logo teologia nordwste

Mangueira 2020

Dom Sebastião Armando

Mangueira 2020

 

Eu sou da estação primeira de Nazaré

Rosto de negro, sangue índio, corpo de mulher

Moleque pelintra no buraco quente

Meu nome é Jesus da gente

 

Nasci de peito aberto, de punho cerrado

Meu pai carpinteiro desempregado

Minha mãe é Maria das Dores Brasil

Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira

Me encontro no amor que não encontra fronteira

Procura por mim  nas fileiras contra a opressão

E no olhar da porta-bandeira  pro seu pavilhão

 

Eu tô que tô dependurado

Em cordéis e corcovados

Mas será que todo povo entendeu o meu recado

Porque de novo cravejaram o meu corpo

Os profetas da intolerância

Sem saber que a esperança

Brilha mais na escuridão

 

Favela, pega a visão

Não tem futuro sem partilha

Nem messias de arma na mão

Favela pega a visão

Eu faço fé na minha gente

Que é semente do seu chão

 

Do céu deu pra ouvir

O desabafo sincopado da cidade

Quarei tambor da cruz fiz esplendor

E ressurgi no cordão da liberdade

 

Mangueira

Samba teu samba é uma reza

Pela força que ele tem

Mangueira

Vão te inventar mil pecados

Mas eu estou do seu lado

E do lado do samba também

 

“JESUS DA GENTE”

 

No ano passado, a Estação Primeira de Mangueira levou para a Avenida a multidão de pobres do país: os povos indígenas, o povo negro, as mulheres, a massa das periferias… o asfalto de repente se transformava no tapete para o desfile de tantas categorias espalhadas na classe oprimida sobre a qual pesa o edifício da sociedade. Sob suntuosa indumentária de corte real aparecia o orgulho de ser o que se é e o protesto por ter de suportar ser reduzido/a à condição de “escravidão” que persiste encoberta por palavras mais suaves.  Na verdade, nos passos de seu samba, o povo revelava, não só alegria de viver, mesmo em meio à absurda dureza do  quotidiano, mas, como clarão luminoso e penetrante, expunha as vísceras de nossa sociedade real de cada dia, nossas raízes mais fundas, a dualidade radical e absurda do conflito subjacente às relações estruturais de Senhores/as e Escravos/as. A Escola de Samba aparecia iluminada sobre o pedestal de um alto exercício de Sociologia. Plasticamente se desenhava o que o grande sociólogo Jessé Souza analisa em suas obras: o país continua a ser radicalmente marcado pela perversa dualidade-oposição Senhor/a- Escravo/a. Na verdade, ainda não somos um só povo, pois não há entre nós aqueles profundos laços culturais e éticos  que caracterizam a “nacionalidade”, mesmo que ainda pudessem  persistir oposições e conflitos de classe, como em tantas outras nações. Qual o apreço pelos povos indígenas quando se chega a dizer que “ainda não são humanos como nós”; qual a visão do povo afrodescendente quando se sugere que pessoas negras devam ser “pesadas em arroubas”; e pasmem, qual  a relação de estima pelas  mulheres, quando se diz que “nascem de uma fraquejada”? O autor dessas frases apenas dá voz a inumeráveis pessoas que assim pensam, mais ainda, que “sentem” desse modo, o que é ainda mais profundo. Na verdade, “sentir” é bem mais profundo que simplesmente “pensar”, reside nas entranhas… Não é de admirar que as estatísticas indiquem que as forças policiais matam sobretudo jovens negros; que as terras dos povos indígenas sejam invadidas a cada dia e até se chegue a lamentar que não tenham sido exterminados pela colonização, como se deu em outros países…  Sem dúvida a “apartação” tem sido nossa marca registrada, embora hipocritamente dissimulada.

