Alzirinha Rocha
Introdução
Trata-se de texto preparatório para a Conferência realizada na VII Semana José Comblin, em 13 de setembro de 2018, em João Pessoa. E eu inicio por dizer que há duas maneiras de se fazer a história. A primeira maneira é buscar continuamente seu esquecimento gerando uma falsa ideia de uma a-historicidade do momento atual. A segunda maneira está em fazer memória do passado, em seu sentido mais estrito: recuperar o passado atualizá-lo ao presente para projetar um futuro promissor. É neste sentido que seguirá nossa conferência: faremos memória ao contexto da realização de MD e sua motivação, e trabalharemos sua recepção de maneira mais elástica, é dizer, não somente nos anos 60, mas queremos incluir o “como” esta repecção nos impacta hoje e pode nos ajudar a projetar novas perspectivas para a Igreja Latino-Americana.
Neste sentido, é preciso distinguir entre o evento (conferência/documento) e o processo gestado e/ou desencadeado por este evento (dimanismo eclesial novo). Alguns autores, entre os quais João Batista Libanio (1981,p.80), chega a afirmar que “o mais importante não foram os textos, mas o significado e o símbolo que se tornou para a Igreja e para o Continente LA”. Da mesma forma, Eduardo Pirônio, Bispo de Mar del Plata e presidente do CELAM, cinco anos depois de Medellín afirmará: “Medellín vale mais pelo que sugere e inspira, do que pelo que diz materialmente” (Apud, Aquino, 2017,p.43). Neste sentido a leitura atual de Medellín não pode ser reduzido unicamente a um conjunto de documentos. Em definitivo a Conferência representou muito mais.
MD foi um marco inaugual para a Igreja LA e caribenha. Nas palavras de Fernando Altemeyer (2017.p.83): “Foi como seu batismo de fogo e sangue. Depois de 476 anos da chegada dos colonizadores, pela primeira vez, em lugar de reproduzir esquemas estrangeiros, os seguidores de Jesus assumiam, pela voz dos Bispos Católicos, uma voz própria e um novo jeito de ser Igreja a partir dos pobres explorados do Continente”. Como veremos ao longo de nossa exposição, a partir de MD temos o início de transformação da nossa Igreja, seja na pastoral, seja na teologia, onde “ganhamos distância dos regimes e sistemas com os quais convivia. Ganhando distância e altura sobre eles, ela começa a vê-los sobre luz nova; começa a iluminá-los com a irradiação evangélica, percebe tudo o que neste havia de injustiça e iniquidade” (Ávila,1995,p.288).
Por isso, podemos repetir que MD é expressão de uma nova presença de Igreja na América Latina, pontuada pela coragem profética de reagir sobretudo contra a situação de miséria, injustiça e alienação que marcavam o continente naquela ocasião. (Faustino, 2017, p.59). Seus envolvidos, reconheciam que a “violência institucionalizada” (MD II, 2) que deveria ser superada por um projeto de paz para o continente não poderia ser realizado fora do contexto da justiça social, que interpelando a realidade á luz do Evangelho, chegava ao diagnóstico preciso de uma “situação de pecado estrutural”. (MD, II,4)
A partir destes elementos iniciais, podemos nos perguntar de onde vem a pertinência atual dos elementos de MD, cincoenta anos depois? Seria da constatação da dificuldade e/ou ausência do profetismo de parte da Igreja em superar / denunciar, sistemas econômicos e políticos, que insistem na manutenação e fabricação dos pobres? Ou seria, como no dizer de D. Helder, por causa da resistência das “minorias abraamicas”, que insistem em defendê-los e que nunca os tendo abandonado, os toma continuamente como os prioritários de Deus estando em sua defesa?
Em definitivo a importância de estarmos aqui, é o fato que MD segue viva como um marco da Igreja LA. Cabe a nós, e é nosso desafio realizar sua releitura, sua constante recontextualização e tomá-la como paradigma de respostas ao tempo presente.Para tanto dividiremos nossa exposição em três partes: 1) a contextualização histórica e as mudanças teológicas dos anos 50/60; 2) as características e deficiências de MD e finalmente a Conferência de MD na agenda dos dias atuais.
