O mundo dos excluídos veio para ficar. Ele é produzido pelo sistema econômico atual que vai gerando cada vez mais exclusão. Uma parte da população tem capacidade para entrar no mundo novo da economia. Uma grande parte não tem condições. As condições são cada vez mais exigentes de tal sorte que a distância cultural aumenta entre os que têm e os que não têm condições. Quem nasce no mundo dos excluídos já nasce excluído e nunca poderá recuperar a distância que o separa de quem nasceu num família incluída. Somente uma ínfima minoria ajudada por muita sorte consegue, o que não afeta o fenômenos no seu conjunto.
O sistema econômico atual domina de modo absoluto o mundo de hoje. Reina praticamente sem contestação entre todos os que detêm os poderes. Está crescendo sem parar, confiante em si mesmo, sem dúvida. Os que conduzem o processo não têm dúvida nenhuma. São seguros de si mesmos e dispõem de quase todos os recursos que há atualmente no mundo. Dispõem de praticamente todos os cérebros importantes na sociedade de hoje. Tudo e todos trabalham para consolidá-lo. Somente o contestam alguns intelectuais sem poder.
Este modelo de economia está tão firme que está feito para durar pelo menos um século. A famosa Terceira Via lançada por Tony Blair está sendo aceita hoje em dia por quase todas as esquerdas do mundo, o que significa que a esquerda considera fato irreversível a evolução atual da economia.(1).
No momento não há alternativa com força política. A oposição vai Ter que cumprir o seu papel de oposição, mas está impedida de realizar o seu programa de governo. Estamos ainda na fase inicial da exclusão. O que vem por aí, pode ser somente pior. Isto não depende de um governo, de um regime político ou de uma Constituição de Estado, porque nenhum estado pode impedir o inevitável, que é a pressão de um sistema compacto e dotado de todas as forças materiais e culturais.
Anunciar o fim da exclusão é irresponsabilidade, porque é deixar as pessoas na ilusão e atrasar as disposições a serem tomadas em virtude da situação que existe. É irresponsável pensar que o problema está sendo resolvido e que algumas boas pregações podem mudar a evolução atual do mundo. Naturalmente todos os governantes dizem com lágrimas nos olhos que estão preocupados pela exclusão e pela pobreza. Falam assim para enganar-se a si próprios e enganar o povo. Falando assim pensam que têm bom coração. O que importa, é que na hora do agir, fortalecem todos o. sistema. Não moverão um dedo para mudar o crescimento do sistema atual. Nem adianta pensar que um futuro governo vai mudar esse rumo. Pode variar um pouco a intensidade do movimento, mas não pode mudar um movimento que está em plena expansão.
Os excluídos vivem. Não vão desaparecer porque são excluídos. Conseguem sobreviver. Conseguem encontrar b rachas no sistema, meios de subsistência. Recolhem as migalhas que caem da mesa dos poderosos. Como os poderosos são muito ricos, as migalhas podem alimentar muita gente. Os excluídos vão formando um mundo próprio, um mundo separado com a sua cultura própria, as suas relações sociais próprias. Constituem pouco a pouco um mundo completo como a favela da Rocinha no Rio de Janeiro.
Vivem de uma economia informal ou as vezes conseguem um emprego aleatório numa empresa de construção ou num serviço precário. Recolhem o que a sociedade lhes concede, sobretudo a televisão que abre para o resto do mundo, porém sem criar comunicação com esse mundo. Criam uma cultura, um estilo de vida em casa, uma maneira de comer e beber, as festas, o relacionamento entre vizinhos. O seu mundo é um mundo pequeno, mas permite viver. Nesse mundo há tempos de alegria e tempos de tristeza, tempos de medo e tempos de ilusão.