Lembro-me de breve diálogo entre um jornalista e um passista na Avenida por ocasião do desfile do ano passado. Como se explica a relação entre a alegria e festa e, ao mesmo tempo, a reflexão sobre tema tão grave e candente? A resposta veio imediata: “Enquanto os pés dançam, a cabeça pensa”. A lição é clara: a festa não é necessariamente alienação e fuga da realidade, mas denúncia e crítica de um passado que persiste teimosamente no presente, enquanto se anuncia o sonho de um futuro diferente. Em outras meditações sobre Carnaval chamei a atenção para o fato de que se trata propriamente de “liturgia” (a palavra grega “leitourgía” significa obra do povo e em favor do povo), celebração da vida em seus diversos aspectos, antes, a mais solene liturgia do Brasil, não é à toa que o samba chega a dizer: “Mangueira, samba teu samba é uma reza pela força que ele tem” e “do céu deu pra ouvir o desabafo sincopado da cidade”. Nestes últimos dias, o monge católico-romano Ir. Marcelo Barros, em entrevista, lembrava conversa com seu antigo professor, o historiador Eduardo Hoornaert, que lhe falava de situação ideal quando a Vigília Pascal da Ressurreição chegasse a se parecer com a exaltação de festa de Carnaval. Sim, porque o Carnaval é a mais solene liturgia do Brasil. Não há liturgia de Igreja que se lhe equipare e consiga exprimir com tal intensidade o que vai na alma do povo, como o Carnaval. E a Mangueira o percebeu magistralmente este ano.

O “Jesus da gente” invadiu a Avenida. Se no ano passado o exercício foi de Sociologia, este ano foi de altíssima Teologia, toda inspirada pela mensagem bíblica. A referência fundamental é a  onipresença de Deus que se revela em Jesus de Nazaré, filho de “carpinteiro desempregado e de Maria das Dores Brasil”. Por isso “Nazaré” se torna categoria universal em que se pode contemplar cada vez de novo e em qualquer lugar, a encarnação de Deus a acontecer nas relações concretas entre nós: “rosto de negro, sangue índio, corpo de mulher”, “enxugo suor de quem desce e sobe ladeira, me encontro no amor que não encontra fronteira, procura por mim nas fileiras contra a opressão”. Pena que não haja alusão à tragédia das pessoas homo-afetivas e de condição homossexual, tão discriminadas e violentadas em nosso país. Vale a pena procurar ver nas redes sociais  entrevista do Dr. Drauzio Varela, há anos com trabalho de médico voluntário em presídios, sobre mulheres-trans que chegam ao ponto de revelar se sentirem mais livres na cadeia do que nas casas, ruas e praças de nossas cidades… O carpinteiro de Nazaré se torna nosso contemporâneo e Maria é “Maria das Dores Brasil”… (cf. Mt 25, 31-46).

Sem dúvida, é forte a negação de Deus como ídolo, criado por nós como sublime reflexo de nossas aspirações e frustrações individuais ou de grupo social, buscado enganosa e desesperadamente na sede das religiões, como se aí, na “religião”, fosse o lugar adequado para encontra-Lo.. É o Cristo “dependurado em cordéis e corcovados”, mas na verdade cravejado na Cruz. Vale a pena ler o livro bíblico da Sabedoria, capítulos 13-15, para refletir sobre como nasce em nós e na sociedade a idolatria enquanto projeção psicossocial de nossas aspirações, interesses e frustrações; assim como alguns salmos, como por exemplo Sl 135 e 146, como também Is 44, 9-20. O horizonte descortinado e aberto pela Cruz é a ressurreição, a grande inversão, é “que a esperança brilha mais na escuridão”.  Estar “de arma na mão” não é o caminho de revelação do Messias, antes, é  traição de tudo o que Ele significa.

Finalmente, “vão-te inventar mil pecados”, muita gente a se escandalizar ao ver Jesus, o sagrado, a desfilar na passarela do samba. “Que horrível profanação!” dirão alguns piedosos/as como fariseus e escribas dos tempos de Jesus se escandalizavam com Ele que começara seu ministério numa festa de casamento, tendo Ele mesmo contribuído com o vinho. Na verdade, trata-se justamente do contrário, é Jesus anunciado como “Evangelho”, Boa-Nova, alegre notícia  de amor e esperança: ”Não tem futuro sem partilha”, como se vê nos evangelhos (cf. Mc 6, 30-44; 8, 1-11; 10, 13-31). A fé tem de estar “na minha gente que é semente do seu chão”, como se vê na primeira carta de São João, por exemplo 1Jo 3, 13-20; 4, 11-16). Não nos esqueçamos: “Quarei tambor da cruz fiz esplendor e ressurgi no cordão da liberdade”. Como estamos perto da mensagem de Jesus: “Quem quiser agarrar-se a sua vida, a perderá; mas quem entregar a sua vida por causa de Mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8, 35)! E o que é o Evangelho, senão alegre Boa Notícia para os pobres da Terra? (cf. Lc  4, 14-30). 

__

__

© 2024 Your Company. Designed By JoomShaper