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Para uma nova memória eclesial (Considerações acerca da sinodalidade)

 

Eduardo Hoornaert.

 

No dia 20 de junho 2023 foi publicado o ‘Instrumentum Laboris’ em preparação da penúltima fase da ‘Assembleia Sinodal’ da igreja católica, que corre entre 2021 e 2024 sob o lema ‘Comunhão, Participação, Missão’. Os temas propostos para discussão estão ficando mais concretos: celibato opcional, diaconato feminino, acolhida a divorciados e LGTBQ (homossexuais etc.). Temas laterais que eventualmente entram em pauta: a evolução do primado do bispo de Roma; justiça a vítimas sobreviventes de abusos sexuais por pessoal da igreja, etc. Determinados temas muito atuais parecem nem entrar em consideração, como a solidão e o isolamento do clero (frequentes casos de suicídio), a questão do clericalismo propriamente dito e o crescimento assustador da pobreza no mundo.

Sem dúvida, essas ‘assembleias sinodais’ são um passo importante para frente e só se pode congratular o Papa Francisco de ter tido a lucidez e a coragem de colocar os temas supramencionados em pauta.

 

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Ir ao âmago da questão.

 

O atual encaminhamento do processo sinodal tem decerto seus méritos, mas vale se perguntar se, por esse caminho, se chego ao âmago da questão, que pode ser formulada do seguinte modo: como transformar uma instituição hierárquica em instituição sinodal?

Atualmente, mal reparamos as contradições que afetam o atual modelo eclesiástico. Só um exemplo. Enquanto um dos requisitos da sinodalidade ‘bem entendida’ é a eleição do bispo pela comunidade, o papa continua nomeando bispos. E ninguém fala. A máquina administrativa do Vaticano roda a todo vapor e continua controlando qualquer ‘excesso’, como se verificou recentemente em sua intervenção no ‘caminho sinodal’ (Der Synodale Weg) da igreja católica alemã.

A mesma falta de clareza se manifesta na história recente das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Apesar de usar uma linguagem nova (a expressão ‘encontros intereclesiais’, por exemplo), que parece apontar para uma nova eclesiologia, a distinção entre CEB e paróquia não fica clara. A linguagem permanece nebulosa. Com ironia, o papa João Paulo II, ao subir no avião depois de sua viagem ao Brasil, nos anos 1980, ao ser indagado se algo faltou na visita, lamentou não ter encontrado uma CEB.

O que se verifica é um abandono silencioso de práticas religiosas de cunho cristão, tanto no catolicismo como em diversas modalidades de protestantismo. Aí parece uma modernidade despojada de inspiração evangélica, o que é um fenômeno inquietante. Pois pode levar à aceitação (também silenciosa?) de ditames capitalistas.

Decididamente, temos de cavar mais fundo.

 

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Encaminhamentos na história.

 

A questão não é nova. O frade agostiniano Martinho Lutero a percebeu com clareza, no século XVI. Ele intentou relativizar o instituto eclesiástico ‘papal’ e ir direto ao evangelho. A reação daquele instituto foi basicamente emocional. Apesar de ponderações de tipo racional, por parte de católicos esclarecidos como o holandês Erasmo, apesar dos apelos para diálogo e troca de opiniões, a igreja católica fechou os ouvidos e simplesmente reafirmou sua identidade (Concílio de Trento). Lutero foi transformado num ‘herege’ e o princípio hierárquico foi reafirmado sem questionamentos. As sucessivas tentativas de mexer com o instituto hierárquico foram todas rejeitadas em nome de uma pretensa ortodoxia inquestionável. E, finalmente, tudo resultou na atual multiplicidade de igrejas ‘evangélicas’, que se espalham pelo mundo. Falta, pois, clareza nos posicionamentos. A igreja católica ainda não desceu do ‘trono’.

 

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Para uma nova memória eclesial.

 

Voltemos à questão central: como transformar uma instituição hierárquica numa instituição sinodal? Alguns dizem que isso é impossível, o que - em minha modesta opinião - revela uma falha no conhecimento da história. Pois a famosa ‘frase’ do físico Lavoisier (1743-1794) vale igualmente para processos históricos: ‘nada se cria, nada se perde, tudo se transforma’. A história humana é feita de uma concatenação de eventos, pensamentos, culturas. Nela também, tudo se transforma. Tudo evolui.

A igreja católica é capaz de se ‘transformar’? A resposta só pode ser dada por quem sabe dizer ‘donde ela vem’. Quem estuda a história da igreja sabe que a formatação do catolicismo é fruto de uma evolução histórica que remonta aos tempos do Imperador romano Constantino, portanto, ao século IV. Isso quer dizer que temos de voltar nossa atenção ao que aconteceu tantos séculos atrás e que ainda hoje vigora. Aí, vamos ver que, com a ‘reviravolta constantiniana’, um pesado reposteiro cai sobre a memória cristã anterior, dificultando a reta compreensão do que aconteceu ao longo dos primeiros três séculos de cristianismo. Não uma simples cortina, mas um pesado reposteiro, como aquele que separa grandes ambientes em palácios ou a cena da plateia em teatros.

