Abordagem teológica
Francisco de Aquino Júnior
Doutor em teologia pela Westfäliche Wilhelms-Universität Münster – Alemanha;
professor de teologia na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP);
presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE.
A teologia se configura e se desenvolve, simultânea e paradoxalmente, como inteligência da fé e como serviço à fé. É um esforço intelectivo de apreensão, explicitação e elaboração teórica da fé. Mas um esforço que visa e está a serviço da vivência e do fortalecimento dessa mesma fé. De modo que a teologia se configura e se desenvolve num duplo movimento: da vivência da fé à teoria da fé (inteligência da fé) e da teoria da fé à vivência da fé (serviço à fé). De uma forma ou de outra, é sempre um momento da fé: momento teórico e/ou momento iluminador.
Sem fé não há teologia (inteligência da fé) e sem fé a teologia é um discurso ineficaz e inútil (serviço à fé). Mas a fé é sempre vivida em um contexto histórico bem determinado que condiciona, positiva e/ou negativamente, tanto a vivência da fé em geral, quando o desenvolvimento de seu momento mais propriamente intelectivo que é a teologia. Daí o caráter contextual de toda teologia. É desenvolvida sempre em um contexto bem determinado, sendo condicionada e possibilitada por esse mesmo contexto. E é confrontada sempre de novo pelos novos contextos em que a fé é vivida, confronto que revela sua força e atualidade e/ou seus limites e ambiguidades.
Neste sentido, a teologia é uma tarefa permanente na Igreja: tarefa de enfrentamento dos contextos e das situações em que os cristãos vivem sua fé (serviço à fé) e tarefa de (re)formulação da fé nesses mesmos contextos ou situações (inteligência da fé). Sempre de novo é retomada e reformulada. E é, aqui, precisamente, que se insere e se justifica a reflexão teológica desenvolvida na encíclica Laudato si do papa Francisco Sobre o cuidado da casa comum.
Este texto trata especificamente das contribuições que a encíclica oferece para uma reflexão teológica sobre a atual problemática sócio-ambiental. Começa com uma apresentação da encíclica e passa recolher e sistematizar suas contribuições teológicas.
I – A ENCÍCLICA LAUDATO SI
Esta encíclica se insere no “magistério social da Igreja” (15)1 e se dirige “a cada pessoa que habita neste planeta” no intuito de dialogar com todos “acerca da nossa casa comum” (3). Ela convoca todas as pessoas, comunidades, organismos e instituições a ouvirem os gritos/clamores/gemidos da terra e dos pobres (cf. 49, 53, 117) e lança “um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta” (14): “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar [...] A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (13).
Em sintonia com o “movimento ecológico mundial”, Francisco insiste na necessidade e urgência de um “debate que nos una a todos” e de uma “nova solidariedade universal” (14). E espera que esta carta encíclica “nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente” (15).
A estrutura do texto é clara e, de alguma forma, corresponde ao clássico método ver-julgar-agir. Faz uma “breve resenha dos vários aspectos da atual crise ecológica”, recolhendo “os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível” e dando “uma base concreta ao percurso ético e espiritual” seguido na encíclica [Cap. I] e procura “chegar às raízes da situação atual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas” [Cap. III]. Retoma “algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente” [Cap. II]. Por fim, propõe “uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar especifico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas reações com a realidade que o rodeia” [Cap. IV], verifica “algumas das grandes linhas de diálogo e de ação que envolvem, seja cada um de nós, seja a política internacional” [Cap. V] e propõe “algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã” [Cap. VI] (15).
Conforme adverte o papa no fim da introdução da encíclica, “embora cada capítulo tenha sua temática própria e uma metodologia específica, o [capítulo] seguinte retoma por sua vez, a partir de uma nova perspectiva, questões importantes abordadas nos capítulos anteriores. Isso diz respeito especialmente a alguns eixos que atravessam a encíclica inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta de um novo estilo de vida. Estes temas nunca dão por encerrados nem se abandonam, mas são constantemente retomados e enriquecidos” (16).
Esta visão panorâmica da encíclica e dos eixos fundamentais que a estruturam nos ajudam a perceber a amplidão e complexidade da reflexão desenvolvida e proposta. Aqui, como indicamos acima, interessa apenas recolher e sistematizar os vários elementos que estruturam a reflexão teológica sobre a problemática ambiental na encíclica; elementos mais ou menos desenvolvidos ou apenas intuídos; e elementos que provocam, envolvem e comprometem a comunidade teológica. Uma espécie de “guia de leitura” que retoma e sistematiza o texto e facilita e provoca o debate.
