Alder Júlio Ferreira Calado
Com vivo interesse, também nós acompanhamos, sobretudo nos últimos meses, a “via crucis” e a páscoa definitiva de Francisco, Bispo de Roma, bem como o processo eleitoral, pelo Conclave, que resultou na escolha do Papa Leão XIV, na última quinta - feira dia 08/05. As questões aqui trazidas, sem se eximirem deste debate, pretendem ir além dele. Nossas indagações tem o propósito de, ao cavoucarem evidências esquecidas ajudar a desvendar a brasa espessamento encoberta por densas camadas de cinzas superpostas, ao longo de séculos de Cristandade.
Sendo o processo eleitoral de um Papa tratado como “affaire d’État”, da exclusiva alçada de 135 Cardeais, resta quase nula a participação de centenas de milhões de outros integrantes da Igreja Católica Romana, poucos dos quais questionam tal processo. O que se percebe é uma estrondosa cobertura midiática que dura semanas, limitando-se a expectativas do milagroso “Habemus Papam". Assim tem sido durante séculos, especialmente após a era constantiniana. O Concílio Vaticano II tentou amenizar, especialmente graças ao carisma profético do Papa João XXIII, o formato da organização eclesiástica, como se pode conferir pela leitura atenta dos seus 16 Documentos (4 Constituições, 9 Decretos e 3 Declarações). Na constituição “Lumen Gentium”, por exemplo, a atenção maior já não se volta, como antes, para a centralidade organizativa da Igreja na hierarquia, mas no “Povo de Deus”. No entanto, passados 60 anos, tal formato hiper-hierarquizado não só se têm mantido, como até mesmo ampliado, notadamente durante o longo período dos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. O recente período do Papa Francisco constituiu um ponto fora da curva, sob vários aspectos, mas insuficiente para alterar tal estrutura.
Nas linhas que seguem, limitamo-nos a compartilhar, por meio de questionamentos, algumas de nossas inquietações que vão bem além de meras expectativas quanto ao perfil e ao desempenho do recém - eleito Papa leão XIV:
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Na apreciação de qualquer fato ou acontecimento eclesial, em que parâmetros essenciais nos devemos embasar? Quais os critérios que, graças ao dom do discernimento concedido pela Divina Ruah, somos chamados a pôr em prática no exame de fatos e acontecimentos históricos e eclesiais?
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Como a Tradição de Jesus está ou não presidindo ao exame da realidade da Igreja atual?
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No tocante, por exemplo, aos sujeitos eclesiais chamados a protagonizar as diferentes experiências organizativas da Igreja Católica, por quem, de fato, são tomadas as decisões, na esfera eclesial?
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Se, conforme os critérios da Tradição de Jesus, reconhecíveis especialmente nos textos neotestamentários, é o conjunto da Comunidade animada por Jesus, em comunhão com os seus discípulos e discípulas como justificar que as grandes decisões eclesiais continuem sendo tomadas apenas e exclusivamente por uma minúscula fração dos seus sujeitos?
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Qual a participação das Mulheres que constituem a maioria dos integrantes da Igreja Católica (e das demais Igrejas), nas grandes decisões?
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Saudando os esforços de renovação do Papa Francisco que impactos significativos têm resultado, no cotidiano eclesial?
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Não obstante, o persistente clamor por mudanças e por reformas - “Ecclesia semper reformanda est”, inclusive por parte de Dom Hélder Câmara (conferir suas “cartas conciliares” e o filme “O Santo Rebelde”), como justificar, pela tradição de Jesus, que a Igreja Católica Romana, siga organizada em forma de Estado, dispondo de estrutura financeira, de Banco, de carreira diplomática, etc, regendo-se mais pelo código de Direito Canônico do que pelo Evangelho?
Como acontece em diversas partes do mundo, especialmente entre aquelas e aqueles que preferem navegar pelas correntezas subterrâneas, também buscamos em vários Grupos de reflexão, presenciais e virtuais, participando, há vários anos, de estudos sobre a Tradição e o Movimento de Jesus - já tendo a oportunidade de refletir criticamente a partir de densas contribuições de teólogos e teólogas, a exemplo de José Comblin, Gustavo Gutierres, Jon Sobrino, Elsa Tamez, Ivone Gebará, José Antonio Pagola, Eduardo Hoornaert, José Vigil, Enrique Dussel, entre outros. Temos percebido, com preocupação, um crescente distanciamento das Igrejas Cristãs das principais fontes inspiradoras do Movimento de Jesus. Quanto mais revisitamos essas raízes da Tradição de Jesus, por meio de leituras de livros tais como “Jesus de Nazaré”, de Comblin (Petrópolis: Vozes, 1971); Comblin. “A Profecia na Igreja” (São Paulo: Paulus, 2008); Pagola, José Antonio. “Jesus, aproximação histórica” ( Petrópolis: Vozes, 2014); Pagola, José Antonio. “Voltar a Jesus” (Petrópolis: Vozes, 2015); o denso legado do Papa Francisco (seus pronunciamentos, seus escritos, suas viagens Apostólicas pelos cinco continentes), sobre o qual já tivemos a oportunidade de refletir, reiteradas vezes; as contribuições de respeitados vaticanistas, a exemplo de Marco Politi (cf. Por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=jWviU6BcHSI&t=3623s); no caso da Igreja no Brasil, ver recentes pesquisas produzidas, por exemplo sob a coordenação do Teólogo Agenor Brighenti (livro “O novo rosto do clero: Perfil dos padres novos no Brasil”, editora Vozes, 2021; “O novo rosto do catolicismo brasileiro: Clero, leigos, religiosas e perfil dos padres novos”, editora Vozes, 2023)- só para mencionar estes estudos.
Amparado nestes estudos produzidos por gente de reconhecida competência e de fidelidade aos valores do Movimento de Jesus, ousamos seguir indagando:
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Por mais exitosa que venha a ser a escolha de um Papa, por mais próximo de Francisco que venha a se mostrar, podemos apostar que isto seja suficiente para provocar uma profunda mudança nas estruturas organizativas da Igreja Católica Romana?
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Tal tendência, por outro lado, significa que nada temos a fazer?
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Que tal seguirmos clamando e agindo, movidos e movidas pela força que nos inspira a Divina Ruah, que o Ressuscitado nos envia, também no tempo presente?
Ao concluirmos estas breves linhas, não nos furtamos a prestar uma homenagem a figura de Pepe Mujica - ex-presidente do Uruguai, que ontem partiu para outro plano - pelo seu denso legado ético e luminoso, especialmente nestes tempos tenebrosos.
João Pessoa, 14 de maio de 2025