre palavras de ânimo para os doentes, de denuncias para os doutores, conselhos para os discípulos, tudo sempre aplicado a um caso muito particular. Tudo isso constituiu a trama de uma história. Deus fala pela história de Jesus, pelo desenvolvimento da sua ação.
Escutar a palavra de Deus é olhar o que Jesus fez, prestar atenção as suas palavras e aos seus atos, assimilar, procurar compreender essa vida de Jesus. Ora ela se entende na medida em que a pessoa entra na mesma vida, segue o mesmo caminho, embora seja numa situação muito diferente, mas com a mesma inspiração e os mesmos objetivos.
A ciência da palavra de Deus aprende-se fazendo, agindo como Jesus agiu. Pois, não se trata de aprender conceitos para guardar na inteligência e na memória, mas sim de aprender a viver e nãosimplesmente a conservar ciências ou exercer o intelecto. Não se aprende a viver recebendo conceitos abstratos ou raciocínios lógicos, recebendo uma doutrina. Alguém não tem uma conduta moral porqueaprendeu a teologia moral. É algo bem diferente. No caso da palavra de Deus, a distancia é muito grande.
Jesus teve, e ainda tem discípulos, muitos discípulos que aprenderam estudando a vida dele e entendendo-a na medida em que na sua vida praticavam essa vida de Jesus. Essa vida de Jesus reproduz-se na vida dos discípulos. Criou-se assim uma Tradição, a tradição da vida de Jesus, diferente da tradição de doutrinas ou de uma doutrina de Jesus que não houve.
De geração em geração a vida de Jesus recomeça, assumindo sempre formas novas de acordo com a multiplicidade das personalidades humanas e das situações em que estas estão colocadas, mas sempre é a mesma vida de Jesus. Ela se transmite e se torna mais compreensível na vida de tantosdiscípulos. Conhecemos de modo mais concreto e significativo para nós a vida de Jesus na sua vida vivida pelos discípulos. Aprendemos conhecendo a vida dos discípulos. Os discípulos estão mais perto de nós no tempo e no espaço, e, por isso, eles nos oferecem um ensino mais acessível e uma forma de vida mais imitável em certos aspetos.
Conhecemos a vida de Jesus nos discípulos primeiro pelo contato humano, pelo encontrofísico de pessoas. Assim as crianças podem receber o ensino da vida de Jesus pela vida vivida pelos seus pais ou por um dos pais, ou eventualmente outro membro da família mais ampla, ou pelo contato com pessoas da redondeza, ou por educadores. Como adultos, podemos também encontrar a vida de Jesus vivida por pessoas excepcionais que a vivem mais intensamente. Podemos ter o privilegio de ter conhecido ou convivido com algumas dessas pessoas, como aconteceu comigo. Pude conviver com vários desses discípulos de Jesus que manifestavam de modo excepcionalmente claro a vida de Jesusvivida por eles tal como foi narrada pelos evangelhos. Assim recebi a Tradição da palavra de Deus muito mais do que pela teologia. São aquelas pessoas que o povo chama de santas, embora ainda estivessem nesta terra. Depois da morte alguns poderão ser canonizados oficialmente pelo Papa, mas éclaro que a grande maioria nunca o será.
A imensa maioria desses discípulos de Jesus não deixou documentos da sua vida. No entanto alguns tiveram a sorte de que alguém escreveu e assim deixou testemunhos sobre a sua vida ou alguns aspetos da sua vida. Alguns excepcionalmente tiveram discípulos por sua vez, e estes conservaram a sua memória.
Quem não deixou nenhum documento escrito pôde ter deixado uma pequena tradição oral durante algumas gerações. Somente Deus sabe a totalidade da tradição vivida realmente pelosdiscípulos de Jesus
Assim mesmo, depois de 2.000 anos, contamos com uma imensa documentação. Além disso,podemos ter acesso a pessoas que são nossas contemporâneas e vivem a vida de Jesus neste momentodando a muitos o testemunho da palavra de Deus. Alguns são conhecidos num setor limitado da Igreja e alguns alcançam uma notoriedade maior. Olhando bem e buscando com um pouco de perspicácia todos podem ter oportunidade de entrar em contato com essa Tradição viva da palavra de Deus.
