O post-Concilio no Nordeste: a contribuição da Teologia da Enxada
na perspectiva da missão e da Libertação.
O que representou a TE
Segundo definição do próprio padre José Comblin: “Foi uma nova maneira de estudar e ensinar a teologia a partir de diálogos com as famílias camponesas. A doutrina é exclusivamente bíblica, evitando todas as abstrações e todos os conceitos filosóficos, já que estes não pertencem à cultura popular”. Incluía a elaboração de pregações para o mundo rural – com imagens, comparações, estórias do seu cotidiano que os estudantes procuravam escutar e observar nas suas pesquisas.
“Muitas vezes, as riquezas da mensagem Cristã permanecem ignoradas pelo povo, porque os sacerdotes não sabem transmitir ou traduzir as coisas que aprenderam com palavras técnicas, numa lógica intelectualizada e num contexto cultural alheio ao contexto em que vivem os homens do meio que importa atingir” (Pe. Comblin, em Dez. 1971)
O nome Teologia da ENXADA não foi dado por Comblin. Mas o fato dos participantes todos viverem em comunidades rurais e participarem do trabalho na agricultura - na enxada - acabou sendo assumido como nome.
Penso que o legado é o método de estudar a teologia: a partir da realidade das pessoas a quem se quer anunciar a mensagem cristã do Evangelho. Hoje é preciso descobrir qual a teologia para o mundo contemporâneo, altamente urbanizado, dominado pelas tecnologias modernas, conectado pela informática. Aliás, há anos que José Comblin vem insistindo na necessidade de uma nova Teologia cristã.
A preocupação com a linguagem de JC:
Entre as razões da necessidade de uma nova teologia para os tempos atuais, está uma linguagem compreensível e coloquial atual. É preciso voltar a ouvir: o que falam e como falam hoje os jovens, os trabalhadores, os pobres.
José Comblin gostava de contar”, quantos não já ouviram isso:
“Quando terminei o meu doutorado e entrei numa paróquia, bastou 15 dias para eu verificar que tudo que eu aprendi era inútil. Tinha que aprender tudo de novo, recomeçar a partir do povo que estava lá. E eu estava numa paróquia de classe média, de pessoas fervorosas dentro de uma religião tradicional. Então a comunicação era impossível se eles não entendiam. No início eu pensei, para aprender a pregar eu vou visitar outras paróquias nos domingos para ver como fazem. Mas depois de três semanas, desisti, pois diante do que via e ouvia, pensei que ia perder a fé. Busquei então simplificar a minha linguagem, ou seja, chegar ao essencial e voltar ao Evangelho”.
Comentando sobre Dom Leônidas Proaño, bispo de Riobamba no Equador entre 1962 e 1985, com quem colaborou por quase 20 anos na formação de missionários indígenas, Comblin afirmava com ênfase:
“Poucas vezes vi um bispo tão pobre. Tinha uma linguagem muito simples e com ele aprendi que a nossa linguagem é muito complicada. Aprendi a necessidade de simplificar a nossa linguagem, de fazer um esforço constante para deixar de lado todas as palavras abstratas do catecismo e de teologia. Em sua maior parte, os padres falam para si mesmos e não para o povo simples compreender a sua mensagem”...
Qual o papel da Teologia hoje?
Essa foi a grande preocupação de José Comblin nos últimos anos. Expressava isso em conferencias, entrevistas, artigos - de modos diversos, mas sempre a mesma ideia. Era preciso voltar ao Evangelho e atualizar a sua expressão. Não se trata de imitar a ação de Jesus mais de inventar no contexto atual o que seria a ação de Jesus.
A tarefa da teologia é mostrar a distinção entre o que é o Evangelho e tudo o que foi acrescentado e deve ser mudado para sermos fiéis ao Evangelho. É libertar o Evangelho da Religião. A religião é boa quando ajuda a encontrar o evangelho e não esquecê-lo envolvendo-o com um revestimento religioso.
A teologia está a serviço do povo cristão ou ainda não cristão, para que conheça o verdadeiro evangelho e possa chegar a uma fé verdadeira e não a um sentimento religioso.
Durante séculos a teologia esteve a serviço da instituição para defendê-la das heresias e dos inimigos da Igreja1.
A teologia oficial, que deve deixar de ser o comentário da doutrina oficial. O desafio hoje é situar-se dentro da sociedade contemporânea, dentro do povo a partir do mais simples. É preciso uma teologia que seja orientadora para o povo. Porque isso tem um conteúdo, um modo de expressão bem diferente.
“Durante séculos passados o teólogo se colocou ao lado da administração da sua igreja. E com a teologia da libertação começou uma mudança: de uma teologia que se coloca a serviço do povo cristão simplesmente, daqueles que não tem poder, daqueles que não tem força, daqueles que não fizeram estudos teológicos, mas a serviço deles, para elaborar um conteúdo da verdadeira mensagem cristã para eles, não para os que dirigem”.2
A teologia forma teólogos, não forma evangelizadores. O Evangelho para os dias de hoje é o anuncio, a proclamação da vida de Jesus. O que nos ensinou pela sua vida, pela sua atitude neste mundo com os poderosos, com os pobres, com os doentes. Porque somente o seguimento de Jesus pode convencer.