A nova memória eclesial postula, por conseguinte, um conhecimento, mesmo imperfeito e aproximativo, dos primórdios do cristianismo, dos chamados ‘tempos apostólicos’, e da formatação do ‘movimento de Jesus’ antes da era constantiniana. Vale a pena se deter, por uns instantes, no contraste entre ambas as formatações históricas.

 

 

 

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As novidades do século IV.

 

No tempo de Constantino aparecem, dentro do movimento cristão, novas palavras, que criam novos comportamentos. Aparecem termos até então inusitados na tradição de Jesus, como ‘religio’, ‘sacerdos’ (qui sacrum facit), ‘catholicus’ (espalhado pelo mundo inteiro), ‘dioesesis’ (subdivisão territorial do império), ‘hierarquia’ (ordem sagrada). Esses termos vão sendo assimilados ao longo do tempo e formam um vocabulário hoje universalmente aceito na instituição católica.

Aqui não é o lugar de aprofundar o tema. Só chamo a atenção pelo fato que o termo ‘clerus’, que não vem do latim clássico e parece ter sido introduzido na Idade Média, provém do grego ‘klèros’ e significa originalmente: ‘parte da herança (de terras)’. Uns herdam, outros não. Uns mandam, outros obedecem. Com isso se quebra a ideia da fraternidade, em vigor nos três primeiros séculos, e se introduz a ‘heternomia’: uns ditam as leis, outros (a maioria) têm de segui-las. A razão capitula diante do sagrado, misterioso e intocável. O poder da religião.

Uma segunda observação de passagem. O bispo Eusébio de Cesareia, que participa do Concílio de Niceia (325), tenta incorporar os três primeiros séculos na reformulação constantiniana por meio da ideia de ‘successio apostolica’. Ele ‘cria’ listas de bispos sucessivos para os principais centros cristãos, como Roma, Antioquia, Alexandria etc. sem base histórica, pelo menos até o século III. Em referência aos dois primeiros séculos, suas listas carecem flagrantemente de registro histórico confiável. Eusébio escreve que, em Roma, por exemplo, os sucessores de Pedro se chamam Lino, Cleto, etc., figuras que carecem de averiguação historiográfica. Além disso, ele apresenta Pedro como sucessor de Jesus, contrariando a informação do historiador judeu Flávio Josefo, que, já no século I dC, menciona Tiago como líder do movimento nas primeiras décadas.

 

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Uma nova imagem de Jesus.

 

No século IV, Jesus de Nazaré, o Jesus das parábolas, cai no esquecimento e emerge Jesus Cristo Redentor (Salvador). Eis a nova confissão cristológica: Jesus morreu por meus pecados, derramou seu sangue para minha salvação. Fui lavado no sangue do Cordeiro no batismo. Pelo sacrifício de Jesus, estou salvo. A mancha do pecado se limpou. Deus cravou seu filho na cruz por nossa salvação. Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, tenha piedade de nós.

A ideia do Reino de Deus é substituída pela ideia do céu. Os evangelhos se reduzem a textos sobre a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. O crucifixo torna-se o símbolo maior do cristianismo.

O Credo de Niceia apresenta Jesus numa linguagem meta-histórica. A única referência histórica aparece nas palavras: Sub Pontio Pilato passus et sepultus est (sob Pôncio Pilatos sofreu e foi sepultado). Nesse Credo, duas imagens contraditórias de Deus aparecem: Patrem omnipotentem, Pai onipotente. De um lado, Criador e Soberano ‘onipotente’, ofendido pelo pecado, que exige de seus súditos expiação, sacrifício e reconciliação (o povo conserva essa imagem quando diz: castigo de Deus; vontade de Deus; desígnio de Deus). De outro lado, Pai de extrema bondade. Essa contradição deixa as pessoas desorientadas, perdidas num labirinto de leituras bíblicas, que certos pregadores explicam a seu modo, sem nenhum embasamento exegético sério.

Enfim, a formatação católica (constantiniana) tem traços indeléveis de uma deformação. Sua força histórica é tamanha que, com o tempo, a formatação anterior (o movimento de Jesus) cai no esquecimento.

 

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Trabalho de formiga.

 

Estamos, pois, no início de um processo de conscientização e temos de agradecer ao Papa Francisco o fato de ter dado um ‘chute inicial’. Trabalho de paciência, determinação e perseverança. Trabalho de formiga, pois mais de 90 % dos católicos creem na origem diretamente divina da sua igreja ‘sicut stat’ (como existe hoje): ‘mole sua stat’ (fica em pé pelo enorme peso de sua história). ‘Stat crux, dum volvitur mundus’: o mundo muda, a igreja fica.

Estamos apenas no início de um processo que promete ser longo. Mas, repito, é mérito duradouro do Papa Francisco ter levantado a questão da igreja hierárquica versus igreja sinodal.

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