Já que a Tradição é imensa, alguns estudiosos podem dedicar o seu tempo e aplicar a sua capacidade intelectual para recolher, sintetizar, apresentar uma visão de conjunto, dar princípios deinterpretação, chamar a atenção sobre testemunhos típicos ou significativos para os nossos tempos. Não podemos viver toda a diversidade do evangelho. Cada etapa da história destaca algumas expressões da Tradição de acordo com as personalidades das testemunhas, com a sua situação cultural e o seu lugar na história. Em lugar de uma teologia podemos ter uma visão da Tradição que seja significativa, que seja realmente uma palavra para os contemporâneos, que seja a vida de Jesus numa época determinada.
O objeto dessa “teologia”, se se quer manter a palavra, é a vida de Jesus manifestada na imensa variedade das suas realizações , na vida vivida na Tradição. Trata-se da Escritura sagrada lida pela Tradição. Essa Tradição foi autentificada pelo magistério, que afastou as deformações da vida de Jesus ou as falsas realizações.
A hierarquia não fabrica os santos, mas pratica um discernimento em nome do conjunto da Tradição e à luz da Escritura. Claro que, às vezes, pode errar e depois corrigir os erros como sucedeu quando cristãos, que tinham sido condenados, foram depois reabilitados. Joana d´Arc foi condenada por um tribunal eclesiástico como herege e relapso. Depois foi reabilitada e inclusive canonizada. Savonarola foi condenado por ordem do Papa, mas muitos hoje em dia reconhecem que esse julgamento foi errado e reconhecem nele um verdadeiro santo. Já se falou bastante da possibilidade de uma canonização.
O objetivo desse estudo da Vida de Jesus vivida através dos séculos é mostrar onde está a palavra de Deus, palavra pela qual Deus fala hoje para a humanidade de hoje. Dentro da percepção do mundo de hoje podemos descobrir no passado as palavras que ainda são significativas nesta nossa época, e salientar as palavras vividas por cristãos (ou não cristãos) hoje em dias. Pois, Deus fala por nossos contemporâneos. Trata-se de entender o alcance das narrações evangélicas para o nosso tempo. Não podemos descobrir isso por um exercício intelectual porque o significado da vida de Jesus não se revela por um trabalho intelectual, mas se encontra nas vidas vividas por testemunhas contemporâneas ou das gerações passadas.
A nossa missão de cristãos consiste em transmitir essa Tradição, ou seja, esse evangelho traduzido na historia e no presente. Consiste em pronunciar e anunciar a palavra de Deus e isto se realiza pela nossa vida no conjunto das nossas atividades.
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E agora, o que acontece com tudo aquilo que é objeto da “ teologia” tradicional? O que acontece com os dogmas e os documentos do magistério, com a liturgia e todas as expressões de culto desenvolvidas na história do cristianismo como fenômeno histórico? O que acontece com a instituição com toda a sua organização e todo o seu direito canônico? Tudo isso ficaria fora da consideração?Evidentemente não pode ser assim. No entanto, muda a perspectiva na qual enxergamos e valorizamos tudo isso, todo esse sistema institucional construído por 20 séculos de história cristã.
Vejamos primeiro a doutrina oficial, ou seja, os dogmas ou a doutrina de fé católica que foram durante os séculos pos-tridentinos a base da teologia. Foram elaborados sistemas de teologia com raciocínios tomando como ponto de partida os dogmas. Ora os dogmas não podem ser ponto de partida. O ponto de partida é a palavra de Deus e os dogmas não são palavra de Deus. São formulas que afastam falsas interpretações da palavra de Deus. Mas não são a palavra viva de Deus, que é a vida de Jesus e dos seus discípulos.
Os dogmas são acidentes da história que são importantes, mas não merecem todo o destaque que a hierarquia lhes deu na história. Pois, os dogmas são expressões do poder da hierarquia e entende-se que essa lhes dê um destaque particular. No entanto, para o povo cristão eles não têm tanta importância. O povo recebe dentro da instituição uma imagem do cristianismo em que esses dogmas estão no centro, mas no momento de viver, o que vale, é a Tradição de vida que lhes vem por outros canais, por comunicação oral ou escrita, que pode emanar de pessoas da hierarquia mas não necessariamente. Não houve muitos santos Papas nem muitos santos bispos. O seu papel é necessário, mas não são eles que são fonte de vida ou que realmente transmitem a palavra viva. Devemos rezar para que apareçam santos Papas ou bispos, mas não recebemos nenhuma garantia de Jesus. Temos, sim, agarantia de que sempre haverá verdadeiros discípulos que vão prolongar a cadeia da Tradição.
