João Pessoa, 22-24 de outubro de 2013
de Francisco de Aquino Junior
INTRODUÇÃO
♦ O Concílio Vaticano II marca a entrada “oficial” da Igreja Católica no movimento ecumênico. Ele quis ser um concílio ecumênico e esse é um dos seus principais objetivos (Cf. UR 1; SC 1)
♦ A unidade dos cristãos se fundamenta e se enraíza, em última instância, no próprio mistério trinitário de Deus em sua ação salvífica na história – ação do Pai, pelo Filho, no Espírito. Por isso, afirma o Concílio que a Trindade é o “modelo” e o “princípio” da unidade da Igreja (UR 2/6)
♦ É o Espírito quem reúne e congrega a Igreja, quem realiza a comunhão dos fieis na fé, na esperança e na caridade; é ele quem suscita e distribui os carismas e ministérios (UR 2/2-4)
♦ Daí porque a problemática do ecumenismo seja uma problemática pneumatológica, ou seja, que diz respeito e tem a ver fundamentalmente com a ação do Espírito Santo
♦ Pneumatologia e cristologia são inseparáveis. É preciso deixar bem claro e insistir no fato de que o ES é o Espírito de Jesus de Nazaré, de modo que a vida/práxis de Jesus é o critério permanente de discernimento do Espírito (1Jo 4, 1-3; 1Cor 12,3)
- ele não faz outra coisa senão continuar a obra de Jesus na Igreja e o no mundo (Jo 14,26; 16,13-14.26)
- no centro da vida e da missão de Jesus está a realização histórica do reinado de Deus que tem a ver fundamentalmente com a justiça aos pobres e oprimidos. E esta é a ação do Espírito Santo em Jesus (Lc 4, 16ss; At 10, 38)
♦ Se a unidade dos cristãos, em última instância, é ação do ES; se a vida/práxis de Jesus é o critério de discernimento da ação do ES; e se esta tem a ver fundamentalmente com a realização do reinado do Deus; logo, o ecumenismo, enquanto ação do ES, deve ser vivido e pensado a partir e em vista do reinado de Deus neste mundo
♦ E esta é a perspectiva na qual o ecumenismo tem sido vivido e pensado na igreja e na teologia da libertação na AL
ECUMENISMO DA LIBERTAÇÃO
♦ Abordar o ecumenismo a partir e em vista da realização histórica do reinado de Deus implica abordá-lo como uma práxis e, mais precisamente, como uma práxis de libertação
♦ Aliás, essa é a intuição mais fundamental e mais original da TdL. Segundo Gustavo Gutiérrez, há na TdL “duas intuições centrais que foram as primeiras cronologicamente e continuam constituindo a sua coluna vertebral: método teológico e perspectiva do pobre”1. Para sermos mais precisos, deveríamos falar, aqui, de dois aspectos ou características fundamentais do método teológico: o primado da práxis e a perspectiva do pobre/oprimido
♦ E esse é o método que seguiremos para abordar a problemática do ecumenismo ou da dimensão ecumênica da pneumatologia e da missiologia, conforme o tema de debate dessa noite
1. Primado da práxis
♦ A problemática do ecumenismo é, fundamentalmente, uma problemática práxica, por mais que tenha uma dimensão teórica que deva ser considerada e desenvolvida o máximo possível
♦ Partimos, aqui, com Ellacuría, da “suspeita ideológica” de que “a raiz da divisão na confissão da fé e, consequentemente, o caminho da unidade não está fundamentalmente nas diversas formulações e interpretações da fé, mas em determinadas práxis pessoais e estruturais que posteriormente são formuladas em termos de fé”2
♦ “Essa mesma ‘suspeita ideológica’ se estende ao reconhecimento de uma profunda divisão real entre os que aparentemente professam a mesma fé, pertencem à mesma confissão e a formulam do mesmo modo. Cabe se perguntar se não há mais unidade cristã entre membros de distintas confissões, cuja práxis é comum, que entre os membros da mesma confissão se suas práxis são opostas”3
♦ Essa “suspeita ideológica” que brota de uma vivência mais atenta e reflexa tanto da experiência de ruptura entre as igrejas, quanto de experiências de restauração da unidade entre elas, quando analisada e refletida mais profundamente, acaba sendo confirmada por razões de ordem estritamente teóricas e teológicas
- Do ponto de vista estritamente teórico, ela “se funda no fato de que, em boa parte, as formulações e interpretações dependem da práxis na que se está imerso e do interesse a que serve”, bem como “no fato de que a práxis se converte na verificação real do sentido que se está dando realmente à formulações teóricas”4
- Do ponto de vista estritamente teológico, ela se funda no fato de que a unidade e a ruptura entre os cristãos, antes de serem unidade e ruptura em torno de teorias, são unidade e ruptura na realização histórica do reinado de Deus – e isto é algo fundamentalmente práxico, por mais que tenha uma dimensão teórica constitutiva que precisa ser desenvolvida
♦ Daí porque o ecumenismo não pode ser vivido nem pensado, exclusiva nem mesmo fundamentalmente, como diálogo, como se a unidade fosse apenas uma questão de discurso, linguagem (logos) que se desse simplesmente por meio dele (dia-logo). Na verdade, o logos, enquanto intelecção, por mais importante que seja, não é senão um momento da ação humana e só nesse contexto mais amplo da práxis pode ser interpretado e compreendido (caráter práxico da linguagem)5
♦ Mais que um problema de logos, o ecumenismo é um problema práxico; a restauração da unidade dos cristãos não se dá simplesmente nem fundamentalmente por meio do logos (dia-logo), mas, mais radicalmente, por meio da práxis (dia-práxis)6