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Memórias...Retrospectivahistórica e teológica
Desde o Século XIX a Igreja veio fazendo frente às questões do mundo que se apresentava em meio a grandes transformações políticas, econômicas e sociais, marcado por um período que se definirá entre as duas grandes guerras.
Ao começo do Séc. XX, em 1922, Pio XI (+ 1939) enfrenta a questão da Grande Depressão, a ascensão do Comunismo na Rússia, do fascismo na Alemanha e na Itália de Mussolini levando à questão Romana e a criação em 1929 do Estado do Vaticano soberano e independente. Apesar das contradições, sua luta contra os regimes despóticos é registrada na Encíclica Quadragésimo Anno (1931) onde apresenta uma crítica aos regimes socialistas e capitalistas incluindo o comunismo (O’Malley, 2011.p.120).
A Pio XI sucederá Pio XII (+ 1958), que seis meses após sua eleição, deverá fazer face aos horrores da Segunda Guerra mundial e as escolhas difíceis que essa guerra vai impor a Santa Sé. Este passa para a história com um dos papas mais contraditórios da Igreja recente. O fato de não ter condenado o holocausto explicitamente no Natal de 1944, será a origem de muitos estudos sobre sua pessoa e suas ações e muitas vezes não trará a luz o fato de em seu discurso ter condenado os regimes ditatoriais e ter usado as palavras “dignidade” e “liberdade”, que quase nunca eram utilizadas nos discursos papais.
Pio XII viu o mundo se transformar em seu papado. Ao final da Segunda Guerra mundial, as lembranças dos horrores e a ameaça apresentada pela bomba atômica, suscitaram ao mesmo tempo medo do futuro e a convicção dos povos de terem de trabalhar juntos para não enfrentarem a destruição total. A criação das Nações Unidas em 1946 é um dos frutos dessa consciência adquirida nesses anos. Apesar de todos os esforços, o mundo do pós-guerra terminará dividido em dois blocos: comunistas ditos “ateus” e capitalistas ditos “cristãos”. A cortina de ferro da guerra fria dividirá a Europa e se tornará a obstinação do futuro papa JP II. A grande guerra tinha acabado, mas a calmaria esperada para esse período se escapara das mãos. O mundo encontrava-se em extrema ebulição.
A realidade social e econômica
De fato, ao final dos anos 50 e começo dos 60, o mundo se encontrava em ebulição. Se em Europa os populismos haviam se dado por “extintos” em AL em âmbito político-social, acontecia o movimento contrário. Governos estimularam as consciências nacionalistas e o desenvolvimento industrial com o objetivo de beneficiar os burgueses nacionais e as populações urbanas, através do conhecido padrão de dependência de capital associado aos países ricos, o que reforçava a exclusão da maioria da população.
A ordem do dia passou a ser a grande mudança de uma sociedade rural a uma sociedade cada vez mais urbanizada, sem oferecer uma estrutura de igualdade e possibilidades às pessoas. Por detrás dessa situação estava o projeto de desenvolvimento econômico e social chamado pelos USA de “Aliança para o progresso”, globalmente conhecido pelo aumento das desigualdades existentes (Miccoli, 2012. p.36). Essa situação de exclusão econômica e social provoca mobilização nos países LA e a reivindicação de transformações profundas as quais o mundo igualmente demandava.
Ao final dos anos 60, com a crise do populismo e do modelo de desenvolvimento, cresce o modelo socialista. Esse passa a ser a base estrutural de reflexão, compreensão das causas do desenvolvimento e subdesenvolvimento e suas conseqüências concretas na vida dos povos em contraposição aos países europeus e norte-americanos, que estavam comprometidos com um processo de desenvolvimento baseado na desigualdade, colocando em evidência os benefícios aproveitados pelos países desenvolvidos e centrais enquanto os prejuízos eram reservados aos países periféricos. Em AL esse movimento foi marcado profundamente pela Revolução Cubana de 1959, que estimulou também aos diversos movimentos de resistência nascidos nos países desse continente (Miccoli, 2012. p.37).