A cultura do mundo dos excluídos não é muito conhecida porque não consegue interessar os sociólogos. Estes ainda ficam muito dependentes das teorias do passado. Ou são marxistas e olham tudo em função de luta de classe como nos tempos da sociedade industrial, sem ver que na atualidade somente uma minoria participa do mundo industrial. Os operários das grandes industrias já pertencem ao mundo dos incluídos, embora numa posição modesta. Ou dependem da sociologia norte-americana e enxergam tudo no esquema positivista de passagem da cultura pre-moderna para a cultura moderna. Não descobriram que há duas culturas modernas, a dos incluídos e a dos excluídos.
A cultura dos excluídos está presente nas cidades. É feita de fragmentos de cultura rural desintegrada e de fragmentos da cultura dominante mais ou menos assimilados. Pois o mundo dos excluídos não está totalmente isolado. Vive ao lado do outro, ainda que com comunicação muito superficial. Os novos pobres reinterpretam na sua cultura a exibição da cultura dominante.
No Primeiro Mundo os excluídos constituem 1/3 da população, e no Terceiro Mundo 2/3. Claro que esses números são muito aproximativos. Em cada país a situação é particular e a fronteira entre excluídos e incluídos não está tão clara. Há uma parte da população que está entre os excluídos e os incluídos, participando parcialmente das duas categorias. No entanto globalmente há uma separação muito radical entre dois pólos e duas partes da população.
A Igreja continua repetindo o discurso da opção pelos pobres e pelos excluídos. No entanto este discurso fica cada vez mais distante da realidade. Se se examina o comportamento real, nota-se com toda evidência que a Igreja está fazendo opção pelos incluídos. Está perdendo contato com os excluídos. Já que repete o mesmo discurso, nem percebe que está se distanciando cada vez mais dos excluídos. O discurso serve para esconder a realidade e dar boa consciência.
Com efeito, hoje em dia a força da Igreja está concentrada ao redor de dois pólos : os “movimentos” e as paróquias. Os movimentos estão crescendo cada vez mais e constituem atualmente o setor mais vivo, mais dinâmico e o que mais cresce na Igreja. Na frente está a Renovação carismática, mas depois vêm o ECC, os Focolarinos, os neo-catecumenais, Schönstatt e outros menos numerosos.
Os movimentos estão implantados no mundo dos incluídos. Todo o seu modo de ser revela a sua perfeita adaptação à cultura dos incluídos. Estão bem inculturados e por isso fazem sucesso e crescem sem cessar. Apesar de não serem integrados nas estruturas oficiais da Igreja, a sua influência vai crescendo. Não têm o poder na Igreja, mas têm o conhecimento do mundo, a ciência das comunicações e tudo o que o clero não tem. Por isso na realidade a sua influência é maior do que a influência dos sacerdotes na Igreja. Os sacerdotes são cada vez mais espectadores do que acontece na Igreja ou auxiliares dos movimentos. A sua cultura arcaica não lhes permite competir, salvo raras exceções.
Por serem emanação da cultura dominante, os movimentos não têm comunicação com o mundo dos excluídos, ainda que no seu discurso multipliquem as profissões de boa vontade. Não há comunicação. Nem sequer a língua é a mesma. Não é por falta de boa vontade, mas é simplesmente uma necessidade sociológica.
Fica como tarefa para o século XXI o surgimento de vocações missionárias nos movimentos para descerem até o mundo dos excluídos, afastando-se da sua cultura para ir ao encontro da cultura dos excluídos. É mais difícil ser missionário no mundo dos excluídos do próprio país e da própria cidade do que ser missionário na África ou na Ásia, porque a resistência psicológica é maior. É mais fácil reconhecer a diferença da cultura indiana ou chinesa do que a diferença ca cultura dos excluídos na própria cidade. O cidadão da classe superior pensa que sabe e pode tudo na sua própria cidade e na realidade nunca pisou no mundo dos excluídos.
Como movimentos organizados e como totalidades sociais, os movimentos nada podem prelo mundo dos excluídos. Porém do meio deles pode e deve sair uma messe de vocações missionárias. Como sociedades organizadas têm uma mentalidade universal. Estão convencidos que representam todas as classes sociais e são imagem da própria sociedade urbana ou nacional. Não podem perceber os limites da sua consciência. Somente os excluídos podem dizer-lhes que eles pertencem a um mundo limitado e que são capazes de comunicar-se.