Pode parecer estranho que uma carta dirigida a todas as pessoas e a todos os povos se detenha em apresentar as “convicções”, as “motivações” e as “exigências” da fé cristã em relação à problemática sócio-ambiental (cf. 17, 62, 64).
No entanto, “se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser preterida, nem sequer a sabedoria religiosa com sua linguagem própria” (63).
Além do mais, “embora esta encíclica se abra a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de libertação”, é importante mostrar “como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações importantes para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se, pelo simples fato de serem humanas, as pessoas se sentem motivadas a cuidar do ambiente de que fazem parte, ‘os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte de sua fé. Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções” (64).
Certamente, essas convicções nem sempre foram tão claras nem muito menos levadas a sério pelos cristãos. Não sem razão, pesa sobre o “pensamento judaico-cristão” a acusação de favorecer “a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador” (67). Mas elas vêm sendo explicitadas e reelaboradas pela Igreja nos últimos tempos em diálogo com cientistas, filósofos, teólogos, igrejas, religiões e organizações sociais no mundo inteiro (cf. 7).
Revisitando a Escritura e a Tradição da Igreja, de modo particular, o testemunho de Francisco de Assis (cf. 10-12) e textos dos últimos papas (cf. 3-6), do Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, de várias conferências episcopais2 e, inclusive, de outras Igrejas (cf. 7-9), Francisco recolhe e apresenta algumas convicções cristãs fundamentais para o enfrentamento da problemática ambiental, ao mesmo tempo em que adverte contra ou até mesmo corrige interpretações ambíguas ou erradas da fé cristã que favorecem ou podem favorecer o “domínio despótico do ser humano sobre a criação” (cf. 67, 121, 200).
Cremos poder resumir e sistematizar essas “convicções” ou “motivações” ou “exigências” da fé em cinco pontos que esboçaremos a seguir e que formularemos com expressões do próprio documento: “evangelho da criação”, “pecados contra a criação”, “conversão ecológica”, “espiritualidade ecológica” e “esperança”.
1. “Evangelho da criação”
A colaboração dos cristãos no enfrentamento dos problemas sócio-ambientais está profundamente vinculada ao modo como se entende, na fé cristã, o vínculo essencial entre a relação com Deus e a relação com o conjunto da criação. Isso faz com os problemas sociais e ambientais sejam problemas de fé (cf. 9, 12, 33, 65, 233ss, 238ss, 243ss) e, consequentemente, faz com que o compromisso sócio-ambiental dos cristãos seja um compromisso de fé (cf. 5, 13s, 53, 63, 64,65, 68, 78, 93ss, 214).
“Na tradição judaico-cristã, dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto de amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado. A natureza tem a ver habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal” (76).
No contexto mais amplo da criação, está a criação da humanidade à imagem e semelhança de Deus (cf. 62) e com a tarefa de cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. 62). De acordo com as narrativas bíblicas, a realidade humana aparece em relação com Deus, com o próximo e com a terra (cf. 66), mas com uma “imensa dignidade” (65) e com uma “responsabilidade perante uma terra que é de Deus” (68). Aparece, simultaneamente, como parte da criação e como corresponsável pela criação, para além de todo “antropocentrismo despótico” (68) e de todo “biocentrismo” cínico (118).
“O fato de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer de que toda criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós” (84). Mas “isto não significa igualar todos os seres vivos e tirar do ser humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade” (90, cf. 118-121). “Ás vezes nota-se a obsessão de negar qualquer proeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos” (90).
“Devemos, certamente, ter a preocupação de que os outros seres vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveria indignar-nos, sobretudo, as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros” (90). “Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta [...] Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade” (91). “Toda abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos” (93).
De modo que o “evangelho da criação” é um evangelho eco-social. Diz respeito a toda criação e, nela, de modo particular, à criatura humana. A grande boa notícia que os cristãos temos para compartilhar com o mundo é que, para nós, todos os seres são criaturas de Deus, expressão do seu amor, manifestação de sua glória e, portanto, muito mais que meros recursos, meios ou instrumentos; e que a criatura humana tem uma “especial dignidade” que implica numa “tremenda responsabilidade” com o conjunto da criação. Ofender a criação e particularmente à criatura humana é ofender a Deus. Cuidar da criação, sobretudo da vida humana, é colaborar com a obra criadora de Deus, assumindo a tarefa que ele nos confiou.
