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O que me inspira hoje na obra de José Comblin

 

Eduardo Hoornaert

 

O que hoje me inspira na obra de José Comblin é a recorrência de três temas que se podem detectar em toda a sua produção intelectual e que resumo aqui em três frases: 1. O que passou, passou; 2. O passado vive em nós; 3. O Espírito Santo. Termino o texto com um quarto ponto: Como ler os livros de José Comblin?

 

1. O que passou, passou.

 

Ao longo de seus livros, José insiste, mesmo sem usar as palavras que estou usando aqui, que o passado glorioso da igreja católica passou e que isso é bom. Passou o tempo das gloriosas catedrais, das igrejas paroquiais no centro das aldeias, das mitras episcopais e mesmo dos microfones nas mãos de sacerdotes. Isso é bom, pois significa – direta ou indiretamente – a superação de uma época que não existe mais, a época em que a igreja católica era a instituição mais poderosa das sociedades ocidentais, com seu papado no topo, suas dioceses espalhadas pelo mundo, suas paróquias a marcar as horas do dia, os dias da semana, as semanas do ano e os anos da vida, ou seja, a acompanhar a vida das pessoas do nascimento à morte, por meio de ritos, pregações, regras de conduta e instrumentos de coerção.

Quando José Comblin fala de um passado que passou, ele se refere à Idade Média, o tempo do triunfo da instituição católica. Num de seus textos, ele fala dos erros gigantescos praticados pela hierárquica eclesiástica na época, principalmente do erro fatal em construir uma cristandade sem praticamente nenhuma referência ao Jesus de Nazaré, ou seja, em substituir a tradição de Jesus pela construção de um imaginário impressionante de poder e glória, sem apelar, a rigor, para a inteligência das pessoas.

Desse modo se formou um ‘povo de Deus’ por meio de uma hegemonia política, cultural, religiosa e imaginária. Não por meio do apostolado, no sentido em que Jesus entendeu o termo. O desvio gigantesco nos deixa hoje perplexos, pois nos damos conta que resgatar o sentido original do cristianismo é coisa muito difícil hoje. Muito difícil mudar de postura psicológica, convencer-se que é preciso mudar de mentalidade para quem foi educado dentro da ideia de uma instituição eclesiástica eterna e imutável e com imagens que acompanham as pessoas do nascimento até a morte, criando a ilusão de uma sociedade ‘cristã’ transmitida por ‘osmose’, pela simples transmissão da cultura, na sucessão das gerações.

Enraizada numa longa história de ritos, regulamentos, dogmas, comportamentos morais e tradições transmitidas de geração em geração, a igreja católica não tem nada a oferecer a quem está caminho de abandonar tais ritos, regulamentos, moral e costumes. Enquanto os sacerdotes ainda podem camuflar essa penosa questão entendendo por ‘evangelizar’ a execução de ritos sacramentais, a celebração de missas, a reunião do povo em torno da igreja paroquial, os leigos demonstram à clara luz do dia essa incapacidade de evangelizar. Eles mesmos não sabem mais o que é o evangelho. Confundem entre evangelho e ritualismo, moralismo, preservação da família e das tradições, sabedoria de séculos.

 

E aí apareceu, a partir do século XVI, a modernidade. Ela baralhou tudo. As lideranças eclesiásticas custaram a compreender o que estava acontecendo e reagiram negativamente. Defenderam-se como podiam, excomungavam, proibiam, segregavam, marginalizavam, discriminavam, condenavam. Sem sucesso: a mentalidade moderna avançou inexoravelmente.

Hoje, para não enfrentar problemas, muitas pessoas simplesmente ‘desligam’ sem fazer alarde. Não dizem nada, mas não vão mais à missa dominical, não se confessam mais, não escutam mais os sacerdotes, se ‘secularizam’. Dou aqui apenas dois sinais dessa revolução silenciosa.

O primeiro, quase nunca comentado, é do ano 1962. No momento em que os serviços de saúde pública dos Estados Unidos liberam a pílula anticoncepcional, as mulheres do mundo ocidental aderem em massa, pois preferem escutar o ginecologista que escutar o sacerdote. Em poucos anos, a fisionomia das famílias, pelo menos no mundo ocidental, muda drasticamente, com efeitos ainda hoje em curso.

Um segundo sinal pode ser detectado nas estatísticas sobre ‘religião’. Os chamados ‘sem religião’ (na realidade ‘não afiliados a alguma denominação religiosa’), já formam um quarto da população dos Estados Unidos (veja os números do Pew Center, na Internet). A situação na Europa não deve ser muito diferente. Na América Latina, os ‘sem filiação religiosa’ já passam dos 10 %, sendo o segmento que mais cresce.