O Ano de 1968 é emblemático, quanto as mudanças e acontecimentos. O acontecimento de “Maio de 1968 de Paris” dado pela Revolução estudantil e greve geral em Europa, é um sintoma que compila muitos outros eventos ao redor do mundo. O Leste Europeu é marcado pela “Primavera de Praga” que dura de Janeiro a Agosto; as duas Coréias se atacam mutuamente no evento chamado a “ofensiva do Tibet”; na Africa do Sul se iniciam as primeiras manifestações contra “apartheid”; nos USA dois assassinatos são marcantes : o lider negro Marther Luther King e o senador branco Bob Kenedy; e no Brasil a medida em que Costa e Silva proíbe as manifestações e assina o AI5 fechando o Congresso nacional, a repressão contra a expressão cultural ( a peça Roda Viva é censurada, cantores são exilados) , se aferrece as manifestações estudantis, a marcha dos “100 mil no Rio de Janeiro” , a batalha da Rua Maria Antônia em SP. Enfim um período de trevas na História recente.
O movimento eclesial
Paralelamente entre os anos 50 e 60, uma grande corrente renovadora soprará alguns espaços do ambiente eclesial, assumindo um novo posicionamento de seu trabalho missionário e evangelizador, contando com o engajamento dos leigos nos trabalhos sociais, ao passo que padres e Bispos mais carismáticos, se comprometem com o avanço e a modernização.
Alimentados pelas teorias das novas correntes nascidas na Europa que se aproximavam das realidades do mundo e duas demandas, tais como a Teologia das realidades terrestres de Gustave Thills, o Humanismo integral de Jacques Maritan, o Personalismo de Emmanuel Mounier, a Evolução progressista de Theillard de Chardin, aliadas as reflexões de Dimensões sociais dos dogmas de Henri de Lubac, a Teologia do laicato de Yves Congar e o trabalho Eclesiológicos de Marie-Dominique Chenu, novos movimentos explodem pelo mundo.
Em América Latina, as mudanças vieram através do movimento da Ação Católica, dos Movimentos de Educação de Base (MEB) baseado na pedagogia de Paulo Freire de conscientização pela educação, das Escolas Radiofônicas e finalmente as Cebs. De fato, a necessidade de compreensão da realidade, levou a re-organização eclesial com o nascimento das Conferências Episcopais.
No Rio de Janeiro em 1955/56 nasce o CELAM (Conferencia Episcopal Latino Americana), reforçando o interesse de organização continental. Sua criação foi fundamental para a tomada de consciência eclesial comum, sentimentos de integração latino-americano e uma busca comum de soluções e desafios aos problemas a partir da fé cristã, notadamente através de levantamentos sócio-geográficos realizados pelo FERES - Suíça de François Houtard, ILADES( Instituto Latino americano de Desenvolvimento) e pelo Centro de desenvolvimento econômico de Bogotá.
Enquanto à religião, e aqui tratamos do termo religião dada a característica ecumêmica destes anos, nasce de maneira geral uma grande inquietude pelo distanciamento entre a pastoral tradicional e as novas necessidades do povo cristão, inseridos dentro da mudança social. O desejo de renovação pastoral e institucional era intenso entre os espaços ocupados pela Ação Católica, especializada em Encíclicas Sociais, que exercia forte influência em setores importantes do laicato, do clero e dos Bispos. Buscava-se uma pastoral mais intensiva, a partir de uma formação política e social para uma Igreja que deveria voltar a ser fermento na massa e servidora do mundo, independente dos poderes civis instituídos.
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Características de Medellín
É tomando por referência esse contexto histórico e teológico que queremos continuar nossa reflexão sobre a Conferência de MD, que trás consigo três características chave.
A primeira característica de MD foi formular a missão específica e conjetural da Igreja em AL a partir das situações históricas que vivia a população do continente. Daí vem sua carga antropológica e um caminho de reflexão teológico-pastoral de caráter indutivo.
É por esta perspectiva que se reconhece a influência de GS e PP, quando a conferência opta por assumir a realidade LA e seus processos históricos discernindo seus valores, suas ambigüidades, seus pecados, como parte da História da Salvação e como uma via para a experiência cristã e sua missão.
