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Poemas de Helder Câmara: o Deus transfigurado

Eduardo Hoornaert

Quando, no dia 12 de abril de 1964, Helder Camara toma posse como Arcebispo de Recife, ele não faz as costumeiras saudações a autoridades civis, militares e religiosas, mas declara que, no Nordeste Cristo se chama Zé, Antônio ou Severino. Palavras que espantam as autoridades presentes, mas traduzem bem o clima espiritual que perpassa os vinte anos em que Helder exerce o pastoreio católico em Recife. Seu segredo consiste em reparar, nas figuras passageiras da vida, das pessoas, dos acontecimentos, transfigurações de Deus.

A entrada do Bispo Helder em Recife acontece poucos dias depois do golpe militar do dia 31 de março, e isso confere um tom dramático às palavras e aos posicionamentos do Bispo, particularmente aos poemas inspirados pelo ‘Padre José’, dos quais apresento aqui alguns.

Os militares, recentemente no poder e ainda inseguros quanto aos rumos a tomar, bem sabem que o novo Arcebispo não concorda com o golpe que eles arquitetam penosamente. Apesar de receber repetidos sinais de ‘boa vontade’, emitidos pelo Palácio Episcopal, eles cultivam uma desconfiança que vem de longa data, pois o bispo recém-chegado, já no Rio de Janeiro, demonstrava sinais de optar pela população pobre, pelos favelados. A alusão a Cristo escondido em Zé, Antônio e Severino, no discurso da posse, reacende suspeitas antigas.

 

Uma semana depois de sua chegada a Recife, na noite entre 18 e 19 de abril, Helder Camara recebe, na vigília costumeira, a visita do Padre José, que lhe dita seis poemas.  O manuscrito original das anotações desses poemas mostra que eles são considerados importantes pelo escritor, que faz questão de anotá-los em letras bem caprichadas, no centro das folhas, enquanto as costumeiras informações, dirigidas à Família Messejanense, ficam em pequenos enquadramentos laterais, traçados a mão.

 

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O Padre José dita:

 

Mergulha, a fundo,

Nos planos divinos.

Mergulha o mais que puderes,

Sem medo da massa líquida

Sobre teu corpo frágil,

Sem medo de peixes vorazes

Que te devorem ou mutilem,

Sem medo das correntes submarinas

Que te arrastem, traiçoeiras...

Simplesmente sem medo.

Quanto mais te entregares,

Mais serás conduzido

Como criança

Que mãe solícita

Envolve nos braços e leva

Ao abrigo de todos e de tudo. (Carta Circular 18-19/4/64, II, I, p. 18)

 

Mergulhar sem medo. Pois os planos divinos que se anunciam, por ameaçadores que pareçam, não serão um dilúvio, como nos tempos de Noé, nem chuvas de enxofre e de fogo, como nos tempos de Sodoma e Gomorra:

 

Prometeste a Ti mesmo

Que não enviarias jamais

À terra

Novo dilúvio.

Não creio que em Teus planos

Entrem

Novas chuvas

De enxofre e de fogo.

Mas não basta

Que tua misericórdia

Vença sempre mais

Tua justiça.

Não é de Ti

Que vem o perigo.

Controla o homem!

Sem Tua interferência

É capaz

Tristemente capaz

De um dia reduzir a cinza

O que tiraste do nada (ibidem, p. 19).

 

Os ditos planos divinos são na realidade planos humanos. É preciso controlar o homem e, o mais que se puder, distribuir paz, serenidade, esperança.

 

Há uma semana,

Vivendo em Ti e contigo,

Distribuímos paz,

Serenidade,

Esperança.

É curioso

Como animais acuados

Se contentam

Com um carinho;

Como criaturas amarguradas

Que chegam em carne viva

Têm fome e sede

Não só de esperança,

Mas de amor;

Como quem chega

Alardeando descrença

E um certo desdém por Ti,

Se acalma

E quase adormece

Ouvindo tua voz divina

Através de meus lábios humanos (ibidem, pp. 19-20).

 

A alegria de perceber que Deus age através de minhas entranhas.

 

Descubro, feliz,

Que não é, de modo algum,

Um simulacro de interesse

Que sinto pelas criaturas.

Amo-as

Do mais profundo de mim mesmo,

Como se as tivesse

Arrancado do nada,

Derramado por elas

Todo o meu sangue

E vivesse apenas

Para que tivessem vida

E vida mais abundante..

O mistério é simples:

És Tu, meu Deus Uno e Trino,

Que amas o universo

Através de minhas entranhas (ibidem, p. 20).

 

Até no Palácio Episcopal aparece Deus transfigurado:

 

Estou felicíssimo.

Teus pobres descobriram

Nosso Palácio.