Mas nossos tempos não são unicamente marcados por ‘revoluções silenciosas’. Existem muitas resistências à mudança.

 

2. O passado vive em nós.

 

Ainda estão em pé as catedrais e as igrejas paroquiais, os bispos ainda andam com mitra na cabeça e as pompas litúrgicas não terminaram. Poucos percebem que esses são sinais de um passado que não volta mais. Diz-se que ‘o passado vive em nós’, ‘ainda vivemos como nossos pais’ (veja a música de Raul Seixas), ´a história sempre se repete‘.

Não se vira a página de séculos de triunfalismo católico por sem esforços continuados. Um passado tão glorioso como o do catolicismo, se nao for redimido pelo espírito genuino do cristianismo, ameaça voltar com redobrado vigor, como alertam não poucos observadores. Curvado sob o peso de tradições seculares, a igreja católica tem dificuldade em captar a novidade do evangelho. Seu passado pesa muito.

 

Comblin, em suas falas e seus escritos, nunca omite a dimensão histórica. Nunca ‘pula’ em cima da história para evocar diretamente a experiência dos primeiros cristãos (na apresentação das Comunidades Eclesiais de Base [CEBs], por exemplo), nunca vai direto à Bíblia para explicar situações atuais. Sempre considera a ‘tradição’, ou seja, a mediação da história vivida. Assim ele não fala em CEBs sem falar da paróquia, não fala em paróquia sem mencionar sua histórica função protetora, não fala em Teologia da Libertação sem falar no clima de revolução que reinou nas décadas de 1960-1980, e que não reina mais.

Em tudo isso, Comblin não se mostra empenhado em provar que ‘entende do assunto’. Ele quer dialogar, ajudar a compreender. Escreve em tom ‘ensaístico’, não ‘dogmático’, não se refugia numa ‘especialidade’, mas transita livre e competentemente por diversos campos de conhecimento, principalmente teologia e história. Não tem medo de enfrentar grandes blocos históricos, não se perde em minúcias, não apresenta erudição, não entra inutilmente em discussões e controvérsias, não discute pormenores, só trata - como ele mesmo escreve - de dados primários e fundamentais. Não se exibe, vai direto ao assunto, pressupõe que seu leitor ou ouvinte seja bastante inteligente para captar suas ironias e provocações. Pois essas ironias nada mais significam que provocações à reflexão, instigações ao pensamento.

Será José Comblin um escritor de ‘vanguarda’, que escreve para os que se mostram capazes de acompanhar a velocidade com que as coisas estão mudando, os pouquíssimos que estão em condições de acompanhar o pensamento de um Bonhoeffer (‘viver sem Deus, em Deus’), um Robinson (‘Honest to God’), de um Bultmann (a ‘desmitologização’ da tradição cristã), de um Lenaers (‘Jesus, uma pessoa como nós?’), de um Spong ou de um José Maria Vigil (o pluralismo religioso)? Não José Comblin não é um escritor de vanguarda. Com a sensibilidade de um sacerdote católico, ele entende que é necessário ajudar as pessoas a descobrir lenta e progressivamente a genuína tradição de Jesus e isso faz dele um educador.

Eis o sentido, afinal, de seus numerosos livros e artigos, de suas falas e ações: ajudar as pessoas. Ele não tema em provocar seus ouvintes ou leitores, mas sempre se trata de provocações de um educador paciente e sensível. O que não poucos, na hora, sentiram como expressão de negatividade e mesmo pessimismo, na realidade é pedagógico. A prova é que, nos últimos trinta anos de sua vida, ele acompanhou constantemente suas ‘escolas missionárias’ e outras iniciativas no interior do Nordeste do Brasil, sempre - como ele mesmo disse certa vez - com paciência infinita.

 

3. O Espírito Santo.

 

Tudo isso converge para o tema do Espírito Santo, que não é o espírito da tradicional sabedoria humana, que recomenda obediência, seguimento das leis, respeito pelas autoridades, bom comportamento, cuidado com a família. É a subversão dessa sabedoria. O evangelho é uma ‘boa nova’ subversiva, pois apela para o seguimento de um Jesus subversivo. Um Jesus que a maioria dos fieis desconhece, já que essa maioria só teve acesso a um Jesus ‘amansado’, integrado na cultura, que não constitui mais nenhum desafio, que não tem mais nada a dizer, pois fica enquadrado em dogmas, doutrinas e ritos, apresentado em imagens de um Jesus Cristo ‘humilde e doce de coração’, de um ‘Coração de Jesus’, integrado na boa família, educador de boas maneiras e de sabedorias ancestrais.