O segundo pólo forte da Igreja católica, no qual se concentra a quase totalidade do clero, são as paróquias urbanas. Urbanas porque 80% da população mora em cidades. No mundo urbano, as paróquias reúnem as pessoas do mundo incluído quase sempre. A cultura paroquial adapta-se muito melhor ao mundo dos incluídos. O próprio vigário foi educado na cultura dos incluídos e se sente muito mais à vontade no mundo dos incluídos. Como as atividades paroquiais são numerosas, elas conseguem ocupar o tempo todo dos melhores vigários. Não sobra tempo para cruzar a fronteira e ir ver o que está acontecendo no outro país que fica dentro do território paroquial. A própria estrutura paroquial favorece esta evolução. Ora, na cidade a visibili8dade das igrejas e capelas paroquiais não é muito grande. Uma família pode morar a 100 metros da capela e ignorar a sua presença, assim como os católicos fiéis ignoram as igrejas pentecostais que estão na mesma rua.
E as CEBs, elas não são a presença da Igreja no mundo dos excluídos e do mundo dos excluídos na Igreja ?
Em primeiro lugar, elas não têm mais na Igreja a importância que já tiveram. Basta lembrar que no documento Ecclesia in America nem sequer são mencionadas. E na dinâmica das diocese o seu espaço é muito limitado. Basta enumerar as capitais do país para dar-se conta imediatamente.
Em segundo lugar uma grande parte das CEBs está situada nas comunidades rurais afastadas das matrizes. Este mundo rural conta cada vez menos no conjunto do país. Se bem apareceram os assentamentos, a presença da Igreja católica é mínima neles. No mundo urbano as CEBs não se multiplicaram apesar do imenso crescimento do mundo dos excluídos. São como ilhas num mar imenso. Além disso muitas foram integradas no sistema paroquial, reproduzem o modelo da paróquia e funcionam como órgão de transmissão da pastoral paroquial. Dedicam muito tempo à preparação dos sacramentos e às celebrações de estilo mais ou menos tradicional. Tudo isto já é bem conhecido.
Em terceiro lugar as próprias comunidades são agentes de promoção social. Quem participa tem muito mais possibilidade de ascensão social porque vai adquirindo capacidades que habilitam para entrar no mundo dos incluídos.
A participação nas CEBs confere um desenvolvimento humano que prep0ara para saber atuar no mundo superior, ainda que em posições modestas. Acontece a mesma coisa com os sindicatos, os partidos políticos populares ou os movimentos populares. Os dirigentes saem do mundo dos excluídos porque já se capacitaram e entram em comunicação com o mundo dos incluídos.
Ainda há uma parte das CEBs que são a Igreja no mundo dos excluídos. Mas essa parte conta por pouco na Igreja atual, isto é, na vida das dioceses, das paróquias e dos movimentos. Por outro lado a existência delas não constitui uma presença significativa da Igreja católica. Quantos sacerdotes dedicados a esse mundo ? Quantas religiosas ? Qual é a parte dos recursos financeiros da Igreja que se dedica à missão no mundo dos excluídos ? Insignificante.
O desafio é a presença da Igreja no mundo dos excluídos. Não basta condenar o sistema neo-liberal que se está implantando e aumenta esse mundo dos excluídos. É necessário condenar, mas não basta, porque nada vai mudar por causa disso. A influência da Igreja na sociedade é mínima para não dizer inexistente. O que se espera da Igreja é que legitime o sistema e dê alguns remédios dê consolo às vítimas. Se ela se dedica a isso terá um lugar privilegiado. Se não fizer assim, será marginalizada.