Uma segunda característica de MD é o recurso dos Sinais dos Tempos,inspirado claramente na GS. Este que tema foi tomado de forma ampla e universal pelo Concílio, a Conferência traduz ao discernir o que pode ser considerado “o Sinal dos Tempos para América Latina”. Os bispos a partir da análise de todos os estudos preparados pelas comissões do CELAM, construídos sobre a realidade social do continente, privilegiam como STPs: as injustiças e o processo de desumanização social. Dessa constatação provém o chamado à Igreja de retomar sua tradicional luta histórica, de maneira claramente crítica e libertadora, contra o que MD chamará de pecado social, que se traduz por uma opção de evangelização e libertação integral dos pobres e dos oprimidos do continente. Esta síntese entre história e graça toma corpo progressivamente com o nome de “evangelização libertadora”. (Malley, 1987, p.69).
Este tipo de evangelização está marcada por uma das dimensões ou linhas gerais do Concílio: a Igreja como servidora do mundo. Isto se exerce de maneira integral dentro do temporal e dentro do espiritual, sempre através da Evangelização. Esta é a síntese conciliar de uma evangelização integral, onde os Bispos compreendem que o serviço ao mundo por parte da Igreja desse continente se caracteriza pelo serviço a libertação cristã dos pobres. O mundo de GS, que será privilegiado em América Latina é o mundo dos pobres e dos marginalizados.
Uma terceira característica de MD, é a valorização da Igreja latino americana em nível local, resgatando cada uma com sua personalidade própria e suas riquezas ao interior da comunhão católica. Assim, é a partir da eclesiologia conciliar, onde cada Igreja local enriquece a Igreja Universal e é enriquecida por ela e por outras Igrejas, que MD traduz como comunhão eclesial, por ampliação de uma leitura eclesiológica, para o contexto Lamericano.
A Conferência afirma uma linguagem pastoral de percepção de suas raízes intelectuais e históricas que são a base da Igreja local, e da diversidade das Igrejas para descobrir melhor sua localização. Reconhece ainda de maneira ampla e oficial não somente as características da Igreja local no continente, senão que também realiza uma pastoral vinculada a vida cristã dessas Igrejas locais. A partir desta eleição, MD desenvolve o tema do pluralismo religioso e religiosidade popular.
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As insuficiências de Medellín
Em que pese estes elementos positivos e a coragem dos Bispos de realizar uma Conferência continental logo em seguida ao Concílio, outros elementos como: a proximidade de datas, o pouco tempo de maturação dos temas, apesar de toda a preparação e avaliação da realidade local, geraram algumas insuficiências de temas que deixaram de ser abordados.
O primeiro tema foi que MD centrou-se demasiadamente na realidade do continente, quase desconectando-o do resto do mundo, descuidando do contexto mundial. O segundo ponto trata da insuficiente abordagem do tema das culturas latino- americanas e sua relação com a evangelização e a identidade do continente. O terceiro ponto não abordado foi a crise sacerdotal e das vocações em geral, crise que se viveu toda a Igreja ocidental depois do Concílio e que afetou seriamente a América latina1. O último e quarto ponto que destacamos foi o insuficiente apoio teológico para temas chave como as Cebs e o catolicismo popular. (Galilea, 1985, p.98).
Contudo, há de se ressaltar que estas limitações serão re-trabalhadas na Conferência de PB, que contará com a produção teológicadesenvolvida, no período que separa as duas conferências.
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Perspectivas: anos seguintes e atuais.
Dado que repassamos os principais dados históricos e característicos de MD, sigamos agora pelas perspectivas dos anos que se seguiram desde sua realização até a agenda do presente.
Os anos que se seguiram a MD refletiram bem a alegria da realização do Concílio Vaticano II e sua proposta de aproximação com a realidade. Não somente a Igreja de maneira geral toma consciência das realidades em que está inserida, como aqueles que nela participam estão motivados a trabalharem. Seus membros estavam motivados a participar ativamente em todos os níveis de atividade eclesiais, tendo encontrado um denominador comum de sua luta: os pobres.