2. Perspectiva do pobre/oprimido
♦ Mas não se trata de uma práxis qualquer. A práxis que reúne ou divide os cristãos nas diferentes confissões ou na mesma confissão (e mesmo com as outras religiões) é práxis do reinado de Deus que tem como característica e como critério fundamentais a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo (M t 25, 31-46)
♦ O que reúne ou divide os cristãos é a justiça do Reino e, por isso, o ecumenismo tem nos pobres e oprimidos deste mundo seu critério e sua medida permanentes. A autêntica unidade cristã é a que se constitui como sinal e instrumento do reinado de Deus neste mundo. Essa é a unidade que o Espírito de Jesus continua operando no mundo entre os cristãos, entre as religiões, entre os mais diferentes grupos – e que constitui o que Comblin, tão acertada e profeticamente, chama a “Tradição de Jesus”
♦ Daí porque, embora se deva distinguir, não se pode separar o ecumenismo em sentido estrito (unidade dos cristãos) daquilo que Casaldáliga chama de “macro-ecumenismo”: a unidade dos cristãos, das religiões, dos povos da terra em torno da vida, particularmente da vida dos pobres e oprimidos deste mundo
♦ Por isso, o que Casaldáliga diz a respeito do “macro-ecumenismo” vale, como muito mais razão, para o ecumenismo em sentido estrito:
* “Macroecumenismo é dialogar inter-religiosamente, porém sempre num compromisso social pelos excluídos. Eu não entenderia de jeito nenhum um diálogo inter-religioso se não o entendesse como compromisso sócio-político e econômico a serviço das maiorias excluídas que é a maior parte da família desse Deus da Vida que a gente quer proclamar. Fazer da fé no Deus da Vida um culto militante à vida, por amor à obra e ao sonho desse Deus. E dialogar com todas as religiões, não apenas com as chamadas ‘grandes’, pois neste caso estaríamos nos distanciando da tradição evangélica, pois o evangelho distingue-se por dialogar com o que é pequeno. Dialogar também com as pequenas religiões, com as religiões indígenas, com a religião do povo Tapirapé”7.
* Ou ainda: “parece-me elementar e fundamental destacar, sempre, no diálogo inter-religioso o conteúdo e o objetivo deste diálogo. Não se trata de colocar as Religiões numa reunião para que discutam pacificamente sobre religião, ao redor de si mesmas, narcisicamente. O verdadeiro diálogo inter-religioso deve ter como conteúdo e como objetivo a causa de Deus que é a própria humanidade e o universo. Na humanidade a causa prioritária é a grande massa emprobrecida e excluída; e no universo, a terra, a água e ar profanados [...] Com Hans Küng [Marcelo Barros] repete oportunamente, hoje mais que nunca, que não haverá paz entre as nações se não houver paz entre as religiões, e que não haverá paz entre as religiões se não houver diálogo entre elas. É necessário agregar que este diálogo será inútil, hipócrita e até blasfemo, se não está voltado para a Vida e para os pobres, sobre os direitos humanos, que são divinos também”8
3. “Projeto ecumênico popular”
♦ Estas duas intuições fundamentais (primado da práxis e perspectiva do pobre/oprimido) estão na base daquilo que Júlio de Santana denominou “projeto ecumênico popular”: unidade para testemunhar o Reino de Deus9 e constituem o mais próprio e original (não exclusivo, claro) da prática e da teoria ecumênicas na AL
* “Vai tomando forma gradualmente a partir da prática de pessoas, de homens e mulheres em cada lugar do mundo em que os cristãos de diferentes igrejas se unem entre si e com homens e mulheres de outras convicções religiosas e de outras ideologias para construir uma realidade social nova, que de alguma maneira seja com um sinal do Reino que esperam. Portanto, não é através de documentos que é preciso tentar compreender esse projeto, mas a partir da ação, da militância e da celebração cotidiana da fé dos cristãos em situações de luta” (p. 116)
* “O projeto [...] toma corpo a partir do momento em que, em situações bem concretas, homens e mulheres de todas as convicções se unem para se empenharem em tornar realidade tudo o que Jesus nos trouxe” (p. 117)
* “É essa proximidade da presença de Deus que experimentam alguns povos que lutam pela libertação, pela justiça social, pela possibilidade de viver segundo sua própria identidade, pelo fim do sexismo, da dominação, etc que os motiva a se unirem. A unidade para o Reino” (118)
* “A base desse movimento ecumênico [...] é a luta pela justiça. É ecumenismo de compromisso, não se resume em simples palavras e belas declarações. É ecumenismo de encontro na caminhada da construção de uma nova sociedade” (p. 255)
♦ CONCLUINDO, a unidade em torno de e a serviço do reinado de Deus que tem a ver fundamentalmente com a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo é, na formulação de Comblin, o ecumenismo do “Espírito Santo e [da] Tradição de Jesus”. Ou, se quiserem, é nisto, precisamente, que consiste a dimensão ecumênica da ação do ES e da missão da igreja, como reza o tema desta noite: unidade dos cristãos e das igrejas cristãs na vivência e no anúncio do reinado de Deus. Sem esquecer que isso é “para todo gênero humano germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação” (LG 9/2)...
Francisco de Aquino Juníor (Teólogo, de Fortaleza - CE)