Também não basta anunciar uma utopia de nova sociedade ou civilização do amor. A utopia é necessária para manter a esperança e a espera de outro mundo. Porém, não basta porque o anuncio do evangelho é anuncio do reino de Deus no mundo presente, a presença de Deus neste mundo que existe e a ação a partir do reino neste mundo que existe. Pois, anunciar o futuro é muito cômodo e pouco exigente. Pode-se estar no mundo dos incluídos e esperar uma mudança de sociedade que vai demorar pelo menos um século. O consolo do mundo futuro não basta. As ideologias socialistas prometeram um mundo futuro que nunca chegou. O que nos preocupa e o objeto da evangelização é o mundo presente tal como é. O que dizer e o que fazer em ralação a este mundo presente ?
Em primeiro lugar para poder agir, é preciso estar presente. Já lembramos que todo grupo de Igreja tende a subir socialmente e ao mesmo tempo a se separar do mundo dos excluídos. Forma uma grupo que se integra. Assim aconteceu com os monges antigos. Assim foi com as primeiras comunidades cristãs. Assim foi com todas as fundações religiosas no decorrer dos tempos. Começam pela presença no mundo dos pobres e depois de um século já passaram para o mundo dos ricos.
Assim está acontecendo também com as CEBs. Começam pelos excluídos e pouco a pouco vão diferenciando-se, subindo socialmente. Precisa recomeçar de novo. Não é provável que uma comunidade que começou no meio dos pobres e se emancipou, tornando-se incluída, possa voltar à origens e voltar aos excluídos.
Da evolução atual das CEBs alguns tiraram a conclusão que elas já fizeram o seu tempo e estão sendo substituídas por outras formas de pastoral. Muitos acham que não respondem mais às situações novas e estão desaparecendo. Ora, a evolução atual das CEBs não quer dizer que elas estão superadas. Quer dizer que como todas as instituições de Igreja elas devem passar pelo que tradicionalmente se chama uma reforma.
O que é uma reforma na Igreja ? Trata-se de uma volta às origens. A instituição afastou-se das origens. Este afastamento sempre é o mesmo : sair da pobreza, entrar no mundo da segurança, da propriedade e da cultura dominante. O conjunto ded uma instituição não pode voltar às origens. Não faltam boas intenções. Mas uma vez que uma instituição vive no meio de garantias e na cultura dominante, não é mais capaz de perceber que mudou e se afastou das suas origens. O discurso impede a consciência. O discurso vem aí para esconder a realidade quando pensa que a está revelando. É assim que os religiosos ainda pensam que são pobres porque fazem o chamado voto de pobreza cuja finalidade é esconder a falta de pobreza.
Toda reforma vem de pessoas novas que estavam nas estruturas e resolvem libertar-se delas para voltar às origens. Saem da instituição para ser mais fiéis a ela. Assim acontece agora com as CEBs. Longe de serem superadas, são mais atuais e mais necessárias do que nunca, mas não aquelas que estão aí. Outras, novas, que nascem dos verdadeiros excluídos. As CEBs como todas as instituições de Igreja precisam ser fundadas de novo para ser fiéis ao seu programa. Fundadas por novas pessoas com n ovas pessoas que pertencem realmente aos novos excluídos e não aos que já foram excluídos e já não são.
A presença no mundo dos excluídos.
Em primeiro lugar está claro que não há presença que não seja física. Trata-se de estar materialmente presente, compartilhando a vida do mundo dos excluídos. A vizinhança física é imprescindível. Assim como não se evangeliza o povo chinês permanecendo na Paraíba, assim não se evangeliza os excluídos vivendo no mundo dos incluídos.
Porém, a pura presença física não basta porque por si mesma não fala nada. É apenas uma condição para poder falar. Qual será a mensagem ? Em primeiro lugar a palavra será o testemunho da vida. Para ter credibilidade precisa dar o testemunho de uma vida em Cristo. Dar pelo modo de ser o testemunho de que o reino de Deus já está aqui presente. Onde está presente ? na alegria de viver num mundo novo apesar de toas as circunstâncias exteriores, uma vida de ressuscitados apesar dos sinais de morte. Esta vida de ressuscitados é uma vida aberta aos outros. Não precisa nem se pode fazer proselitismo, querer recrutar membros. Membros de que ? Precisa mostrar primeiro o que é uma vida de cristão, mostrar na realidade antes de mostrar por meio de palavras.