Decididamente nos anos 60 a 80, a Igreja LA em sua maioria havia mudado de lado e se colocava ao lado dos pobres, necessitados e oprimidos resultantes dos sistemas econômicos e políticos vigentes. Ressalta-se nesse tempo o sentido de pertença e a consciência de trabalhar em comunidade. E em comunidade Eclesial, em seus mais diversos níveis a Igreja se colocava e era ouvida no Continente.
A forte marca profética de seus representantes em AL geravacerto orgulho e unidade de fé em torno a um compromisso eclesial que levava a construir uma sociedade de justiça e fraternidade. Lutando contra toda esperança imediata, a força do laicato nascido e formado nos anos da Ação Católica e de padres, religiosas (os) e bispos, esperavam de forma atuante a transformação da sociedade em que se encontravam.
A marca de “povo de Deus” era visível nesta unidade, e ultrapassava os limites eclesiais abarcando aqueles que estavam nas “estruturas” e desde estas poderiam lutar com as razões do Evangelho, nos movimentos sociais, sindicatos, militância política, em um movimento de inclusão em prol de uma sociedade transformada.
O desenvolvimento pastoral assume o anteriormente definido desde o final do Concílio através do PPC (Primeiro Plano de Pastoral de Conjunto da CNBB) de 1967. As lideranças religiosas e leigas encontravam-se em um movimento de inserção nas realidades e, desde elas multiplicavam os espaços de formação, de ação pastoral entendida como um elementos essencial á vida cristã.
Nestes anos nascem em Recife a Operação Esperança de D Helder, na tentativa de unir ricos e pobres em prol dos desabrigados da grande cheia do Capiparibe e em São Paulo, a Operação Periferia de D. Paulo Evaristo que multiplicava nas áreas mais desprivilegiadas da cidade as Cebs; a organização das entidades sociais da arquidiocese, ambas metrizadas pelo método V-J-A de contemplação na ação e da busca de transformação social e a automia e engajamento dos (s) leigos (as). Com maior ou menor intensidade, isso foi vivenciado em todos os cantos do continente, porque, se esta forma de pensar e viver a Igreja nunca foram unânimes, era ela largamente hegemônica. (Manzatto, 2017, p.30).
O que ficou claro é que a situação eclesial durante estes anos mudou e muito, e há razões para isso. A primeira delas, é que muitas causas pelas quais lutavam o povo de Deus nesta época foram resolvidas e conquistadas. Notadamente em São Paulo, os assentamentos nas periferias, a construção de infra-estruturas de base para trabalhadores e famílias de migrantes internos, a construção e solidificação das comunidades de base, etc. Ainda que pudesse ser pequeno e insuficiente, o compromisso de luta dos cristãos em aliança com as forças sociais foram eficazes.
O contexto LA, foi se transformando. Aos poucos caem as ditaduras e as democracias ainda que formais renascem no Continente e, por ende o mundo todo entra em nova transformação. O ano de 1989 é emblemático. No ano que se celebrava 10 anos da Conferência de Puebla, três fatos foram marcantes: 1) a queda do Muro de Berlin, que permite e exige uma nova ordem mundial política, econômica e religiosa, notadamente por causa do fim do “comunismo real”, 2) o renascimento e confirmação dominante de um capitalismo neo-liberal e excludente em todo o planeta, quase que como a única forma de sistema econômico válido. As consequências são visíveis até hoje: crescimento das empresas financeiras, implantação de uma ordem social econômica e não de produção, globalização da cultura e o consagração do neo-liberalismo.(Manzatto, 2017, p.30)
Em termos de Brasil, 1989, politicamente foi o ano da primeira eleição presidencial direta depois do regime militar (1964-1985), marcada por uma campanha eleitoral vergonhosa que terminou com o empichimant de Fernando Collor de Melo (1990-1992) dois anos mais tarde.
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Novas perspectivas eclesiais
Em termos eclesiais, as mudanças se iniciam um pouco antes, a partir da eleição de João Paulo II em 1978, começa-se a sentir os efeitos de sua nova linha Eclesial, pensada em duas chaves, onde ainda que semânticamente iguais se distanciavam muito da compreensão latino americana de “nova evangelização”e de “civilização cristã”.
