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Um tributo a Hugo Echegaray: revisitando seu livro “A Prática de Jesus”

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

Temos consciência da enorme complexidade de que são tecidos a malha e os próprios fios de nossa atual quadra sócio-histórica, seja no campo macro-social, seja no âmbito específico das relações do Sagrado. Bem mais do que uma época de mudança, vivemos uma mudança de época, algo raro na trajetória histórica da humanidade. Sobram dilemas e desafios. Um deles se faz presente na infeliz coincidência de irrupção de forças retrógradas que se mostram hegemônicas tanto fora quanto dentro do campo religioso, a manterem sob sua crescente influência segmentos majoritários de nossas sociedades. Daí resulta enormemente desafiante para as forças de resistência - especialmente as que ousamos chamar de “minorias abraâmicas”, no caso das forças sociais atuando no campo das relações do Sagrado. Cientes, contudo, de que também esta quadra se acha submetida à dinâmica histórica sendo portanto mutável, somos instados enquanto “minorias abraâmicas”, a seguir buscando engravidar a História de sementes libertárias. É a isto que nos move e nos inspira o Movimento de Jesus. Não somos os primeiros e nem os últimos a enfrentar tal desafio.

 

Tomando em consideração apenas um fio desta complexa malha de relações e de forças sociais - o fio relativo à Igreja Católica Romana -, não obstante o empenho de Francisco, Bispo de Roma, em inspirar atitudes de autocrítica e de passos de renovação, no entanto, no âmbito institucional, prevalecem amplamente atitudes de retrocessos, fazendo prevalecer relações patriarcais, hierarquizantes e clericalistas, distanciando-se assim das marcas fundantes da Tradição de Jesus. Tendência que, a despeito de um breve período conciliar (Concílio Vaticano II, Pacto das Catacumbas, Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, períodos durante os quais a ação profética foi marcante ao interno da “Igreja na Base”), lamentamos constatar a crescente prevalência de retrocessos tornando/retardando o caminho em direção a uma Igreja alimentada por uma espiritualidade Reinocêntrica inaugurada, anunciada e testemunhada por Jesus de Nazaré. 

 

No universo de autores e autoras das teologias da Libertação encontramos Hugo Echegaray, um jovem teólogo peruano, biblista de reconhecidas potencialidades, que, tendo feito sua Páscoa , aos 39 anos, nos legou uma obra incompleta, mas de tal qualidade, que inspirou ao seu amigo e conterrâneo Gustavo Gutiérrez, que lhe dedicou um extenso prefácio, reconhecendo-lhe, além da qualidade do trabalho, a fidelidade à causa libertadora dos empobrecidos, dos prediletos da Boa Nova do Reino.

 

Nosso grupo Kairós, que há 26 anos, vêm se dedicando semanalmente aos estudos das Teologias da Libertação, em especial aos estudos do legado do teólogo José Comblin, volta a visitar o livro “A Prática de Jesus”, da lavra de Hugo Echegaray, que já havíamos lido 20 anos atrás. Ao mesmo tempo, temos tido a oportunidade de revisitar o mesmo livro, de modo virtual, com outros dois grupos de reflexão e estudos. Em todos eles, sentimos enorme encantamento pela mesma obra. Eis por que entendemos oportuno compartilhar tais experiências com outros grupos e pessoas, inspirados que nos sentimos pela atitude daquela mulher, tomada de grande alegria por haver encontrado a moeda perdida, pondo-se imediatamente a dividir seu precioso achado com suas amigas (cf. Lc 15, 8-10). 

 

Quem foi mesmo Hugo Echegaray?

 

Hugo Echegaray nasce em Lima (Peru), em 1940. Recebe, desde criança, sólido incentivo aos estudos e a um forte relacionamento fraterno. Terminados seus estudos secundários, vai ingressar no curso de Psicologia, na Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de San Marcos e na Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Foi membro e dirigente da União Nacional de Estudantes Católicos do Peru. Em seguida, fazendo um itinerário próprio dos vocacionados ao Presbitério, vai cursar Filosofia na Universidade Católica de Louvaina, na Bélgica. Seu curso de Teologia, ele o faz na Faculdade de Teologia de Lyon, na França (mesma cidade na qual Gustavo Gutiérrez faria, em meados dos anos 80, seu Doutoramento em Teologia). Após seus estudos, vem a ordenar-se Presbítero, em 1973, vindo a atuar como Assistente da JEC e como assessor e animador de várias comunidades de Lima, em especial junto à Comunidade de Vitarte. Dirigiu também a Revista Páginas, na qual publicou vários artigos. 