A mensagem cristã é que por meio de Jesus Deus veio neste mundo tal como é, estar neste mundo de misérias, de desespero, de crimes, de sujeira. Deus desceu do pedestal do seu poder para ir morar numa favela. Ninguém acredita se não o vê na realidade de homens e mulheres que representam esta presença de Jesus.
Nas situações de pior miséria física ou moral há uma espera da vinda de Deus. Acham que estão longe de Deus porque são rejeitados pelos homens. Mas há algo que espera. Em algumas pessoas esta espera é muito forte. Em outras mais apagada , mas está aí sinal da presença do espírito santo. Há como um povo de Israel à espera do seu salvador.
Por isso o anuncio do reino de Deus presente em algumas pessoas não é novidade total. Uma vez que ele se torna presente, logo mais há algumas pessoas que o reconhecem e identificam porque estavam sonhando dele. Já os Novo Testamento mostrava como o evangelho não se proclama a pessoas que o ignoram completamente e sim a pessoas que o estão esperando sem saber exatamente como será. É mostrar a resposta a uma espera. Por isso mesmo não precisa de muitas palavras porque a identificação não é difícil.
Não se pode esperar que a Igreja toda faça essa viagem missionária até o mundo dos excluídos. Porém, alguns têm vocação para essa viagem e a Igreja deve apoiar, reconhecer-se nessa vanguarda e confiar nas obras do Espírito Santo.
Ao redor desses missionários alguns grupinhos vão surgir. Se se pretende que se vinculem logo com uma comunidade ou CEB preexistente ou a uma paróquia, estará tudo perdido. Precisa reconhecer a autonomia dos pobres para viver e crescer na sua cultura de pobres. Tudo o que se falou outrora das CEBs e não se encontra mais na realidade, vale para esses grupos novos realmente situados no mundo dos excluídos.
Conhecer a cultura
Quem penetra numa cultura desconhecida logo fica perturbado pelos seus vícios e imperfeições. O primeiro que se percebe são os defeitos. Assim aconteceu sempre no passado quando missionários foram descobrir América, Ásia, África. Foram chocados pelos vícios , pela miséria corporal, moral ou espiritual dos povos que pretendiam evangelizar.
Logo mais acham que devem corrigir os vícios ou vencer a miséria. Acham que são capacitados e que têm vocação para isso. Naturalmente fracassam, mas atribuem o seu fracasso ou ao diabo que resiste, ou à má vontade dos povos, o que confirma a sua condição de miséria. Fracassam porque não conhecem a cultura e não sabem como entrar no mundo dessa cultura.
Hoje em dia entrando no mundo dos excluídos o primeiro que chama a atenção é a miséria física, falta das mais mínimas condições de vida humana, fome, carência, insegurança. Depois vem a miséria moral : quadrilhas, roubo, violência, drogas, prostituição, estupro, crianças abandonadas. Não adianta condenar ou denunciar tudo isso. Será um desabafo dos missionários, porém sem resultado.
Precisa aprender a conhecer. Não há somente o negativo, o crime, a sujeira, o mal. Deus já está aí também o Espírito Santo já está atuando. Se não se descobre essa presença de Deus, nada se pode fazer. Porque a missão do missionário parte dessas sementes de salvação que já estão aí. O missionário não pode ir com a sua cultura, isto é, com os seu8s programas de pastoral, as suas propostas já concebidas. Deve chegar com po0pbreza total de idéias ou projetos. Deve não saber o que fazer porque o que há de se fazer, será dito pelos próprios habitantes da favela, pelos sinais da presença de Deus que já estão presentes.