Uma das melhores definições para o Papado de JP II parece-me o título o livro de Giovanni Miccoli sobre seu estudo: Le pontificat de Jean-Paul II. Un gouvernement contrasté (Miccoli, 2012). Definitivamente creio podermos afirmar que seu papado foi “contrastante” em muitos sentidos. Destacamos aqui os contrastes dados em relação às medidas conciliares.
Muitas teorias se apresentam para essa “volta” a grande disciplina. De fato, ao início dos anos 80 quando da eleição de JPII, a Igreja novamente encontrava-se em meio a um mundo que não somente colhia as mudanças dos 60 e 70, mas que se dava conta que essas não tiveram os efeitos desejados. O mesmo pensava grande parte da Cúria Romana em relação ao Concílio: se as mudanças e os avanços propostos, não respondiam mais as exigências atuais, ou até mesmo se algum dia as havia respondido.
Ora, aliado a isso, a frente da Igreja Católica, se encontrava um homem de origem “eslava”, o que em muito determinou seu Pontificado, conforme ele mesmo sugerira em seus discursos (João Paulo II, 1979), dando uma significação particular e providencial vinculada a seu papel no destino da Europa.
Desde seu primeiro pronunciamento em São Tiago de Compostela, Espanha em abril de 1990 (João Paulo II, 1990), JP II dá o tom de seu papado: uma “nova evangelização” radicada no passado que ele julgava estar na raiz da história da Europa. Sua crença era de que a diversidade de tradições religiosas católica do povo europeu pudera ser retomada em conjunto a partir do contexto eclesial. A Igreja nesse processo de nova evangelização salvaria a Europa de suas diferenças religiosas, sociais, econômicas, políticas. Seria a restauração do Continente. Essa concepção vinha de sua experiência pessoal em uma Polônia que soube resistir catolicamente unida aos ataques do secularismo, e a cultura individualista dominante nas sociedades capitalistas. Ora, era um caminho muito estreito pensar a Igreja mundial a partir de uma única experiência pessoal. (Miccolli, 2012, p.210)
Considerando que os batizados haviam abandonado suas raízes doutrinais e morais então contagiadas pelas novas demandas, a chamada nova-evangelização ficou a cargo dos “movimentos” nascidos no pós-concílio que manifestam que a “Palavra de Deus foi entendida e acolhida”. (João Paulo II, 1994, p.181) Os caminhos dos movimentos e das novas comunidades nascentes atendiam perfeitamente a “redescoberta” do sentido autêntico, pessoal, vividos em uma fidelidade inebriante em relação ao magistério da Igreja (João Paulo II, 1988). Tais movimentos forjaram as futuras Jornadas Mundiais da Juventude, e as reuniões em massa que realizará ao redor do mundo que manifestaram principalmente uma profunda ligação que unia os fiéis ao “pastor universal da Igreja”, a seu “doutor e mestre”. JPII estava persuadido que “os homens entregues a eles mesmos tem tendência a seguir seus instintos irracionais e egoístas”(João Paulo II, 1987).
É importante lembrar que apesar da simplicidade seu julgamento sobre a recuperação do mundo, esse não nascia de uma ignorância a respeito do mundo, senão de uma simplificação baseada de um lado na crença de que o Credo cristão católico havia evangelizado o mundo e de outro lado na crença de que recuperando o antigo cristianismo o atual poderia renascer de forma autêntica dando as sociedades um sentido para a reorganização.
Essa compreensão tem como conseqüência, a instauração dos movimentos em alternativa às atividades da Ação Católica, dando o sentido de reivindicar para a Igreja e seus cristãos a direção suprema da sociedade que a “cristandade” européia havia conhecido de outra forma, mas que havia por completo abandonado. Como complemento, essa nova evangelização é chamada a ser escutada até o fim do mundo, mas deve começar pela Europa. Dessa forma se manifesta ao mesmo tempo à distância e a inversão de valores que separam JPII de João XXIII em Gaudet mater Ecclesia (1962), quando da abertura do Concílio.
Em sua reflexão sobre este tema, afirmará José Comblin: “João Paulo II proclamou que os agentes da nova evangelização seriam os chamados movimentos, isto é: Opus Dei, Legionários de Cristo, Focolarinos, Comunhão e Libertação e outros semelhantes. Estes constituiriam uma tropa de choque, mas sem massa para seguir. É uma base muito estreita para fundar uma nova cristandade” (Comblin, 2007, p. 45).