A teologia não convence ninguém e nunca converteu ninguém. O que converte é o testemunho de pessoas que vivem de acordo com o Evangelho.
Para os nossos contemporâneos a única coisa que pode transformar a vida é o encontro com pessoas realmente evangélicas, realmente comprometidas de uma maneira convincente, de uma maneira forte, de uma maneira iluminadora, pessoas cuja vida é uma luz. Cuja vida ilumina.
Em Medellín a referencia dominante foi o Evangelho. Isso estimulou o desenvolvimento de uma teologia latino-americana a partir do Evangelho e não a partir de situações eclesiais europeias. O desafio era: - Como viver o evangelho hoje na AL? Não importa o nome - teologia da libertação ou outro - importa o fato.
A partir de Medellin novas experiências pastorais surgiram e foram matéria para essa teologia . Até 1960 na América Latina a teología era pura repeticáo da teología neo-escolástica que surgiu desde o Concilio de Trento.3
Uma teologia nasce de uma prática evangelizadora. Sem essa pratica deixa de ser atividade intelectual para ser repetição do mesmo.
A tarefa da teologia será libertar o evangelho da rigidez do dogma. Ele inclusive sugere que nas escolas de teologia se poderia tomar como prioridade ensinar a pensar, a refletir, ensinar a organizar o pensamento, a proceder por etapas, estudando e examinando um assunto. Isso é mais importante do que dar conteúdos. É preciso dar a maneira de aprender, o modo de aprender é mais importante insistia ele em todas as formações e sempre que nos preparava para essa tarefa seja junto aos missionários, seja junto aos animadores de CEBs e demais lideranças.
Esse é o desafio da teologia cristã hoje em dia: entrar e dar uma palavra, uma orientação que seja a expressão atual da verdadeira mensagem de Jesus. Quanto tempo vai ser necessário?4
Queremos registrar ainda alguns comentários de José Comblin a respeito do Concilio Vaticano II. Ele considera que foi um dos maiores acontecimentos na vida da Igreja Católica. Mas em boa parte não entrou na prática cotidiana dos agentes eclesiais e eclesiásticos. Os tempos seguem avançando, as mudanças culturais prosseguem, de modo que hoje são necessárias NOVAS respostas. De todas as maneiras há muita coisa do Concilio Vaticano II que deve ser preservada e retomada. Ele foi um entusiasta e escreveu onze artigos sobre o Concílio, e oito ou dez artigos sobre Medellín e as Conferencias seguintes. Sempre buscando estimular, chamar a atenção para o sopro do Espírito que impulsionava em direção ao mundo, que inspirava uma presença verdadeiramente evangélica junto aos contemporâneos. Seguiu incansavelmente provocando à fidelidade ao Evangelho.
“É pouco provável que um Concílio que reúna unicamente bispos possa descobrir as respostas aos desafios do tempo atual. As respostas não virão da hierarquia, nem do clero, e sim de leigos que vivem o evangelho em meio ao mundo que entendem. Por isso temos que estimular a formação de grupos de leigos comprometidos ao mesmo tempo com o evangelho e com a sociedade humana na qual trabalham”.5
Continua:
“Do Vaticano II destacamos o seguinte que deve permanecer como uma base para as reformas futuras:
- O retorno à Bíblia como referencia permanente da vida eclesial acima de todas as elaborações doutrinais posterior, acima dos dogmas e das teologias.
- A afirmação do povo de Deus como participante ativo na vida da Igreja, tanto no testemunho da fé como na organização da comunidade, com uma definição jurídica de direitos e com recursos nos casos de opressão por parte das autoridades.
- A afirmação da Igreja dos pobres.
- A afirmação da Igreja como serviço ao mundo e sem busca de poder.
- A afirmação de um ecumenismo de participação mais próxima entre as Igrejas cristãs.
- A afirmação do encontro entre todas as religiões ou pensamentos não religiosos.
- Uma reforma litúrgica que utilize símbolos e palavras compreensíveis aos homens e mulheres contemporâneos. As comissões formadas após o Vaticano II deixaram muitas palavras e símbolos totalmente sem significado para os cristãos de hoje e um obstáculo para a missão”.
A vida inteira é preciso recomeçar. E assim ele fazia incansavelmente nos seus escritos e na exposição de seus pensamentos. Assim ele procedia nas jornadas de formação.
1 (2009.10 - Los retos de la teología)
2 (2007.09 - O lugar da teologia na igreja e no mundo)
3 (2008.08.21 - Medellin y el quehacer teológico hoy)
4 (2007.09 - O lugar da teologia na igreja e no mundo)
5 (Vaticano II - 50 anos depois - publicado em Vida Pastoral no Brasil e em diversas publicações latino-americanas)