Entram sem medo,

Pisam firme

Como quem entra

Na própria casa.

Espalham-se

Pelas salas numerosas.

Sentem-se à vontade.

Ri a não mais poder

Entrando um velhinho

Sentado, tranquilo,

No Trono

Que não quis ocupar.

Nunca entendi tanto

O Cristo Rei. (ibidem, pp. 20-21).

 

O mesmo acontece, de repente, num dos bairros da cidade que Helder percorre na primeira semana de sua vida em Recife:

 

No casebre miserável.

´mocambo’, como se diz aqui,

O pobre me convidou

Para o almoço.

Não estivesse tão acompanhado

E ficaria.

Que teria ele,

No barraco sórdido,

Metido na lama,

Para oferecer?

Pergunto por perguntar.

Ele apenas te emprestou os lábios.

O convite partiu de Ti,

O anfitrião eras Tu. (Ibidem, p. 21).

 

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São, em total, seis poemas. Em meio a temores que pairam sobre a cidade nos primeiros dias após o golpe militar, Deus se transfigura. Nos poemas daquela noite, dois temas se fundem: a onipresença oculta de Deus e a onipresença ocultada da pobreza. Em outras palavras: Helder repara, nas mais corriqueiras ocorrências da vida por ele observadas nos primeiros dias em Recife, a presença transfigurada de Deus. Num esmolar que passa pela rua, numa lavadeira que lava uma camisa, até num matinho teimoso que cresce entre as pedras do calçamento de sua casa.

 

Ter de esmolar

Ser inoportuno

Impertinente

Parecer viciado e cínico

Como recurso único

De chegar em casa

Com um pouco de pão (Carta Circular 2/03/1966, III, I, p. 170).

 

A mulata forte

torcia firme

a camisa humilde,

decidida a deixá-la

sem um pingo d’água.

Perdoa, Pai:

Há muito não vejo

tão autêntico flagrante teu (Carta Circular 18-19/02/1965, II, II, p. 191).

 

Querem concertar a minha calçada.

Eu nem reparara

Que ela estava quebrada.

Acho lindo

O matinho humilde

Que ali nasceu.

Como fazer entender

Que ele é muito mais belo

E vivo

Que o cimento frio

Que os amigos desejam ofertar? (citado por Félix Filho, 2012, pp. 74-75).

 

Até a feiura revela Deus:

 

Ter amor suficiente para chegar a adivinhar e amar

A beleza dos seres feios

O tesouro das coisas mesquinhas,

Descobrir a maravilha secreta

De dia de chuva, de paisagem monótona,

Do barraco, do inválido, da velha solteirona malvestida (Carta Circular 29-30/11/1964, II, II, p. 45).

 

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Está chovendo em Recife.Helder implora a  chuva: deixe meu povo descansar em paz!

 

Chuva, dá um jeito

De abrir goteiras

Em todo o meu corpo,

De gelar meus ossos,

De alagar minha alma.

Mas deixa em paz

Os mocambos de minha Gente

Que precisa descansar

Da realidade triste

E esquecer no sono

A fome impertinente (Carta Circular 21/03/1966, III, I, p. 204).

 

Na Festa da Transfiguração, Helder enxerga  Deus transfigurado na face estremunhada dos embriagados:

 

Não basta

Que Te transfigures em mim.

Transfigura-te nos Pobres!

Não apenas

Nos mansos

Nos humildes

Nos esmagados.

Quero descobrir Teu rosto

Até por debaixo

Da face estremunhada

Dos embriagados.

Preciso descobrir Tua voz

Mesmo por detrás

Das grosserias (Carta Circular 6/08/1966, III, II, p. 118).

 

Críticos acham que o entusiasmo do Bispo Helder não corresponde ao que ele sente por dentro. Ele concorda, mas faz questão de dizer que sua máscara de entusiasmo é na realidade uma transfiguração da esperança e da alegria que vêm de Deus.

 

Quando o Tentador me disse

que o dia inteiro

uso máscara de entusiasmo

e vendo

esperança e alegria

que não são minhas,

fico sem jeito,

desconsolado.

Então, me permitiste responder:

‘Exato,

sou máscara

que esconde a Esperança

que encobre a Alegria’ (Carta Circular 18-19/02/1965, II II, p. 193)

 

Enfim, em meio a tantas desavenças e num clima pesado de perseguição política, Helder dorme tranquilo, imperturbado:

 

Os sonhos têm vindo

Tão tranquilos e puros

Tão simples e belos

Que devo agradecer, meu Deus,

O trabalho de amor

Que Tua graça realiza

Para além da consciência,

No mundo mais misterioso

Que nos escapa.

A Ti é tão fácil

Atingir (Carta Conciliar 10-11/3/1964, I. I, pp. 416-417).

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