A atuação do Espírito Santo é a grande surpresa da tradição cristã. Eis a razão pela qual José Comblin sempre recorre à história para explicar o que seja cristianismo. A história mostra que a tradição de Jesus de Nazaré é a tradição do Espírito Santo. Na tradição que se formou em torno do nome de Jesus, na realidade o Espírito importa. As clássicas discussões cristológicas, dos séculos IV a VI, de certo modo desviaram a atenção do que realmente importa na mensagem cristã: a atuação do Espírito no decorrer da história. É por isso, repito, que os livros de José Comblin estão imbuídos de história, pois têm como finalidade demonstrar que o Espírito atua no mundo, dentro e fora do cristianismo.

O que escrevo aqui encontra confirmação em cinco livros de José Comblin que, de um ou outro modo, tratam da atuação do Espírito Santo na história. São os seguintes livros: ‘O Tempo da Ação’ (Vozes, 1982), ‘A Força da Palavra’ (Vozes, 1986), ‘Vocação para a Liberdade’ (Paulus, 1998 [4ª ed. 2005]), ‘; ‘A Profecia na Igreja’ (Paulus, 2008), ‘O Espirito Santo e a Tradição de Jesus’ (Nhanduti, São Paulo, 2012). Esse último livro é póstumo e vai composto de cinco versões acerca do tema, em que José trabalhou até poucos dias antes da morte e das quais uma se perdeu.

Os títulos desses livros são diversos: Ação, Palavra, Liberdade, Profecia, Espírito Santo. Na realidade é um só temário: o Espírito de Deus agindo na história da humanidade. Os diversos enfoques abrem vastos panoramas históricos, ao focar o Espírito de Jesus de Nazaré, o Espírito de Paulo de Tarso, de Francisco de Assis, de Vicente de Paulo, o Espírito a animar santos, ao longo da história. E não só na história do cristianismo. Como José insinua no título de seu último livro, o Espirito excede o cristianismo, age igualmente fora dos limites da instituição cristã e mesmo da religião, atua na ‘tradição de Jesus’ que pode ser a ‘tradição de Mahatma Gandhi, de Martin Luther King, de Mandela, de Helder Camara e de Lula, de Charles de Foucauld e de Dalai Lama.

Eis a vasta visão que o próprio Jesus de Nazaré abre em sua fala com o fariseu Nicodemos, no terceiro capítulo do Evangelho de João: O vento sopra onde quer, você entende sua voz sem saber de onde vem nem para onde vai. Assim vai todo homem nascido do Espírito (Jo 3, 8).

 

4. Como ler os livros de José Comblin?

 

Subjacente à prosa de José Comblin arde uma brasa que, assoprada, facilmente pega fogo. Mas precisa assoprar, ou seja, entender o que ele quer dizer. O que nem sempre é fácil. Como acontece com outros escritores, Comblin apela para ‘bons leitores’, ‘boas leitoras’, gente inteligente, capaz de ‘assoprar’ o Espírito que anima suas páginas.

É a chama de Jesus de Nazaré, o galileu ansioso por ver seu evangelho perpassar o mundo, que provoca inquietude em seus discípulos quando fala na disposição de ‘odiar’ a si mesmo (Lc 14, 26); de oferecer a face esquerda a quem bate na face direita; de carregar por quatro léguas as bagagens que um militar romano manda carregar por duas léguas; de perdoar setenta vezes sete vezes qualquer ofensa, qualquer injustiça; de romper com a antiga sabedoria do talião (‘olho por olho, dente por dente’); de conceder o lugar principal ao mais fraco; de se desligar da família (‘quem é minha mãe? quem são meus irmãos’?); de promulgar a liberdade como suprema expressão do amor; de ter a disposição de se tornar uma nova criatura (2Cor 5, 16-17) e de morrer à sabedoria deste mundo, de recomeçar sempre, a cada momento. Por amor, por puro amor.

Com José Comblin, não nos damos por satisfeitos com um Jesus ‘por osmose’, por tradição, por catecismo, nem mesmo por leitura na hora da liturgia, da missa ou da oração. Com ele, estamos instigados a ler e reler a Bíblia ao longo da vida toda, não nos satisfaz o que pretensamente já sabemos por transmissão catequética, por sermão, por citações esporádicas, por algum estudo particular. Com ele, aprendemos a ler os livros bíblicos e tentar compreender. Aprendemos a sermos ‘bons leitores’, ‘boas leitoras’ de Marcos e Mateus, Lucas e João. Seguimos o conselho que São Francisco de Assis já deu no século XIII: ler os evangelhos sine glosa, sine glosa (sem comentário, sem comentário). Ler os evangelhos inteiros, não apenas alguns trechos escolhidos. Pois se trata de narrativas coesas, de obras com intencionalidade precisa, que merecem ser captadas com inteligência e de modo meditativo.

Nisso, os livros de José Comblin podem constituir uma boa introdução.

 

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