Conhecer a cultura é saber como um povo vive na situação em que está, como consegue viver humanamente. Porque de fato consegue. Nós pensamos que não poderíamos conseguir, mas eles conseguem. A cultura é a maneira de viver com o que se tem, e, no caso, com o pouco que se tem. Sem conhecer a cultura, pode-se implantar novidades, instituições, programas. Nada será assimilado, nada funcionará, nada sobreviverá à saída dos promotores, se não se integrou na cultura dos excluídos. Isto quer dizer que o que se pode fazer, é sempre menos do que o que se queria fazer. A realidade não permite projetos grandiosos desde o início.
A ideologia das CEBs, como toda ideologia, serviu também para ocultar a realidade. A gente pensa que conhece a cultura dos excluídos porque projeta sobre ela uma ideologia. Sempre é preciso desfazer-se das ideologias e conhecer por contato direto, imediato, vendo e sobretudo escutando. A experiência de outros serve pouco. Ela serve sobretudo para criar ou reforçar uma ideologia. Cada um deve aprender de novo a partir do começo.
O que fazer ?
Esta foi a famosa pergunta que percorreu e estimulou todo o século XX, desde que Lenin publicou o seu famoso panfleto com esse título . A pergunta dominou o século : o Ocidente acha que deve e pode “fazer”. Não está errado e foi o cristianismo que introduziu o mundo essa paixão de fazer”. No entanto nem tudo se pode fazer. Não se pode realizar uma utopia e o drama grandioso e patético do século XX terá sido isso : o sonho do socialismo e o dramático fracasso das experiências concretas. A causa foi a vontade de realizar na prática uma utopia com todos os meios disponíveis.
O que fazer manifesta-se pelo contexto, pelas circunstâncias, pela situação em que se acha quem se faz a pergunta. Será sempre algo limitado e destinado a ser corrigido numa fase ulterior da história. Não dará pela satisfação. Sempre terá aspectos positivos e negativos. Sempre suscitará a oposição dos conservadores e dos utopistas por ser realista e atrevido ao mesmo tempo.
No início aparecem pequenos grupos liderados por pessoas dotadas de um carisma especial. São as novas comunidades de base, bem diferentes das atuais CEBs justamente pela sua pobreza, carência de meios e simplicidade. Ainda não tem estrutura. Assim foram as CEBs no início.
Hoje em dia o mundo dos excluídos está esmagado por um sistema tão forte, tão seguro de si mesmo que pode dar-se o luxo de nem sequer dar-se conta da existência dos excluídos, salvo nos discursos oficiais para dar-se boa consciência. Porém na hora das decisões, os pobres nem sequer são contemplados. Esta situação lembra-nos a situação dos cristãos no império romano antes de Constantino. A força do império era total e a distância entre a classe dirigente romana e a massa dos povos subjugados era infinita. Uns tinham todos os poderes e os outros nada de poder. A metade dos habitantes eram escravos ou libertos ainda dependentes dos antigos senhores.
Durante 250 anos as comunidades cristãs pobres tiveram que agüentar o peso de uma sociedade que era o contrário de tudo o que estava no evangelho. Conseguiram sobreviver. Criaram um pequeno mundo de paz, justiça e fraternidade entre eles, ilhas de vida evangélico no ventre do monstro. S. Agostinho dizia do império romano que era uma gigantesca cova de ladrões. E era e os cristãos sabiam que não tinham força para amansar o monstro.
Hoje estamos entrando num monstro semelhante. O império atual é tão cruel e talvez mais cruel do que o império romano. Na frente não há mais imperador, mas a finança multinacional, o dinheiro-rei. O dinheiro quer crescer e crescer sem fim, mesmo tendo que esmagar a imensa maioria da humanidade. Alegra-se porque cresce. Cada vez que a miséria aumenta no mundo, o dinheiro ganha mais nas
Bolsas de Valores. Os donos do império estão triunfando porque o seu império cresce a cada dia. São de uma arrogância total.
O pior é que entre os donos do império há muitas pessoas que se dizem cristãs, por exemplo nos estados unidos onde muitas igrejas protestantes celebram as vitórias do império como vitórias de Deus. São cristãos oprimindo outros cristãos, e cristãos oprimindo os excluídos do mundo. Isto não havia no império romano. Pelo menos se sabia que o império eram emanação de Satanás como consta no livro do Apocalipse.