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A posição da Igreja no mundo
JPII inclui um segundo conceito chave que marcará a diferença entre seu pontificado e seus antecessores pós-conciliares: o de “civilização cristã”, que aparece com freqüência em seus discursos, mas que remete efetivamente aos cenários do Século XIX. A urgência de superar as divisões do pós-concílio é proclamada fortemente. A fraqueza espiritual dos cristãos de agora, devem ser orientadas e as convicções vindas do Catecismo Universal, que republicado apresentava uma nova rigidez e disciplina que deve igualmente ser seguido no trabalho teológico e pela fé do povo cristão mesmo. Seus discursos eram acompanhados de recomendações que pareciam configurar nova evangelização em termos que propunham uma substância de adesão ligada ao depósito da fé e ao ensinamento tradicional (Miccoli, 2012, p.225).
O fato é que as novas linhas propostas por JPII desconsiderou por completo o reconhecimento da pluralidade de culturas, de religiões, de saberes, de colonizações. Assim como seu grande auxiliar J. Ratzinger, a Igreja no mundo deveria ser uma extensão da Igreja de Roma, como narrado por H. Cox (Cox, 2015, p.153). Contudo em seu papado Bento XVI não conseguiu ele mesmo, sustentar essa posição.
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Anos posteriores: consequência de um modelo fracassado
O modelo instaurado em João Paulo II e dado em continuidade por Bento XVI, notadamente não se sustentou. Ao final da era desses dois papas, o que se viu foi um sistema marcado por “discriminações, elitização abuso de poder, juridicismo, legalismo e ritualismo, itens que definitivamente não aparecem na ordem do dia dos Evangelhos, mas que se instalaram no meio eclesial (EG 93-97 onde o Papa vai utilizar a expressão “mundanismo”). Ao invés de fazer o mundo mais cristão, a Igreja acabou por tornar-se mais mundana e, os escândalos atingiram também os altos escalões que poderiamos pensar que estavamos falando de um grande conglomerado empresarial e não da Igreja De Cristo.
Foi necessário confessar o fracasso deste modelo implantado e cultivado nas últimas décadas. Não é verdade que basta o poder central decidir e as coisas acontecerem, porque o mundo é adulto e já foi “desencantado” (Apud Manzatto, Pierucci, 2003, p.34). Segundo A. Manzatto (2017, p.33) fracassou não somente o modelo político, mas também o espiritual proposto que tentava contrapor a TdLib acusando-a de ser des-espiritualizada e por isso as Igrejas se esvaziram. Fracassou porque se os tempos de MD produziam mártires, e o deste modelo produziram escândalos e suas Igrejas continuaram a esvaziar-se.
Neste sentido, o ano de 2013 foi marcante para a reorganização da Igreja: nele fomos surpreendidos pela renúncia de Bento XVI, que atesta de vez o fracasso do projeto neoconservador de Igreja. Conforme nos lembra Manzatto: “Dizia ele em sua renúncia, já não dispor de forças para conduzir a Igreja as reformas vitais e urgentes necessárias, e a instalação do conclave de seu sucessor já se fez na certeza de que o modelo anterior precisava ser mudado, e mudou” (Manzatto, 2017, p.35).
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Medellín na atualidade
E como compreender a pertinência e a importância de MD na atualidade? Primeiramente tomando em consideração que esta atualidade foi dada e garantida pela continuidade das conferências do CELAM. De fato, apesar das influências e seguidas tentativas de desarticulação ao longo dos anos, o espirito de colegialidade e as bases as conferências que se seguiram. Daí que cada conferência é caracterizada por uma chave primeira de leitura: PB, Missão, SD, Promoção humana, Aparecida: nova pastoralidade da Igreja.
Contudo, em nossa compreensão, o acontecimento principal dos últimos anos que garante a pertinência de MD e por consequências das demais conferências chama-se “Francisco” e a reproposição para os dias atuais da Agenda do Concílio Vaticano II e por consequência da Agenda de América latina.