Os dogmas fundamentais foram definidos pelos quatro primeiros Concílios ecumênicos nos séculos IV e V. Tiveram por objeto a defesa da fé no que se refere a Jesus na sua relação com Deus. Foi definido que o Filho é igual ao Pai e que, sendo Deus, foi também verdadeiro homem. Tudo isso era claro para o povo cristão, mas houve alguns intelectuais que quiseram aprofundar com conceitos abstratos e tornaram as coisas mais confusas. Estes imaginaram representações das relações entre o Pai,o Filho e o Espírito Santo e também a humanidade, que não podiam concordar com o que aparece na Escritura. Foram condenados e foi enunciada oficialmente uma doutrina obrigatória formulada pelo Credo de Nicéia(325) e Constantinopla(381) e pelas definições de Éfeso (431) e de Calcedônia (453). Esses textos expulsaram da Igreja os fautores de heresias. Foi uma resposta a um acidente da historia, um problema nascido numa circunstancia particular, o surgimento de hereges. Essas definições foram celebradas em toda a história ulterior e forneceram mais tarde a base dos sistemas teológicos.
Como todas as condenações feitas pelos Concílios foram celebradas como vitórias sobre as heresias, ou seja, sobre os inimigos da Igreja. No entanto, hoje em dia estamos muito sensíveis a certos aspetos negativos dessas definições. Em primeiro lugar, o preço das definições, tais como foram formuladas, foi alto: foram expulsos da Igreja com o patriarcado de Alexandria todo o Egito e os países vizinhos, e com o patriarcado de Antioquia toda a Siria com muitas das primeiras Igrejas cristãs. Essasexclusões provocaram a formação de Igrejas separadas, que ainda subsistem, e que tiveram uma expansão missionária grande somente freada pela conquista muçulmana. O preço foi a perda de muitas das Igrejas mais gloriosas do Oriente. Não havia maneira de resolver o problema de modo diferente do que por uma condenação que expulsou da Igreja para sempre milhões de fieis das Igrejas mais veneráveis? Não houve muitas interferências políticas numa Igreja tão dominada pelos imperadores?Era tão urgente a condenação? Não houve interferência de rivalidades pessoais por parte dos prelados das Igrejas rivais? Não houve influência das oposições de étnicas dentro do Império romano?
Em segundo lugar, os documentos formulados pelos Concílios fizeram uma formulaçãosolene da mensagem sobre Jesus em termos abstratos, de acordo com o modo grego de pensar, que é por meio de conceitos abstratos. Formulou-se uma cristologia na qual a vida de Jesus, toda a sua história, fica esquecida. Afirmou-se a natureza humana de Jesus, mas foi somente a abstração natureza. Nada foi dito da vida humana de Jesus como se um ser humano fosse apenas uma natureza. A natureza não mostra nada, não pode ser a palavra de Deus. Palavra de Deus foi a vida de Jesus, e esta não aparece no documento oficial, nem na cristologia teológica, até o século XX. Nunca apareceu nos documentos oficiais do magistério. Somente se falou da morte de Jesus, mas fazendo abstração do seu sentido histórico e somente mostrando nela um mistério religioso.
Os Concílios medievais foram recapitulados no Concílio de Trento no século XVI. Este definiu uma doutrina da justificação que quis ser uma condenação da doutrina protestante. No entanto, hoje em dia, foi possível chegar a um entendimento com os luteranos, de tal sorte que essa condenação da doutrina protestante podia ter sido evitada, e outra formulação preferida se tivesse havido um desejo de diálogo, o que não prevaleceu em Trento. Em Trento prevaleceu a linha dura, que queria uma separação radical e uma condenação radical também
Trento definiu a doutrina dos sete sacramentos elaborada durante a idade media. Quis definir que os sacramentos tinham sido instituídos por Jesus, o que hoje em dia é insustentável. Teria sido melhor dizer que a Igreja tinha poder de fundar sacramentos, como fez com a confirmação, a extrema unção, a ordem ou o matrimônio, ou de mudá-los, assim como fez com a penitência ou a eucaristia cujosentido variou nos séculos.