Mesmo assim as antigas comunidades cristãs conseguiram revelar o reino de Deus pela sua vida, pela sua resistência. Hoje em dia comunidades semelhantes podem manter a fé, a esperança e a verdadeira fraternidade.
Na vida de cada dia é quase impossível colaborar com o sistema. Muitos são empregados do sistema e vivem do sistema. Cada caso é diferente e cada um precisa examinar até onde pode colaborar. Os primeiros cristãos tinham definido certos limites : não podiam ser soldados, nem magistrados públicos porque isto exigia uma profissão de subordinação aos deuses do império. Quais serão os limites hoje ? O que é que um cristão não pode aceitar ? Com que não pode colaborar de modo algum ? Questões abertas para a consciência cristã.
Na participação no sistema financeiro, há limites que uma consciência cristã não pode aceitar, mesmo que tenha que sofrer a morte do martírio como os primeiros cristãos. No funcionamento das multinacionais, na industria, no comércio há limites intransponíveis para um cristão. No exercício da função pública e na corrupção da vida pública há limites que não se pode ultrapassar, mesmo tendo que sofrer a morte e já sabemos que há muitas vítimas que morrem vítimas da corrupção do sistema. E assim por diante em todos os setores da vida pública.
Sob as ditaduras explícitas era mais fácil descobrir os limites. Hoje no sistema econômico em que estamos a publicidade do sistema está muito melhor organizada para esconder o que está acontecendo. Os responsáveis estão escondidos e a responsabilidade é distribuída entre muitos de tal modo que todos se sentem inocentes.
É possível agir no meio dos excluídos ? É possível porque nenhum sistema é tão fechado que não deixe brechas. O sistema não pode controlar tudo e não precisa controlar tudo. Há espaços que movimentos sociais podem ocupar, dependendo dos países. Em certos países há menos espaço para os movimentos populares. Em outros há mais. Nunca haverá espaço suficiente para poder ameaçar seriamente o sistema. Quando aparece o perigo o sistema fecha-se sobre si mesmo.
Assim mesmo há espaços abertos. Por exemplo no Brasil o latifúndio é campo aberto. É um fenômeno arcaico que não pertence ao sistema. O sistema não precisa do latifúndio e funcionaria até melhor sem o latifúndio. Acontece que as antigas elites rurais ainda são politicamente fortes ainda que economicamente fracas. A terra não dá mais lucro, mas dá poder. No entanto o sistema pode muito bem tolerar o MST. Não o ameaça e até pode ser uma ajuda.
Há outros setores que também não ameaçam o sistema. Poderia haver muitas cooperativas industriais ou comerciais. Os trabalhadores da cidade poderiam organizar-se a comprar ou conquistar industrias ou empresas comerciais. Cada vez que uma empresa está enfrentando dificuldades e deixa de dar lucro suficiente aos acionistas, os trabalhadores poderiam conquistar a empresa pela negociação ou pela pressão.
Também uma ação social pode conseguir melhoramentos nos serviços públicos ou maior assistência aos mais necessitados. Nada disso virá espontaneamente sem uma ação social vigorosa e perseverante. No entanto nada disso ameaça o sistema. Portanto a sociedade pode tolerar esse tipo de ação social.
A única coisa que não se pode fazer, á mudar o sistema. Isto será para mais tarde quando o sistema estiver enfraquecido. O que se pode fazer hoje em dia, parece paliativo. No entanto esses paliativos podem melhorar muito a vida dos excluídos e precisa lutar para conquistá-los.
Na Igreja de hoje há uma imensa carência de pessoas comprometidas e engajados nas lutas sociais para a emancipação dos excluídos ( ainda que nos limites que foram ditos). Há sobretudo uma tremenda ausência daqueles que ainda detêm todo o poder na Igreja, os padres.
