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Sem uma Espiritualidade Reinocêntrica as Igrejas Cristãs não têm saída: Ponderações acerca dos atuais retrocessos ante a Tradição de Jesus 

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

Também na história do Movimento de Jesus, a Espiritualidade Reinocêntrica é alimentada pelo exercício constante da memória profética. Hoje, dia 24/03, duas efemérides nos vêm ao espírito: a memória do martírio de Dom Oscar Romero, Arcebispo de São Salvador, em 24 de março de 1980, e, antes dele, nos vêm ao espírito as vítimas da Ditadura Militar da Argentina (1976-1985), das quais nos toca profundamente a resistência profética das Mães da praça de maio.

 

O crescente distanciamento dos ensinamentos da Tradição de Jesus, observável a olhos vistos, no cotidiano de parte expressiva dos que se confessam cristãos (Católicos, Protestantes, Ortodoxos), em escala mundial, nos tem levado a enfrentar questionamentos do tipo: O que explica o espantoso número de escândalos (Econômico-financeiros, Morais e outros), a envolverem conhecidas figuras de Padres, Pastores, Bispos Cristãos? O que está por trás do descrédito crescente de instituições religiosas? Como explicar a expansão incessante do número de Padres, Pastores e Bispos, cujas práticas traem os ensinamentos do Evangelho? Como entender as crescentes afinidades observáveis entre Católicos e Evangélicos neopentecostais, protagonistas de causas claramente distanciadas dos valores fundamentais do Evangelho, e, ao mesmo tempo, profundamente afinados com as causas mais abomináveis da extrema-Direita?

 

Nas linhas que seguem, cuidaremos de refletir brevemente sobre tais indagações, ousando sustentar, como hipótese  - com várias outras pessoas - que as experiências de ontem e de hoje de um modelo de Igreja auto-referenciada têm levado inevitavelmente a uma negação objetiva dos valores axiais da Tradição de Jesus - o Reino de Deus e sua Justiça (CF. Mt 6,33). 

 

A este propósito, o Papa Francisco, em seus escritos, mensagens e discursos, não têm cessado de insistir na repreensão de grande parte do Clero, que se torna refém de uma Igreja Auto-referenciada, desconectada da Tradição de Jesus, em relação à qual a Igreja (e toda Igreja que se confessa cristã) deve ser sinal ou instrumento a serviço do Reino de Deus. Desde sua primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”, o Papa Francisco cuida de alertar os agentes de Pastoral inclusive o Clero sobre isto, de modo a classificar o clericalismo como uma espécie de enfermidade que infesta a Igreja Católica, nos dias atuais, chegando mesmo a tratá-los como “funcionários do Sagrado”. No n.95 da E.G., por exemplo, lemos “Também se pode traduzir em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares e recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica.”

 

O ascenso da extrema-Direita, seja no âmbito internacional, tem recorrido abusivamente a diversas igrejas  - e com sucesso!-, como meio eficaz de propagação de sua ideologia. Isto não se faz, sobretudo por parte das lideranças eclesiásticas (pastores e padres), sem uma atitude objetiva de atraiçoamento dos valores centrais do Evangelho: a compaixão pelas vítimas das injustiças sociais a solidariedade com os sofredores e humilhados, a partilha dos bens comuns, o cuidado com a Casa Comum, entre outros.

 

Embora tais contradições se verifiquem ao longo de séculos de Cristandade, nunca é demais rememorar a resistência profética testemunhada, ao longo desses mesmos séculos pelas “minorias abraâmicas”, como as chamava Dom Helder Câmara, é certo que houve, ao longo deste mesmo tempo, alguns períodos densamente proféticos como vimos na América Latina, entre os anos 60 e 80, com o protagonismo de toda uma geração de bispos-profetas. Mas, isto se dá raramente, justamente graças a sua atitude renocentrica, isto é, de não sucumbirem a tentação de buscar fazer prevalecer os interesses institucionais sobre os valores do Reino de Deus

 