Claro está que os sacramentos tiveram um papel relevante na vida de todos os cristãos, mas não se pode fazer deles a fonte de toda a vida cristã. A concepção do sacramento como agindo “exopere operato” (automaticamente) pelo poder do sacerdote, perdeu de vista o Espírito Santo. O sacramento substituiu o Espírito Santo, como se o sacramento produzisse a graça. Dai resultou uma teologia segundo a qual o sacerdote age como substituto da pessoa de Cristo. Mas quem age como substituto da pessoa de Cristo, é o Espírito Santo enviado por ele para substituí-lo.
Trento salvou os sacramentos da rejeição protestante, mas se podia salvar os sacramentos de outro modo, deixando de defender a sua instituição por Jesus e defendendo o poder que tem a Igreja sobre eles.
Uma terceira etapa importante na historia dos dogmas foi o Concílio Vaticano I que definiu a infalibilidade e a jurisdição universal do Papa sobre a Igreja toda. Esta doutrina foi enunciada de tal modo que levantou uma indignação generalizada numa parte da Igreja e dos bispos e fora da Igreja católica. Não havia possibilidade de dizer a mesma coisa de modo menos agressivo? Mas Pio IX queria que fosse agressivo, como arma de guerra contra todo o mundo moderno. Ainda pagamos as conseqüências pelo isolamento da Igreja na cultura ocidental. Isso continua apesar dos esforços deVaticano II que não foram suficientes para convencer o mundo, mesmo pessoas de boa vontade
O estudo da Tradição não pode deixar de lado toda essa história dos dogmas. No entanto, precisa colocar esses documentos no seu contexto histórico porque são sempre respostas a problemasparticulares bem situados Tinham todo o seu valor na circunstância em que foram emitidos. Sempre tiveram a desvantagem de concentrar a atenção sobre alguns aspetos limitados da palavra de Deus e dedeixar de lado outros aspetos que na nossa época são mais fundamentais.
Os dogmas cristológicos deixam na sombra a vida humana de Jesus que é exatamente o que hoje em dia é mais importante. A teoria dos sacramentos deixa de lado a prioridade do Espírito Santo e da fé, assim como o amor como único caminho de salvação. A infalibilidade do Papa deixa na sombra o povo de Deus com o seu sacerdócio e sua realeza, como se o povo tivesse que receber tudo passivamente da hierarquia. O Concílio Vaticano II abriu as portas para uma reflexão já inaugurada porteólogos do século passado e deste século XXI.
Precisamos avaliar também o valor dos textos do magistério, inclusive dos Concílios porque nem todos são textos infalíveis ou irreformáveis. Isto é o caso, sobretudo do Concílio de Trento que precisa ser reinterpretado à luz das próprias atas conciliares e do contexto. Os textos oficiais da Igrejasão escritos com os conhecimentos que se tem no seu tempo. A história da Igreja começou a ser estudada seriamente no século XVII, mas de modo mais cientifico e com mais documentos a partir do século XIX e em muitas partes da Igreja somente depois de Vaticano II. Antes disso a história é umamuito fragmentária e a crítica dos documentos muito fraca. A história dos manuais narra a série dasvitórias da Igreja sobre os seus adversários graças a sabedoria da hierarquia. Naquele tempo, ainda no tempo do Concilio de Trento a historia em geral é assim: ainda é herdeira das antigas inscrições dos reis orientais enumerando todas as suas vitórias. Os padres do Concílio de Trento estavam convencidos que Jesus tinha fundado os sacramentos porque ignoravam a crítica histórica.
Precisamos também estudar as liturgias porque muitas vezes elas enunciam a doutrina dominante. Ora, a reforma dos textos litúrgicos é lenta. Um bom trabalho foi feito depois de Vaticano II, mas ainda subsistem muitos textos que procedem da teologia tridentina. Muitos textos ainda conservam a tonalidade de majestade que se introduziu na liturgia depois da entrada da Igreja no império e na ideologia imperial. O estilo foi o da Corte. A representação de Deus evoca o poder, a majestade, o queprovoca fórmulas de pedidos com grande humildade, semelhantes às expressões de humildade dos sujeitos diante dos seus senhores.