2. “Pecados contra a criação”
O “evangelho da criação” diz respeito ao desígnio de Deus para toda criação e à relação da criatura humana com o conjunto da criação. Ela é, ao mesmo tempo, parte da criação e corresponsável pela criação. Reduzir a criação a mero instrumento ou recurso e/ou desresponsabilizar-se do cuidado da criação é romper com Deus, negando ou mesmo atentando contra seu desígnio criador. E nisto, precisamente, consiste o pecado, enquanto ruptura e/ou oposição a Deus.
É neste sentido que Francisco fala, com o Patriarca Bartolomeu, de “pecados contra a criação”: “‘Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas úmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, os solos, o ar... tudo isso é pecado’. Porque ‘um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmo e um pecado contra Deus’” (8).
Trata-se, aqui, de uma nova dimensão do pecado e, sobretudo, da consciência e explicitação de uma nova configuração e manifestação do pecado em nosso mundo: “O pecado manifesta-se hoje, com toda sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza” (66).
Para os cristãos, a atual “crise ecológica”, mais que uma crise social e ambiental, é uma crise espiritual que diz respeito, negativamente, à nossa relação com Deus. É, certamente, “um crime contra a natureza e um crime contra nós mesmos” (8). É, sem dúvida, uma injustiça sócio-ambiental em que uns lucram com a crise e outros padecem com ela e pegam seu preço (cf. 36, 51, 142, 195). Mas é, em última instância, “um pecado contra Deus” (8). Esse crime contra a natureza e contra nós mesmos e essa injustiça sócio-ambiental se configuram, na prática, como ruptura com Deus; é um atentado contra sua obra criadora e seu desígnio criador para o ser humano. Numa linguagem mais poética e profética poderíamos dizer que o grito da terra e o grito do pobre (cf. 49, 53, 117) são em última instancia um grito de Deus. É toda a problemática do “pecado ecológico”3 que precisa ser melhor explicitada, desenvolvida e elaborada.
3. “Conversão ecológica”
A consciência dos “pecados contra a criação” ou do caráter pecaminoso da crise ecológica é inseparável do chamado à conversão. Já o papa João Paulo II falava da necessidade de uma “conversão ecológica global” (5). E o Patriarca Bartolomeu insistiu particularmente na “necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de maltratar o planeta, porque ‘todos, na medida em que causamos pequenos danos ecológicos’, somos chamados a reconhecer’ a nossa contribuição – pequena ou grande – para a desfiguração e destruição do ambiente’” (8).
Recordando o testemunho de Francisco de Assis, “exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral” (10), o papa Francisco renova o apelo a uma verdadeira “conversão ecológica” (cf. 216-221), na linha de “uma sã relação com a criação, como dimensão da conversão integral da pessoa” ou de uma “reconciliação com a criação”, o que implica reconhecimento do pecado, arrependimento de coração e mudança de vida (218).
Este apelo se dirige em primeiro lugar aos cristãos: “Temos de reconhecer que nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com tudo o que nos rodeia” (216): alguns “frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente” e outros “não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes”. Dai que “a crise ecológica [seja] um apelo a uma profunda conversão interior” (217).
Mas isto não basta. “Para se resolver uma situação tão complexa como esta que o mundo atual enfrenta, não basta que cada um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem ética e sem sentido social. Aos problemas sociais responde-se não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias [...] A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (219).
De modo que a “conversão ecológica”, de que fala o papa Francisco, é tanto uma “conversão interior” quanto uma “conversão comunitária”. Pessoas novas e sociedades novas para uma nova relação entre si e com a natureza. Portanto, conversão “global” (5) ou “integral” (218): conversão das pessoas e das estruturas da sociedade...
4. “Espiritualidade ecológica”
A “conversão ecológica” se dá e se manifesta na vivência de uma autêntica “espiritualidade ecológica”, “pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver” (216). A espiritualidade não tem a ver apenas nem em primeiro lugar com “doutrinas”, mas, antes, com “uma mística que nos anima”, com “uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (216).
Ela comporta e se traduz em “várias atitudes que se conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura” com o conjunto da criação, em particular com a criatura humana: “gratidão e gratitude” perante o mundo “como dom recebido do amor do Pai”; “consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres uma estupenda comunhão universal”; desenvolvimento da “criatividade e entusiasmo” humanos “para resolver os dramas do mundo”, reconhecendo sua “superioridade” não “como motivo de glória pessoal nem de domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé” (220).