O Papa Francisco, ao fazer esta e outras críticas, apenas atualiza o Espírito da Constituição “Lumen Gentium”, cuida de definir a Igreja como Instituição que, fiel ao Projeto de Jesus, é chamada a testemunhá-lo em meio ao Povo de Deus, a serviço da humanidade, sem pretensão a nada impor, mas em diálogo aberto com todos os povos e nações. Lamentável é que, hoje prevalece muito contra-testemunho por parte de tantas figuras clericalistas, inclusive leigos, a atuarem como meros funcionários a serviço dos interesses institucionais da Igreja, distanciando-se dos valores do Reino de Deus e sua Justiça. Valores de fraternidade/solidariedade, de partilha, de diálogo, de solidariedade com os mais necessitados e de serviço gratuito, não de denominação.

 

Com relação a outras Igrejas, o atual contexto apresenta atitudes semelhantes, de um descompromisso com a mensagem nuclear da Tradição de Jesus. Por meio de rígidos laços de hierarquia, não raramente chefes eclesiásticos agem como se fossem o alvo principal do culto e das atividades de várias Igrejas e denominações.

 

Agem, salvo exceções, em função dos interesses institucionais, pouco ou nada ligados diretamente aos valores do Evangelho. Não raramente, chefes eclesiásticos (pastores, padres, bispos…) se acham envolvidos em práticas e prédicas a serviço dos seus próprios interesses, ainda que o façam em nome de Deus ou da própria instituição que dirigem. Uma situação frequente, ao alcance dos olhos de muitos fiéis, têm a ver com sua agenda ordinária, recheada de campanhas e iniciativas preocupadas com o aumento do dízimo e das contribuições, seja persuadindo seus fiéis a aumentarem suas contribuições, seja envolvendo-os em campanhas arrecadatória para fins eclesiásticos discutíveis (reforma de prédios, novas construções, aquisição de bens duráveis nem sempre necessário, etc.). Tudo isto se fazendo com pouca transparência ou nenhum controle público efetivo.

 

Não se trata de casos isolados, mas de uma tendência crescente, a revelar ter a ver com um modelo de Igreja autocentrado e cada vez mais desconectado do movimento de Jesus. Revelam um progressivo afastamento de uma Espiritualidade Reinocêntrica, que podemos traduzir, na expressão já cunhada pelo Bispo de Roma, como uma “Igreja em saída”, uma Igreja samaritana comprometida com a causa libertadora dos mais necessitados: O grito da Mãe terra, os povos originários, as mulheres vítimas de  feminicídios e de violências de todo tipo, as vítimas de homofobias, as comunidades quilombolas, os jovens marginalizados do campo e das periferias urbanas, os moradores em situação de rua, os migrantes entre outros.

 

Eis por que insistimos, junto com tantas outras vozes, em que sem uma Espiritualidade Reinocêntrica, não há saída para as Igrejas Cristãs . Neste sentido, recomendamos o aprofundamento do exercício da memória profética e da autocrítica, desde o chão do nosso cotidiano, recorrendo inclusive a leituras comunitárias, tais como as que vimos fazendo de livros como “50 Anos de Teologias da Libertação” “Contemplando e Anunciando os Sinais do Reino” (de autoria de Glaudemir da Silva), sem esquecermos dos luminosos textos produzidos pelo CEB (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), entre tantos outros.                                                                                                                                 

 

Eis por que insistimos, junto com tantas outras vozes, em que sem uma Espiritualidade Reinocêntrica, não há saída para as Igrejas Cristãs . Neste sentido, recomendamos o aprofundamento do exercício da memória profética e da autocrítica, desde o chão do nosso cotidiano, recorrendo inclusive a leituras comunitárias, tais como as que vimos fazendo de livros como “50 Anos de Teologias da Libertação” “Contemplando e Anunciando os Sinais do Reino” (de autoria de Glaudemir da Silva), sem esquecermos dos luminosos textos produzidos pelo CEB (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), entre tantos outros.       

 

João Pessoa, 24 de março de 2024

 

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