Muitos textos ainda expressam a teoria do sacrifício na apresentação da paixão e da morte de Jesus ou na eucaristia. Seguindo a linha de s. Anselmo apresentam a morte de Jesus como um sacrifício de expiação pelos pecados. Daí uma insistência no pecado. Esta reflete a religião medieval marcada por uma consciência muito forte do pecado e pelo medo do castigo. Os atos religiosos expressam esse medo do castigo e essa permanente consciência dó pecado. O perdão de Deus aparece como subordinado àpenitência, aos sofrimentos, aos sacrifícios oferecidos que incluem sempre privações, sofrimentos voluntários, como se Deus quisesse humilhar os homens pecadores antes de perdoar. Isto é totalmente alheio ao Novo Testamento que celebra a gratuidade do amor divino. Hoje em dia a teoria do sacrifício é incompreensível e somente pode afastar, ou então aproveitar a insegurança humana para conseguir efeitos de submissão. Alguns movimentos integristas cultivam ainda a teoria do sacrifício e as suas aplicações ascéticas, mas parece que o fazem como um desafio à mentalidade moderna mais do que por amor a Deus.
Por fim, o estudo do direito canônico inclui uma reflexão sobre a própria constituição dessedireito canônico. Este está inspirado até hoje pelo direito romano, ou seja, pelo direito imperial. Esse direito enuncia todos os direitos da hierarquia e todos os deveres do povo cristão. Não reconhece praticamente nenhum direito aos leigos. Está no extremo oposto da mentalidade contemporânea que atribui um valor primordial aos direitos humanos.
Estudando a estrutura institucional da Igreja não podemos silenciar as necessidades de reformas. Paulo VI e João Paulo II fizeram algumas alusões a necessidade de uma reforma da função do Papa, ou seja, da relação do seu poder com a Igreja. A questão da relação entre o Papa e os bispos não foi solucionada por Vaticano II, porque nada foi definido na prática. Na prática ainda não há colegialidade e a concentração dos poderes do Papa somente aumenta com a extensão da Cúria romana,cujo papel nunca foi definido teologicamente. Tudo sucede como se os privilégios do Papa fossemextensíveis à toda a administração do Vaticano. Ignora-se a crítica de toda administração.
Faz pelo menos 100 anos que se sabe que a paróquia urbana está falida. Impede a presença da Igreja na sociedade e na cultura urbana, criando no meio da cidade ilhas que são como guetosreligiosos que atraem cada vez menos pessoas e não exercem influência na vida da cidade. As paróquiasurbanas aumentam em lugar de diminuir a invisibilidade da Igreja. Outras estruturas devem surgir para assegurar uma verdadeira visibilidade no conjunto das atividades que animam uma cidade. Isto supõe outra distribuição do clero, outra repartição de ministérios e o surgimento de novos ministérios leigos que constituam verdadeiras responsabilidades dotadas de verdadeiros poderes. Uma pastoral urbana supõe uma reforma total da formação dos sacerdotes, dos religiosos e dos leigos. Tudo isso é parte doestudo do direito canônico porque prepara outro direito de inspiração radicalmente diferente. O direito da humanidade contemporânea é um direito que enuncia e defende os direitos dos cidadãos assim com a sua participação nos poderes da sociedade.
Conclusão.
Tudo aquilo é a tarefa dos pensadores cristãos e de todos os que querem perscrutar a mensagem de Jesus. A prioridade é a descoberta da Tradição de vida, pela qual a vida de Jesus se reproduz através dos séculos formando um povo. Pois a palavra de Deus é a vida de Jesus. Os elementos da teologia tradicional precisam ser submetidos a uma revisão crítica. Esta já esta sendo feita por vários teólogos, ainda que de modo discreto para não assustar. Tudo aquilo está mais ou menos consciente em muitos membros da hierarquia, em muitos sacerdotes e muitos religiosos sem falar dos leigos. Mas, não se expressa, por um sentimento de respeito pela autoridade, como se tudo tivesse que começar com iniciativas da autoridade suprema. João XXIII abriu o caminho quando decidiu que o Concílio não faria condenações, mudando assim uma tradição que começou em Nicéia. Era a porta aberta para uma teologia que deixa de estar preocupada pelas heresias e pelos ensinamentos do magistério lutando contra as heresias.
Hoje em dia, há a prioridade da evangelização e de uma Igreja missionária. A realizaçãoprática desse projeto é lenta, porque ela supõe reformas importantes, e falta audácia para iniciá-las. Fala-se de missão e evangelização, mas falta a coragem para fazer as transformações necessárias, por exemplo na teologia e na formação cristã em geral. Não podemos perder a esperança. Um dia chegaráquando teremos a coragem de voltar às origens para reunir-nos de novo com a Tradição de vida que é a palavra de Deus.
Para o livro coletivo oferecido a Ivone Gebara 2010 -
(que acabou não sendo publicado)