 

Rememorando aspectos axiais do livro “A prática de Jesus”

 

Desde o marcante prefácio escrito por Gustavo Gutiérrez, rememorando, com forte emoção, traços da biografia de Hugo Echegaray, bem como de sua qualidade de teólogo biblista de sua impactante entrega ao serviço de sua comunidade paroquial, Gustavo Gutierrez acentua características da espiritualidade reinocêntrica que movia seu amigo Hugo. Em sua introdução, o próprio Hugo Echegaray cuida de historicizar como surgiu a ideia do livro, ao rememorar o pedido que lhe foi feito, em 1975, por sua comunidade paroquial, propondo-lhe refletir e explicar-lhe o modo como Jesus se relacionava com o povo dos pobres, ele mesmo feito pobre entre os pobres. 

 

Ainda nas páginas introdutórias do seu livro, Hugo Echegaray indica, para além dos objetivos e do caráter de seu texto, a metodologia seguida. Trata de revisitar a pessoa de Jesus, tal como a descrevem os Evangelhos especialmente o Evangelho de Lucas, por vezes também remetendo a outros textos neotestamentários, sublinhando especialmente a dimensão humana de Jesus, como condição necessária para um entendimento mais adequadoada dimensão divina de Jesus. Tendo em vista que esta, ao longo de séculos, segue sendo superestimada – o que desfigura a unidade humano-divina de Jesus de Nazaré -, o autor empenha-se em enfatizar no livro a dimensão humana de Jesus, sem desvinculá-la de sua divindade, atitude que bem caracteriza as abordagens das Teologias da Libertação.

 

Outra inquietação compartilhada pelo autor - e já adentrando o primeiro capítulo do livro - concerne ao esforço de contextualizar o espaço e o tempo em que Jesus viveu, cuidando de recompor historicamente a terra, o tempo e as gentes da Palestina do primeiro século. Em seguida, tendo descrito as características histórico-geográficas da Galileia e da Judéia e seus arredores Hugo Echegaray, sempre remetendo a fontes bíblicas e de historiadores como Flávio Josephus, cuida de situar as condições sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas sob as quais vivia aquela população e nas quais Jesus atuava.

 

Ressalta sobretudo as relações de dependência que o Império Romano, por meio de seus representantes em conluio com o Sinédrio, os grandes proprietários e outras autoridades religiosas da Palestina de então, a imporem aos pobres pesados impostos, sacrifícios e sofrimentos, suscitando crescentes revoltas do povo dos pobres contra aquela desordem, que tanto insultava a fé dos que se sentiam traídos pelas principais autoridades políticas, econômicas e religiosas, que passaram a praticar e impor um comportamento idolátrico sobre os palestinos em nome do deus César.

 

Em outro capítulo, Hugo Echegaray cuida de descrever e analisar as principais forças políticas presentes no cotidiano dos Palestinos. Ele ressalta as principais características daquelas forças sociais, a saber: os Saduceus, os Fariseus, os Essênios e os Zelotas. Quanto ao primeiro grupo, Echegaray o descreve como pertencente à classe dominante. Os Saduceus compunham-se, portanto, de grandes proprietários de terra, de autoridades religiosas, do Sinédrio, de autoridades políticas subordinadas ao Imperador, em breve uma força política que se impunha por leis rigorosas e pela força das armas, sendo por isto mesmo, constantemente hostilizadas pelo povo dos pobres da Galileia. Este grupo constituía frequente alvo de severas críticas por parte de Jesus. 