A mudança veio pelo vento do Espírito soprado sobre o Concílio de 2013, desvelado na eleição do Papa Francisco. Como nos lembrou bem Leonardo Boff, naquele momento Francisco não era um simples nome, mas um projeto de Igreja, que tinha por desafio recuperar não somente a credibilidade da Igreja, mas o mais importante: sua pertinência no mundo atual, não somente para os que nela estavam como para os que nela queriam estar.
De certa maneira e guardadas as devidas proporções, o movimento realizado desde o Concilio Vaticano II, aprofundado em AL a partir da Conf de MD, de proximidade, conhecimento, compreensão e diálogo com o mundo atual é retomado na agenda de Francisco.
Em términos de AL, e em tanto que Igreja Una a partir das particularidades de cada Igreja local, cabe a cada um de nós, encontrarmos nos caminhos pertinentes de cada realidade, novas possibilidades de “sermos Igreja” e em seu sentido mais profundo, realizando àquilo que a somos chamados como constatou a MD: sermos presença, sinal, diálogo e anúncio e testemunho de novas formas de relações fraternas intra e extra eclesiais, a partir do paradigma da Pessoa de Jesus.
Ao final podemos dizer que se por um lado, os jornais brasileiros quando da época de realização de MD, publicaram artigos com títulos como “Quem vencerá Medellin?” (Extra, 1968), contrapondo conservadores, progressistas e revolucionários, de outro lado os bispos que ai participaram tal como D. Helder Câmara, ao retornar da Conferência, declarará a Igreja LA saira dai fortalecida uma vez que os Bispos estavam decididos a realizá-la (DDP, 10/09/1968). E ao que parece, apesar dos atropelos e exageros, e dado que estamos todos aqui, 50 anos depois, venceu MD.
Referências Bibliográficas:
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Aquino, F. Justiça. In: 50 anos de Medellín. Revisitando os textos retomando o caminho, São Paulo, Paulinas, 2017, p. 43-57.
Ávila, F. Pequena Enciclopédia da Doutrina Social da Igreja. São Paulo, Loyola, 1995. Verbete Medellín, p.288.
Comblin, J. Algumasreflexões sobre a formação sacerdotal hoje, In: Revista Eclesiástica Brasileira162, (1981) p. 331-346.
Faustino, T. A paz em construção. In: 50 anos de Medellín. Revisitando os textos retomando o caminho, São Paulo, Paulinas, 2017, p. 58-65.
Galilea, S. Exemple d’une réception “sélective” et créative du concile: l’Amérique Latine aux Conférences de Medellin et de Puebla, In : Alberigo Guiseppe, Jossua Jean-Pierre, La réception de Vatican II (Collection Cogitatio fidei 134), Paris, Cerf, 1985, p. 85-103.
Libânio, J.B. “O significado e a contribuição de Puebla à pastoral LA”, In: Medellín 81 (1995), p.80.
Malley, F.Les enjeux de la théologie de la libération, dans Paul Ladrière et René Luneau(dir.), Retour de Certitudes, Événements et orthodoxie depuis Vatican II, Paris, Le Centurion, 1987.
Manzatto, A. A situação eclesial atual. In: 50 anos de Medellín. Revisitando os textos retomando o caminho, São Paulo, Paulinas, 2017, p. 28-41.
Pierucci, A. O desencantamento do mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo, Editora 34, 2003.
Documentos da Igreja
Compêndio das Conferências do Celam - Documento de MD, Edição Vozes.
Conferencia Episcopal Latino Americana, Message aux peuples d’Amérique latine (porocasión de la II ConferenciadelEpiscopado Latino Americano), publicada en 06.09.1968, dans Bruno Chenu et Lauret Bernard, Théologies de la Libération. Documents et Débats, Paris,Cerf/Centurion, 1985.
Jornais
Edição Extra, 25/08/1968. Tìtulo “Quem vencerá Medellín?”
DDP, 10/09/1968. Título “Helder diz que agora são “subeversivos” os bispos do Continente”.
1Sobre o tema da crise das vocações neste período ver : José Comblin, Algumasreflexões sobre a formação sacerdotal hoje, In: Revista Eclesiástica Brasileira162, (1981) p. 331-346.