E isso, tanto no que diz respeito a “uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo” (222); quanto no que diz respeito às “macrorelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos” (231). Pois “o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor” (231).
“Juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se santifica” (231). O amor social se exercita tanto numa atuação mais diretamente política, quanto mediante “associações que intervém em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano” (232).
A “espiritualidade ecológica” é inseparável de uma “educação ecológica”. É preciso “educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente” (cf. 209-215). Certamente, “compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da população”. Mas isso “compete também à Igreja”: “Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação. Espero também que nos nossos Seminários e Casa Religiosas de Formação se eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente” (214). “É preciso ter presente que os modelos de pensamento influem realmente nos comportamentos” (215).
A “espiritualidade ecológica” é expressão de uma autêntica “conversão ecológica” ao “evangelho da criação”, o que significa, na linha de Francisco de Assis, uma “reconciliação universal com todas as criaturas”, uma espécie de volta ou reestabelecimento do “estado de inocência original” em que a existência humana aparece em relação harmoniosa com Deus, com o próximo e com a terra (cf. 66).
5. Esperança
Se é impactante o realismo com que Francisco aborda os “efeitos” e as “causas” da “crise ecológica”; não menos impactante é o otimismo e a esperança com que ele a aborda. É um texto dramático, mas não catastrófico. É perpassado de esperança do começo ao fim; não uma esperança ingênua ou cínica, mas uma esperança comprometida e comprometedora: “A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas” (61).
E esta esperança se funda e se nutre em última instância em Deus que sempre oferece à humanidade “a possibilidade de um novo início” (71). Não obstante o nosso pecado, “Deus, que deseja atuar conosco e contar com a nossa colaboração, é capaz também de tirar algo bom dos males que praticamos, porque ‘o Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover e desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis [...] Esta presença divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, ‘é a continuação da ação criadora’. O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo novo” (80).
Aqui está o fundamento e a fonte da esperança que perpassa a encíclica e nos anima e nos compromete no enfretamento na crise ecológica: “Nem tudo está perdido porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também se superar, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de olhar para si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações” (205).
É esta convicção que permite Francisco enfrentar de forma tão realista o drama sócio-ambiental que vivemos sem perder a lucidez nem a esperança. É esta mesma convicção que o leva a buscar e discernir sinais e indícios de novidade ou alternativa no mundo, não obstante seus limites e ambiguidades (cf. 26, 34, 35, 37, 54, 55, 58, 111, 112, 167, 168, 169, 179, 180, 206, 211), sem, porém, iludir-se com soluções aparentes ou cínicas (cf. 170, 171, 194, 197). Nem tudo está perdido. Nada neste mundo é definitivo. Sempre há ou pode haver uma saída... Deus nunca nos abandona... Seu Espirito continua agindo e recriando o mundo... Há esperança... Esperemos comprometidamente...
CONCLUINDO...
Estas “convicções” de fé indicadas pela encíclica e aqui simplesmente esboçadas são fundamentais e determinantes na vida cristã; são a base e as motivações da ação cristã no mundo, individual e/ou socialmente considerada, e, assim, são uma contribuição teórica e prática no enfrentamento da atual crise ecológica.
Convém, em todo caso, advertir com Francisco que essas “convicções” de fé “podem soar como uma mensagem repetitiva e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir de um confronto com o contexto atual no que esse tem de inédito para a história da humanidade” (17). É que a teologia não é apenas uma teoria da fé mais ou menos correta e adequada a ser decorada e repetida a modo de catecismo. É também e sempre um serviço à fé, uma convicção que orienta e motiva a ação dos cristãos no mundo, sendo sempre de novo confrontada e reelaborada nos contextos e nas circunstancias em que a fé a vivida.
1 PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. Ao longo do texto, os números entre parêntese sem outra indicação referem-se à numeração da encíclica e será citado de acordo com o texto das paulinas.
2 Francisco cita textos de 17 conferências episcopais, algo raro ou mesmo inédito em documentos dos bispos de Roma. Com isso, reforça, em sintonia com o Concílio Vaticano II, a importância e a necessidade de um processo de descentralização na Igreja que reconheça as conferências episcopais como “sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal”, como indica em sua Exortação Apostólica Evagelii Gaudium (EG, 32).
3 O Texto-Base da CF 2011 “Fraternidade e a vida no planeta” já fazia referência à “dimensão ecológica” do pecado (cf. 180-183).