 

Outro grupo era formado pelos Fariseus, que ocupavam cargos intermediários naquela ordem social. Eram muito influentes sobre significativas parcelas da população, sobretudo por representarem os valores religiosos da Lei da qual se julgavam os principais interpretes. Os Evangelhos apresentam diversas passagens por eles protagonizadas, e nas quais Jesus os denuncia pelo seu comportamento hipócrita, de pregarem pesados sacrifícios para o povo, recusando-se, porém, a abrir mão dos seus privilégios. 

 

Um terceiro grupo era formado pelos Essênios, cuja característica mais forte era a de se recusarem a conviver com parcelas majoritárias da população, por eles julgadas afastadas do espírito da Aliança de Javé com o seu Povo. Pertenciam a uma espécie de comunidade monástica, preferindo o distanciamento do meio urbano, inclusive como sinal de denúncia dos malfeitos das elites dominantes. Consta que João Batista tenha sido muito próximo ou mesmo pertencido a este grupo.

 

Os Zelotas constituíam a principal força social de resistência aos ocupantes romanos e seus aliados, componentes da classe dominante. São muito conhecidos por protagonizarem diversas revoltas contra os ocupantes e os dominantes de então. Em muitos casos, diversos zelotas eram flagrados atacando personalidades da classe dominante, munidos de um pequeno punhal (em Latim, “sica”: punhal, de que deriva “sicarius”: portador de uma faca), razão pela qual também eram chamados de sicários. Do grupo de apóstolos e discípulos de Jesus, também faziam parte alguns zelotas, a exemplo do próprio Pedro.

 

O quarto e último capítulo do livro é consagrado à descrição das marcas axiais do projeto de Jesus, compondo-se dos tópicos: “A classe de onde vinha Jesus”; “O anúncio do Reino aos pobres” e “A prática messiânica de Jesus”. No primeiro tópico, Hugo Echegaray cuida de descrever e analisar os mais diferentes ofícios e ocupações praticados pelo povo dos pobres: agricultores, pastores, carpinteiros, pedreiros, ourives, perfumistas, sapateiros, tecelões, alfaiates, padeiros, açougueiros, entre outros. O próprio Jesus exercia o ofício de carpinteiro. Esta é a ambiência social e econômica compartilhada por Jesus, de modo a representar vivamente os interesses e as aspirações dos mais pobres. O autor também faz questão de registrar algumas ocupações mal vistas e até difamadas pela população, pelo fato de serem interpretadas como ocupações eticamente rebaixadas. Delas, contudo, Jesus também se aproximava, tratando todos como seus amigos, com eles comendo e bebendo, razão pela qual era chamado pelas elites de “comilão” e “beberrão”. 

 

No tópico seguinte, o autor, sempre embasado nos textos dos sinóticos e neotestamentários, empenha-se em mostrar como Jesus, em vez de propor leis ou doutrinas, em inaugurar, anunciar e testemunhar o Reino de Deus e suas Justiça, junto aos pobres, aos explorados, aos oprimidos e marginalizados (cf. Lc, 15-19). No último tópico, o autor trata de explicitar o sentido da dimensão messiânica de Jesus, de modo a distingui-lo dos messias poderosos, dos chefes de exércitos, mas, antes, de um messias que apostava nos pobres, nos fracos, nos sem prestígio.



Hugo Echegaray finaliza sua obra com uma instigante citação de Jiulio Girardi, 

 

“Então, se alguém me perguntar o que é que Cristo veio trazer de novo para nossa vida, só teria afinal de contas uma resposta a dar: Cristo! A contribuição mais autêntica e mais transformadora que nos deixou outra não senão Ele mesmo, com o Pai e com o Espírito Santo. Sua novidade não se acha tanto nos dons que oferece, e sim no amor pelo qual se entregou”. (Girardi, Jiulio, Nouveauté chrétiene et nouveauté du monde, In: Lumiére et Vie, 116, janvier-mars 1974, p. 110-111.)

 

Nosso propósito, ao revisitar as páginas deste livro foi sobretudo o de despertar o apetite do conhecimento do projeto de Jesus, como caminho de seguirmos testemunhando os sinais do Reino de Deus em nosso mundo. 



João Pessoa, 14 de dezembro de 2024

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