É hipocrisia contentar-se com dizer que isso é tarefa dos leigos. Os padres conservam todo o poder e os leigos não têm nenhuma iniciativa no agir social da Igreja. Se se deixasse poder aos leigos, eles poderiam assumir. No entanto até agora quase nunca os leigos agem em representação da Igreja. Não se lhes Atribui nenhum poder. Então quando os padres não se comprometem, nada acontece. Na atualidade há um tremendo pecado de omissão. Pois, nesta época de transição os padres ainda são a Igreja na mente do povo e também na mente deles. Quando eles não agem, os leigos sentem-se dispensados de agir. Não basta exortar os leigos por meio de discursos. Os discursos não fazem nada. Não adianta exortar os leigos : estas exortações são pura hipocrisia da parte do clero. Até hoje e ainda durante este século XXI, se os padres não
estão na frente da luta, ninguém na Igreja se move. Quem age, já está fora do Igreja.
Na geração anterior um grande número de bispos, padres, religiosos ou religiosas tinham entendido isso e se comprometeram, alguns até o martírio de sangue e outros no meio de muitas perseguições. Ora hoje em dia a situação dos excluídos é muito pior e apela para uma dedicação muito maior. Sucede o contrário. O que é que acontece ?
Tudo funciona como se os excluídos de hoje estivessem tão excluídos que nem o clero consegue descobrir a presença deles. Desaparecem até da consciência dos padres. São lembrados na hora dos documentos oficiais, mas não existem na hora da vida diária. A Igreja funciona como se eles não existissem.
As paróquias funcionam muito bem e multiplicam as atividades. As dioceses funcionam muito bem e multiplicam as comissões e as pastorais. Todo o mundo está muito cansado de tanto organizar e tanto trabalhar. Mas os excluídos permanecem excluídos também de todas essas atividades. A Igreja está situada em outro mundo ainda que ainda proclame nos documentos que é a Igreja dos pobres.
Graças a Deus, há membros do clero que estão comprometidos ainda que seja pequena minoria. Há um número suficiente para que mais tarde se possa dizer : naquele tempo, a Igreja estava presente. Assim como dizem que a Igreja pode dizer que estava presente na hora das grandes fábricas e da condição desumana dos operários. Estava presente porque havia alguns sacerdotes, condenados pelos outros, que se desgastavam no meio das lutas operárias, sempre suspeitos e muitas vezes condenados. Mais tarde dirão também : nas horas trágicas das lutas operárias, a Igreja estava presente. Estava presente, mas contra a vontade dos superiores, que, depois, se atribuem a glória dos feitos alheios.
Hoje de novo a hora é trágica nas grandes cidades. Se o clero não assumir positivamente novas lutas sociais, os excluídos ficarão desamparados sem capacidade de agir realmente na sociedade. Por exemplo na atualidade a violência cresce : é um grande fenômeno social dos anos 90, um desafio urgente para que a vida não seja angústia permanente. Poucas são as reações, poucas as iniciativas para organizar a reação. Não basta condenar : até os maiores criminosos fazem isso. Precisa agir, organizar a vontade de paz dos habitantes da cidade. A maioria deles está sem ânimo, sem coragem, sem dinamismo. Esperam a vinda de um líder para catalisar as energias e organizar a ação.
Este é apenas um setor. Quantos outros ficam à espera de alguém para liderar. Não adianta dizer que isso é tarefa dos leigos, bem sabendo que lideranças entre os leigos são muito excepcionais porque nunca foram preparados para serem líderes. Basta comparar todas as energias que a Igreja coloca à disposição da formação do clero com aquilo que4 gasta para a formação de líderes leigos. No melhor dos casos a proporção será de cem por um. Depois disso querer impor aos leigos tarefas impossíveis deixando os padres na tranqüilidade da paróquia é falta de vergonha.
Os sinais dos tempos não podiam ser mais claros. Mas quem reconhece os sinais dos tempos ?
(1) Cf. Anthony Giddens, The Third Way. The Renewal os Social Democracy, Polity Press, Cambridge, 1998.